Pronunciamento de Mozarildo Cavalcanti em 30/03/2004
Discurso durante a 27ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Implicações decorrentes da eventual criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
- Autor
- Mozarildo Cavalcanti (PPS - CIDADANIA/RR)
- Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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POLITICA EXTERNA.
COMERCIO EXTERIOR.:
- Implicações decorrentes da eventual criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
- Publicação
- Publicação no DSF de 31/03/2004 - Página 8825
- Assunto
- Outros > POLITICA EXTERNA. COMERCIO EXTERIOR.
- Indexação
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- NECESSIDADE, ATUAÇÃO, DEBATE, AREA DE LIVRE COMERCIO DAS AMERICAS (ALCA), DIRETRIZ, INTEGRAÇÃO, COMERCIO EXTERIOR, COMENTARIO, EXPERIENCIA, EUROPA, COMPROMISSO, SOLIDARIEDADE, AUXILIO FINANCEIRO, PAIS SUBDESENVOLVIDO, DIFERENÇA, OBJETIVO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), PROPOSTA, AREA DE LIVRE COMERCIO, AMERICA, CRIAÇÃO, DEPENDENCIA ECONOMICA.
- DEFESA, VALORIZAÇÃO, MÃO DE OBRA, TRABALHO, PRODUÇÃO, BRASIL, REPUDIO, DEPENDENCIA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), REGISTRO, IMPORTANCIA, REFORÇO, MERCADO COMUM DO SUL (MERCOSUL), ELOGIO, LIDERANÇA, GOVERNO BRASILEIRO, DETALHAMENTO, DADOS, TARIFAS, PRODUTO NACIONAL, PROTECIONISMO, SUBSIDIOS.
O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, vivemos em um tempo em que expressões e termos tais como Mercosul, ALCA, integração continental e blocos econômicos desceram do pedestal acadêmico. Hoje, fazem parte de acaloradas discussões, seja na sala de aula, no banco do táxi, ou mesmo em conversas informais entre amigos. Creio ser oportuno, neste momento, abordarmos as questões suscitadas em torno da possível criação de uma Área de Livre Comércio das Américas - mais conhecida por seu acrônimo ALCA.
Afinal, cabe a nós, parlamentares, a imensa responsabilidade não só de fiscalizar os atos do Poder Executivo, mas também a de refletir e de propor medidas em face da realidade que vivemos. Para que possamos autorizar, com a consciência tranqüila, a ratificação dos atos do Executivo, atendendo a preceito constitucional, é mister debatermos à exaustão as profundas implicações que a eventual criação da ALCA pode trazer para todos nós.
Certa vez ouvi uma frase que se encaixa como uma luva à formação de blocos de países. “Não é o modelo que faz a integração; é a integração que faz o modelo. Por trás de um aparente jogo de palavras inócuo, encontra-se uma grande demonstração de sabedoria”.
Por outras palavras, não importa tanto a forma da integração, se se trata de área de preferências tarifárias, de livre comércio, de união aduaneira ou, ainda, de mercado comum. São os propósitos da integração o que importa, são as motivações da integração o que devemos ter em mente, sempre.
Nesse sentido, é inevitável recordarmos da mais longeva e bem-sucedida forma de integração já ocorrida entre países, protagonizada pelos europeus ainda sobre os escombros da Segunda Guerra Mundial. Havia - e há - ali o propósito deliberado de promover a paz e a concórdia entre os países, mediante o desenvolvimento eqüitativo dos países-membros. Os propulsores da integração, a chamada locomotiva franco-germânica, nunca se furtaram a oferecer ajuda financeira mediante os fundos comunitários, na revitalização dos países de economia mais débil.
O resultado é, aos olhos de todos, impressionante. Em face da pobreza e da carestia enfrentadas após o término da ditadura de Salazar, em Portugal, e de Franco, na Espanha, a Península Ibérica está, hoje, irreconhecível, tal o dinamismo que a região tem vivenciado nos últimos anos.
Mas o milagre tem nome, Senhor Presidente. Chama-se compromisso com o desenvolvimento, compromisso com a cartilha do crescimento com nítido viés social.
É lícito indagarmos, porém, se são esses os propósitos que movem a maior potência hemisférica - e mundial - rumo ao estabelecimento de uma área de livre comércio em nosso continente. Pois olhamos para o exemplo mexicano e até conseguimos ver algum progresso na economia, mas à custa de uma dependência avassaladora da economia dos Estados Unidos, das empresas norte-americanas que buscam tão-somente o lucro fácil com a mão-de-obra contratada a preços vis, e que não se furtam a fazer as malas e partir em direção a países que ofereçam ainda menores custos trabalhistas.
Temos de estar conscientes acerca da necessidade de efetuarmos a travessia da eficiência baseada em trabalho barato para a eficiência fundada em trabalho mais produtivo. O Brasil, além de ser detentor de uma das mais ricas e especializadas economias do hemisfério sul, faz comércio com todas as macrorregiões do globo. Não nos interessa, portanto, viver à sombra da hegemonia política e econômica norte-americana, pois os propósitos integracionistas só fazem sentido quando vêm corrigir as desigualdades históricas, quando vêm suprimir as brutais assimetrias de uma ordem econômica internacional que privilegia uma minoria de ricos em detrimento dos países “em desenvolvimento”.
É por isso que sempre sustentamos a importância política, econômica e estratégica do Mercosul, como projeto que visa a fortalecer mutuamente seus componentes em nome de uma melhor inserção dos países-membros na economia globalizada.
Somos, sem dúvida alguma, os arquitetos de um projeto bem-sucedido no subcontinente sul-americano. Lembremos, nesse sentido, que nem mesmo a mais grave crise político-econômica já ocorrida em nosso país-irmão foi capaz de abalar os alicerces democráticos que fundam, hoje, a sociedade argentina.
Isso se deve ao fato de a nossa região haver passado por um amadurecimento, por uma depuração político-institucional sem precedentes na história americana. Refiro-me, aqui, não somente aos países que compõem o Mercosul, mas a todos os nossos vizinhos sul-americanos. Nosso contexto democrático, que parece ter-se tornado definitivo, permite-nos lutar com denodo em prol de um continente efetivamente mais justo e solidário.
Vemos, pois, com desconfiança, a pressa com que alguns tentam impor-nos a conclusão das negociações que culminariam com a criação da ALCA. Celebrar, de modo precipitado, acordo de tal envergadura pode não só trazer aos pactuantes novas distorções, mas também agravar as injustiças já existentes.
São falaciosos os argumentos que visam a desqualificar o Mercosul como foro legítimo de negociações no âmbito hemisférico. É a partir do Mercosul que podemos falar em integração com os demais países que integram o continente americano. Para o Brasil, fortalecer e aprofundar o Mercosul significa qualificar nosso País como interlocutor-chave de toda a América do Sul, significa acrescer pontos importantíssimos na contabilidade de nosso crédito externo.
O processo de criação da ALCA não é excludente em relação ao Mercosul. Não se trata, pois, de efetuar raciocínios do tipo “ou ALCA, ou Mercosul”. Ambos são plenamente compatíveis, mas há distinção importante a ser feita: o Brasil é, a um só tempo, co-Presidente da ALCA em caráter individual e negociador em caráter coletivo, em nome do Mercosul.
Devemos ser capazes de fazer valer nossas prerrogativas na presidência das negociações, para que possamos firmar tratado que efetivamente interesse ao Brasil. Nesse ponto, os membros do Mercosul devem falar em uníssono, agregando valor aos interesses específicos da região.
Pois uma coisa é certa, Senhoras e Senhores Senadores: não é possível ignorarmos as potencialidades representadas por esta Área de Livre Comércio. Cerca de 50% das exportações brasileiras se destinam aos países da região - entre eles os Estados Unidos -, sendo que 70% dos manufaturados exportados pelo Brasil se dirigem ao mercado hemisférico.
Assim, cabe a nós questionarmos, com veemência, a agenda negociadora norte-americana, que, em vários momentos, parece querer o melhor dos dois mundos, ou seja, auferir os benefícios do livre comércio sem tocar, em contrapartida, nos pontos sensíveis e fortemente protegidos de sua economia.
Nas negociações da ALCA, os objetivos brasileiros não devem restringir-se à desgravação tarifária, até porque a tarifa média adotada pelos Estados Unidos é razoavelmente baixa. Acontece que os chamados picos tarifários atingem dezenas de produtos brasileiros fortemente competitivos no mercado externo. Os calçados, por exemplo, recebem taxas que vão de 12% a 60%; os produtos siderúrgicos tiveram as taxas elevadas em até 109%, sem falar do setor agropecuário, fortemente prejudicado em produtos como o suco de laranja, o fumo, o café, a soja e as carnes bovina e de frango.
Por sua vez, as barreiras não-tarifárias, tais como os subsídios agrícolas, leis antidumping, créditos à exportação etc., afetam mais de 60% das exportações brasileiras que se dirigem aos Estados Unidos. Segundo dados fornecidos pelo Professor Marcos Jank, da Universidade de São Paulo, os subsídios destinados ao setor agrícola chegam a 32 bilhões de dólares anualmente.
É esse quadro que devemos reverter. A ALCA só será desejável se oferecer acesso efetivo a produtos brasileiros competitivos no maior mercado do mundo. Que livre comércio é esse, que utiliza normas sanitárias, fitossanitárias, além de legislação antidumping, para proteger nichos de mercado que claramente implicam prejuízo ao Brasil? Como falar em laissez-faire, quando os quinze primeiros itens da pauta de exportações do Brasil para os Estados Unidos pertencem a setores altamente protegidos naquele País?
É preciso que os Estados Unidos reconheçam o óbvio, ou seja, o fato de haver níveis diferenciados de infra-estrutura produtiva e logística nos países da ALCA, o que pode acarretar, para os demais países do continente, distorções de competitividade, desindustrialização e desemprego.
Se o país detentor do maior mercado interno do hemisfério não se dispuser a enfrentar, de forma limpa e transparente, os poderosos lobbies internos, não haverá condições mínimas hábeis a criar área de livre comércio no continente. Com o fito de uma exemplificação, basta lembrarmos que a infame Farm Bill, legislação destinada a proteger a agropecuária dos Estados Unidos, pretende injetar 180 bilhões de dólares nos cofres dos agricultores locais em um prazo de dez anos. Por sua vez, a Trade Promotion Authority, permissão que o Congresso norte-americano concede ao Executivo para negociar acordos de comércio, exclui das negociações cerca de duzentos dos mais competitivos produtos brasileiros, o que praticamente inviabiliza qualquer esforço negociador.
Esperamos, Sr. residente, que essas graves questões sejam abordadas quando da visita do Presidente Lula a Washington, nos próximos dias. Desejamos fazer da ALCA aquilo que o Mercosul, seguindo o bom exemplo europeu, tem sido no plano regional: elemento de coesão, harmonia e desenvolvimento.
A única ALCA que interessa ao Brasil e ao Mercosul é aquela que possa trazer, junto dos bons ventos da integração, prosperidade econômica e justiça social a todos os países do continente.
Era o que tinha a dizer.
Muito obrigado.