Discurso durante a 28ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Análise dos anos anteriores ao golpe militar de 1964 e um balanço dos anos em que o Brasil viveu sob o comando dos militares. (como Líder)

Autor
Demóstenes Torres (PFL - Partido da Frente Liberal/GO)
Nome completo: Demóstenes Lazaro Xavier Torres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ESTADO DEMOCRATICO. FORÇAS ARMADAS.:
  • Análise dos anos anteriores ao golpe militar de 1964 e um balanço dos anos em que o Brasil viveu sob o comando dos militares. (como Líder)
Publicação
Publicação no DSF de 01/04/2004 - Página 8914
Assunto
Outros > ESTADO DEMOCRATICO. FORÇAS ARMADAS.
Indexação
  • ANALISE, AUSENCIA, ESTABILIDADE, POLITICA, EPOCA, HISTORIA, BRASIL, ANTERIORIDADE, GOLPE DE ESTADO, GOVERNO, REGIME MILITAR.
  • ANALISE, PERIODO, DITADURA, GOVERNO, REGIME MILITAR, EXTINÇÃO, ESTADO DEMOCRATICO, SIMULTANEIDADE, CRESCIMENTO ECONOMICO, PAIS.
  • REGISTRO, FRUSTRAÇÃO, EXPECTATIVA, POPULAÇÃO, ATUAÇÃO, MEMBROS, GOVERNO FEDERAL, VITIMA, PERSEGUIÇÃO, GOVERNO, REGIME MILITAR, MOTIVO, DEFESA, IDEOLOGIA, COMUNISMO.

O SR. DEMÓSTENES TORRES (PMDB - GO. Para uma comunicação de interesse partidário.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores:

“Não tenho para meu nariz

somente incenso ou aroma

Tenho este mundo matadouro

De peixe, boi, ave e homem”.

Sérgio Ricardo.

Na historiografia brasileira, o fim da ditadura Vargas representou formalmente a restauração do Estado de Direito, mas a sistemática instabilidade política que se seguiu, com recuos institucionais, conspirações, quarteladas, renúncia e golpe, mostrou ao País que a democracia ainda não era o seu verdadeiro abril. Em 18 anos, nove presidentes tiveram assento no comando da Nação, sendo que alguns ficaram no cargo por menos de uma semana. No pós-2ª Guerra, a música que o Brasil fazia de si mesmo era melancólica, uma canção em primeira pessoa, ensimesmada e doída. A fossa de um drama abolerado.

Até que vieram os anos JK e o Presidente Bossa Nova trouxe um sopro de modernidade e otimismo com seu frenético surto de desenvolvimento, inigualável charme e postura de estadista. No ritmo de uma batida diferente e de poética descontraída, aqueles 50 anos em 5 foram celebrados com tal encanto que a cultura brasileira, quase sem querer, um par de anos depois, foi ditar moda na capital do mundo e nunca mais saiu de evidência.

Movido por novos signos, naquele tempo, o País era só auto-estima: “Da janela se via o corcovado e o redentor”. No continente, a imagem era de Brasília, a obra majestosa de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. O Brasil se sentia urbano, industrial, de olho no presente, mas sem perder o lirismo “até o apagar da velha chama”. Pela primeira vez, na arquitetura, nas artes plásticas, na literatura, no cinema e na música, o hedonismo e a ideologia da libertação se afinaram para compor o momento mais criativo que a civilização brasileira conheceu. E, neste ambiente de “o amor, o sorriso e a flor”, um “chega de saudade” decretou da zona sul do Rio de Janeiro que estava aberta a temporada do País do Futuro.

Nos tempos que se seguiram à sucessão de Juscelino Kubitschek, o Brasil continuava sendo um lugar miserável e ermo em busca da passagem para o moderno. Na expressão da cultura popular já estava pronta a virada, com a locução definitiva da “estética da fome” com o livre pensar, cuja vanguarda foi buscar no sertão e no morro a consagração do Poema Sujo, do Teatro da Arena, da canção engajada, do Cinema Novo, além da revolucionária maneira de fazer jornalismo com a edição de O Pasquim.

Mas a vida política e institucional não foi tão auspiciosa e nem tardou chegar a “Manhã de Quarta-Feira de Cinzas”. Primeiro, veio o agosto, que encerrou o ciclo celerado da expansão populista do ex-Presidente Jânio Quadros. Entre os feitos da malsinada governança, a proibição do biquíni, a condecoração de Che Guevara, além da maior de todas as excentricidades: a renúncia desmotivada, é claro. Jânio Quadros, que pretendia um autogolpe para voltar nos braços do povo, levou o Brasil à véspera do abismo em um ato insano. Os militares que não confiavam no Vice-Presidente, João Goulart, um herdeiro sem talento do getulismo, tentaram a ruptura, mas estavam divididos. Acabou triunfando a Campanha da Legalidade, instaurada em Goiás pelo ex-Governador Mauro Borges e no Rio Grande do Sul, sob o comando do ex-Governador Leonel Brizola.

Veio a posse, sob a escapatória institucional do parlamentarismo que durou até que Jango, em 1963, retomasse os poderes presidenciais e selasse escada abaixo o destino da sua nunca elucidada República Sindical. Aquele momento histórico havia mandado um aviso que Goulart não teve sensibilidade política para entender. Após a crise dos mísseis em Cuba e a construção do muro de Berlim, o mundo passou a ter dois lados, e o Presidente do Brasil, pusilânime que era, imaginou que poderia sobreviver tateando os antagonismos. Era como se habitasse o universo de Pablo Neruda: “perto da água sem beber o frio, perto do fogo sem beijar a chama”. À insegurança política que o Governo Goulart transmitia juntou-se a anarquia econômica, com a composição explosiva de inflação com uma taxa de crescimento que, em 1963, era muito parecida com a quase recessão da Era Lula.

Jango foi um mito para a minha geração. Ela nasceu e cresceu durante a ditadura militar de 1964 e, naturalmente, nunca se conformou com o golpe que nos roubou a liberdade até a juventude. Hoje se sabe que o ex-Presidente não possuía as propriedades citadas na bula ideológica da esquerda. Ele não era o avesso, mas um tipo autoritário sem tutano. Aliás, Jango expressava uma demagogia destituída de carisma, e as faladas reformas de base, que nunca houve, configuraram-se apenas em uma intenção de oratória bravateira. Uma providência de palanque, irresponsável a ponto de galvanizar a antipatia de amplos segmentos da sociedade, da direita à esquerda. Até o dispositivo militar que Jango imaginava garantir os seus assombros populistas ruiu sem disparar um tiro, e o Brasil caiu nos braços do despotismo. Na contabilidade da história, começava a segunda ditadura do século.

Srªs e Srs. Senadores, os militares tomaram o poder sob o pretexto de sanar o País da rapinagem e da subversão comunista, prometeram que a internação seria breve e a medicação democrática, mas trouxeram 21 anos de mal-estar, quando considerado o custo social da exceção à liberdade. Direitos políticos cassados, suspensão das eleições diretas, censura, prisões arbitrárias, tortura e morte para justificar o combate a um mal: a corrupção, que não foi extirpada e até se aprofundou; e uma fantasia: o comunismo, que não passou de uma ameaça de festim.

Era um, eram dois, eram cem mil, em 1968, na passeata que correu o centro do Rio e foi o marco zero da resistência ao regime arbitrário, que logo depois recrudesceria a própria excrescência. Nos festivais, faziam-se os hinos para quem aprendeu a dizer não, viveu sem lenço e sem documento, acreditou ser proibido proibir, insultou os quartéis ao falar das flores e conheceu a cova e o degredo, quando ficou resolvido que a mão que tocava o violão faria a guerra.

Depois que o AI-5 rasgou o habeas corpus, dois brasis clandestinos passaram a enfrentar-se. De um lado, a tolice da resistência estudantil treinada por Fidel, que amava Che e Mao e imaginava tirar leite das pedras, sem medir as conseqüências do batismo de fogo. Do outro, a estupidez sem controle do braço covarde dos DOI-CODI e da articulação interamericana de propagação do terror do Estado, a Operação Condor.

A mesma cadeira do dragão que tragou o moral dos sobreviventes fez a vida dos torturadores e compôs a lista de mortos e desaparecidos, fritou os princípios da hierarquia e disciplina das Forças Armadas, que Jango demagogicamente achacou. A tortura corroeu o regime de 1964 por dentro. A redentora acabou exaurindo-se na baderna que se instalou no seu submundo, a partir da associação da dor com a corrupção, da autoridade militar com o pau-de-arara cruel e imundo das delegacias.

Sr. Presidente, a ruptura de 1964 não pode ser considerada um mal absoluto e nem interpretada sob a égide do maniqueísmo, pois é defesa qualquer tentativa de julgar a história. O regime militar imprimiu um crescimento econômico que fez o Brasil, até o final do Governo Ernesto Geisel, saltar da 40ª para a 8ª potência mundial. Um respeitável parque industrial foi consolidado e uma invejável infra-estrutura construída, com a inflação sob controle. Mas também é verdade que a utopia faraônica consumiu as forças do País em obras estabanadas, como a Transamazônica e a Ferrovia do Aço.

Iniciativas que levaram a lugar nenhuma e foram responsáveis por parte do endividamento externo que hoje inviabiliza o País. Além de ceifar a liberdade e impor os anos de chumbo, o maior pecado do sistema foi não ter acreditado na sociedade civil. É praticamente consensual a análise de que o Brasil ficou no meio do caminho, porque os militares sonegaram a educação e não distribuíram renda quando o bolo crescia a uma taxa superior a 8% ao ano.

Srªs e Sr. Senadores, em 1977, com apenas 16 anos, ingressei no Comitê Goiano de Anistia. Àquela época, apesar da distensão promovida pelo Governo Geisel, ainda doía a “memória de um tempo em que lutar por seus direitos era um defeito que matava” e valia a recomendação de “apare os seus sonhos que a vida tem dono e ela vem te cobrar”. Desde, então, nunca me furtei a participar da vida pública deste País e acredito que, em várias ocasiões, o Brasil perdeu a oportunidade de transformar em cicatriz as feridas abertas, especialmente pelos dois lados que se enfrentaram com “armas na mão”.

Sou um homem de formação de esquerda, conheci homens que tombaram ao enfrentar o regime de exceção pela via política e, justamente por valorizar os estatutos da democracia, definitivamente não louvo e não considero inocente quem se valeu do terrorismo para alcançar objetivos libertadores. Por outro lado, imagino que seria sadio à Nação o esclarecimento do que se passou nos escaninhos do sistema. Refiro-me, principalmente, à devolução dos corpos dos mortos e desaparecidos. As famílias têm o direito sagrado de enterrar os seus filhos, e isso não pode ser considerado revanchismo. Havia muita esperança de que, no poder, o Partido dos Trabalhadores - cujas cabeças coroadas sobreviveram à repressão depois de “tramar assaltos, guerrilhas e revoluções” - abrisse os arquivos da ditadura.

Estranhamente, fizeram como os governos anteriores e, conforme declarou o Ministro da Defesa, José Viegas, argumentaram que a papelada foi incinerada. Como já tive ocasião de manifestar nesta tribuna, tenho plena confiança no papel das Forças Armadas na garantia da Constituição, do Estado de Direito e da democracia. O Exército, a Marinha e a Aeronáutica desfrutam de extraordinário prestígio popular e, apesar da asfixia orçamentária a que estão submetidos, desempenham suas tarefas com o desvelo necessário. Acredito que chegou a hora de integrar as três Forças à missão de colaborar com o serviço de segurança pública, cuja modelagem está especificada em Projeto de Lei Complementar de autoria do brilhante Senador César Borges.

Sr. Presidente, não é possível redesenhar a história, mas se pode medir o quanto foi oneroso ao Brasil alimentar a ilusão de que a Esquerda era, por atavismo, culta, competente, solidária, dona da razão, justa e honesta. Quarenta anos depois, o Brasil, com extraordinário atraso, passa pela experiência de ser governado pelos sofismas que mantinham de pé os muros que, ao longo dos anos 80, caíram em todos os continentes, depois que o socialismo ruiu de podre.

Se há algo de que me arrependo foi de não ter votado no Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em 1989. Se Sua Excelência tivesse sido eleito, o Brasil já teria passado por todas as inomináveis bobagens infelizmente em vigor e teria hoje um relacionamento mais maduro e responsável com a esperança.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/04/2004 - Página 8914