Discurso durante a 22ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre o livro "Crianças Invisíveis", publicado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), cujo eixo temático consiste em discutir o enfoque da imprensa sobre o trabalho infantil doméstico e outras formas de exploração.

Autor
Romero Jucá (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RR)
Nome completo: Romero Jucá Filho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Considerações sobre o livro "Crianças Invisíveis", publicado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), cujo eixo temático consiste em discutir o enfoque da imprensa sobre o trabalho infantil doméstico e outras formas de exploração.
Publicação
Publicação no DSF de 24/03/2004 - Página 8259
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, PUBLICAÇÃO, LIVRO, AGENCIA DE NOTICIAS, DIREITOS, INFANCIA, APOIO, FUNDO INTERNACIONAL DE EMERGENCIA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFANCIA (UNICEF), ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO (OIT), DENUNCIA, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, CRIANÇA, EMPREGADO DOMESTICO, IMPORTANCIA, LUTA, ERRADICAÇÃO.

O SR. ROMERO JUCÁ (PMDB - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI) vem de publicar livro intitulado Crianças Invisíveis, cujo eixo temático consiste em discutir o enfoque da imprensa sobre o trabalho infantil doméstico e outras formas de exploração. Editado em 2003, faz parte da Série Mídia e Mobilização Social, que conta com o apoio da Unicef, da ONG Save the Children, da Fundação Abrinq e, particularmente, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), à qual coube os direitos reservados de publicação.

Dividido em seis tópicos específicos, destina-se a alertar, no geral, para o fato de a imprensa brasileira ainda se prender a dados estatísticos, quanto muito a informações superficiais, quando noticia a exploração de mão-de-obra de crianças e adolescentes. Nesse contexto, de forma a melhor valorizar o trabalho, aproveito o momento presente para revisitar, sumariamente, as contribuições dos capítulos para o soerguimento de obra tão indispensável.

No primeiro capítulo, intitulado “O Trabalho Infantil no Brasil”, o sociólogo Carlos Amaral adverte o leitor da perda de visibilidade desse tema na imprensa nacional e fora dela. Para ele, dois fatores concorrem para o fenômeno: de um lado, a redução dos focos de trabalho infantil, e, de outro, o aumento do percentual de crianças e adolescentes explorados em espaços invisíveis, como os de serviços e de atividades ilícitas. De todo modo, a legislação brasileira é considerada uma das mais avançadas no que diz respeito à proteção da infância e da adolescência.

A análise dos textos jornalísticos publicados em 2002 aponta para o fato de que surge um constrangedor vácuo entre aquilo que os meios de comunicação veiculam sobre o trabalho infantil e a legislação pertinente. Ou seja, em geral, as matérias não citam as leis referentes ao assunto, senão muito superficialmente a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente. É bem verdade, no entanto, que o trabalho infantil no Brasil somente deixou de ser, de fato, tolerado pelo Estado e pela sociedade a partir da década de 80.

Contra essa intolerável indiferença, editou-se, em 1994, o livro Crianças de Fibra, de Jô Azevedo e Iolanda Huzak, além da produção do filme Profissão Criança, de Sandra Werneck. Tanto o livro quanto o filme consolidaram as informações sobre o trabalho infantil na época, relatando situações ainda desconhecidas, o que contribuiu para a ampliação do escopo do tema na mídia.

Alguns anos mais tarde, foi lançada pela Unicef a campanha Criança no Lixo Nunca Mais, com o objetivo de erradicar o trabalho infantil nos lixões. Além de ter mobilizado a sociedade e a imprensa para a dramática situação das crianças que vivem do lixo, a campanha disponibilizou informações técnicas para que as prefeituras desenvolvessem bons programas de gerenciamento nessa área.

Em 1999, visando à erradicação do trabalho infantil, a ANDI promoveu um movimento para que os jornais brasileiros substituíssem a mão-de-obra infantil pela adulta, enviando cartas aos veículos em alerta à questão. Segundo estudos da OIT, apesar desses movimentos, existem ainda cerca de quatro mil jornaleiros com idade entre dez e quinze anos no Brasil. Em 2001, o próprio Ministério do Trabalho divulgou em relatório a existência de empresas, em 26 estados brasileiros, empregando menores de 14 anos na venda de jornais nas ruas e no encartamento.

Do ponto de vista da mídia, a temática do trabalho infantil e do trabalho infantil doméstico virou praticamente assunto de ONGs, retirando do Estado sua responsabilidade na questão. Isso, segundo alguns editores, explicaria a ausência do tema nos jornais, já que a pressão sobre o Poder Público funciona quando o Governo está de alguma forma presente na área social. Na verdade, para que o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Infantil funcione, diferentes áreas da sociedade têm que ser responsabilizadas.

De acordo com uma pesquisa divulgada recentemente, apesar de existir uma tendência positiva dos jornalistas de realçar a queda do rendimento escolar como uma das principais conseqüências do trabalho infantil, a ênfase sobre tais conseqüências é o foco central em apenas 3,2% das matérias. Por isso mesmo, além da violência visível, merecem espaço nos veículos de comunicação os prejuízos da falta de brincadeiras e fantasias, que comprometem o desenvolvimento infantil. É fundamental tratar as crianças e jovens que trabalham como sujeitos de direitos, respeitando os casos em que eles não podem ser expostos, e consignar voz àqueles cujos direitos foram violados ou que são protagonistas na sua defesa.

No capítulo dois, intitulado “Uma Questão Cultural”, o enfoque recai sobre os aspectos de gênero e raça, que raramente são abordados por jornalistas quando da cobertura de questões ligadas à exploração da mão-de-obra de crianças e adolescentes. Regra geral, o emprego doméstico de menores recai sobre o gênero feminino e, neste conjunto, via de regra, sobre as meninas negras.

Em geral, as meninas pobres são introduzidas no serviço doméstico em torno dos sete anos, cuidando dos irmãos mais novos e ajudando nas tarefas de casa. O trabalho infantil doméstico em casa de terceiros opera dentro de uma lógica na qual a divisão de tarefas segue a vontade do patrão, de quem a criança recebe uma carga de trabalho pesada por uma remuneração injusta. Segundo as pesquisas da OIT realizadas em Minas Gerais, Pernambuco e Pará, quase 65% das pequenas trabalhadoras ganham menos de meio salário mínimo. Enquanto a maior parte delas não tira férias e desconhece os seus direitos trabalhistas, outra parte significativa, em vez de salário, recebe casa e comida pelo serviço.

Para entender o universo das crianças e adolescentes que trabalham em funções domésticas, é indispensável suscitar um debate que envolva gênero e raça. Segundo estudo do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher, a exploração das meninas neste tipo de atividade se inicia sempre mais cedo e é sempre mais velada, obrigando-as a exercer um papel feminino exacerbadamente precoce. De fato, as questões relacionadas a gênero são ainda incipientes, tanto na mídia quanto nas pesquisas de forma geral.

Ainda que as pesquisas divulgadas em 2002 apontem que a maioria das meninas que trabalham em casas de terceiros é negra, este é um ponto que também não tem merecido a atenção dos jornais e revistas analisados. As mesmas pesquisas demonstram que as trabalhadoras domésticas no Brasil são, em todas as faixas etárias, majoritariamente não-brancas. De todo modo, sejam negras ou indígenas, milhares de meninas têm nessa atividade o único espaço no mercado de trabalho onde podem se inserir.

Dos 150 textos analisados pelos pesquisadores da ANDI, apenas 5,3% tocam na questão de raça e etnia, enquanto 8,6% fazem alguma alusão à questão cultural ou regional. Mais que isso, apesar de a família ser essencial para que se entenda melhor a questão do trabalho infantil doméstico, a mídia não se esforça, em geral, para ouvi-la e discutir seu papel. Em 63,3% das mesmas 150 matérias analisadas, os pais não são sequer mencionados, e mesmo quando o são, se apresentam como vítimas ou vilões.

Outro aspecto a se ressaltar é que, até o presente momento, não há um consenso entre os especialistas de que o trabalho infantil doméstico reduz necessariamente o nível de escolaridade das meninas. De acordo com alguns sociólogos, fatores como a discriminação racial e a pouca atratividade da escola podem ser determinantes no abandono escolar. De todo modo, pesquisas coordenadas pela OIT em Belo Horizonte apontam contingente expressivo de adolescentes empregadas em serviço doméstico ostentando no corpo sinais explícitos de acidente de trabalho, além de sintomas físicos e psicológicos derivados da atividade.

Ao final deste capítulo, recomenda-se ao jornalista maior atenção às questões de gênero, raça e etnia, observando aspectos relativos às crianças e aos empregadores. Além do que, reitera-se que o aprofundamento da leitura sobre tais temas é de suprema importância, assim como maior familiaridade com entidades que trabalham com os recortes culturais, tais como o movimento de mulheres e de negros.

O capítulo terceiro, intitulado “Um Desafio Social e Político”, sublinha que as políticas públicas vigentes não atendem, com suficiência, às carências de quase meio milhão de crianças e adolescentes no trabalho infantil doméstico no Brasil. É mister que haja uma política pública transparente e incisiva, que indique como proteger tais crianças uma vez retiradas do ambiente de trabalho. A falta de consciência geral sobre o tema enfraquece a pressão sobre o Poder Público pela elaboração de políticas adequadas. Daí, a extrema relevância de a imprensa se unir a diversas instâncias da sociedade cuja função consiste em combater a exploração desta mão-de-obra frágil em casa de terceiros.

A Convenção 182 da OIT, ratificada pelo Governo brasileiro em 2000, introduz o conceito “Piores Formas”, pelo qual define as atividades nocivas à integridade física e psicológica da criança. Ao assinar o documento, o Brasil assumiu o compromisso de proibir e erradicar qualquer tipo de trabalho presente na lista, cuja natureza prevê, por exemplo, a utilização de instrumentos cortantes, o manuseio de produtos cáusticos e a realização de serviços em condição de perigo iminente.

No entanto, para a Procuradoria do Trabalho do Distrito Federal, a aplicação de multa administrativa nos casos de infração dos empregadores permanece ainda a única maneira de o Ministério do Trabalho exercer sua autoridade. Enquanto a multa não vem, o máximo que os fiscais do trabalho podem fazer ao receber uma denúncia é encaminhar o caso ao Ministério Público do Trabalho (MPT). Pelo menos desde 1993, o MPT tem competência legal para combater qualquer forma de trabalho infantil, assumindo a defesa dos direitos da criança e do adolescente como meta prioritária.

Por outro lado, a repressão aos empregadores por si só não resolve. Hoje, graças aos sucessivos debates e pesquisas que se realizam, prevalece a consciência de que o trabalho infantil doméstico é resultado de uma condição histórica de desigualdade social, concentração de renda e de falta de oportunidades. Por isso mesmo, não se pode tolerar o desconhecimento dos direitos envolvidos no trabalho infantil doméstico, cuja legitimidade coincide, em grau e em número, com aqueles direitos envolvidos no trabalho adulto. Na verdade, o descumprimento das normas jurídicas de proteção tem raízes em uma cultura que ainda traz resquícios do regime escravocrata de séculos anteriores e de um equivocado assistencialismo.

Em 2000, o Ministério Público do Trabalho e os Ministérios Públicos Estaduais realizaram uma ação orientada para os magistrados, de quem esperaram uma reação positiva, no sentido de evitar tais autorizações de trabalho para crianças. O esforço parece ter gerado resultados, uma vez que o volume de autorizações encolheu, bem como o número de carteiras de trabalho emitidas para menores de 14 anos. Ao lado disso, a Secretaria Especial de Direitos Humanos pretende ajudar os municípios a equiparem seus Conselhos Tutelares, aos quais cabe receber denúncias e encaminhar soluções para o trabalho infantil doméstico.

Nesse contexto, recomenda-se aos jornalistas incluir os Conselhos Tutelares, Ministério Público do Trabalho, Delegacia Regional do Trabalho e Juizado da Infância e da Juventude em uma grade de acompanhamento periódico, em busca de denúncias sobre o trabalho infantil doméstico. Além disso, vale registrar que os direitos e deveres das crianças e dos adolescentes são pouco conhecidos pela população brasileira, o que acarreta o próprio descumprimento das leis criadas especificamente para proteger tais direitos. Nessa lógica, uma reportagem esclarecedora sobre o assunto é de extrema utilidade pública.

No quarto capítulo, “Comportamento Editorial”, a publicação da ANDI declara que, apesar de o trabalho infantil doméstico já fazer parte da pauta da mídia brasileira, a abordagem ainda se encontra em nível bem aquém do necessário. De fato, não se pode negar que, em alguns pontos, o tratamento dado pela mídia ao tema tem avançado, explorando os aspectos legais, culturais, regionais, étnicos e sexuais. Contudo, segundo pesquisa da ANDI, entre os 25 jornais que mais publicaram matérias sobre trabalho infantil em geral, não estão relacionados os cinco grandes diários brasileiros.

No capítulo seguinte, “O Que as Meninas Acham da Imprensa”, coletam-se depoimentos de crianças e adolescentes trabalhadoras e ex-trabalhadoras domésticas. O objetivo desta coleta baseou-se na percepção de que, em equipe, as crianças trabalhadoras mudam de opinião em função da reflexão de uma colega, seguindo um fluxo de influência mútua. As questões específicas acerca do trabalho infantil doméstico apontaram que a média de idade da entrada das meninas é de quase 13 anos e a de saída de quase 15 anos. O primeiro emprego doméstico das meninas toma lugar na casa de conhecidos da família, ou de vizinhos, reforçando a tese de que a pauperização da sociedade brasileira é o expressivo indutor para o trabalho infantil em geral.

Qualquer discussão acerca de temas relacionados à infância que exclua uma análise do papel da família sai, de imediato, prejudicada. Não se trata, portanto, de mera coincidência o fato de que a maioria das meninas entrevistadas possui uma família desestruturada. Tampouco é obra do destino que as próprias meninas não saibam identificar os diferentes níveis de responsabilidade nessa complexa cadeia de relações que se constrói ao redor do trabalho infantil doméstico.

No sexto e último capítulo, “Para Saber Mais”, a publicação esclarece o leitor sobre os conceitos e termos usados no universo do trabalho infantil e do trabalho infantil doméstico, além de registrar indicações de fontes relevantes. Trata-se de um autêntico glossário, que se desdobra em dezenas de vocábulos e expressões, estendendo-se desde a consagrada concepção de “abuso sexual” até o conceito de “trabalho na economia informal”. De resto, o Diretório de Fontes conta com vasto nível de detalhamento, atendendo às necessidades mínimas de informação sobre os órgãos.

Para encerrar, Sr. Presidente, aproveito a oportunidade para, uma vez mais, saudar os editores desta extraordinária publicação, “Crianças Invisíveis”, na convicção de que o Brasil atravessa um período histórico de rara perspectiva de mudanças. E dentro desta perspectiva, a erradicação completa do trabalho infantil doméstico e de outras formas de exploração da criança ocupa lugar de preciosíssimo destaque. Parabéns à equipe da ANDI, parabéns à OIT.

Era o que tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/03/2004 - Página 8259