Discurso durante a 28ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre o golpe militar de 1964. Leitura de trecho de crônica escrita por seu avô sobre aquele período da história do Brasil.

Autor
Ana Júlia Carepa (PT - Partido dos Trabalhadores/PA)
Nome completo: Ana Júlia de Vasconcelos Carepa
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ESTADO DEMOCRATICO. FORÇAS ARMADAS.:
  • Considerações sobre o golpe militar de 1964. Leitura de trecho de crônica escrita por seu avô sobre aquele período da história do Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 01/04/2004 - Página 8923
Assunto
Outros > ESTADO DEMOCRATICO. FORÇAS ARMADAS.
Indexação
  • ANALISE, NOCIVIDADE, EFEITO, ATUAÇÃO, GOVERNO, REGIME MILITAR, BRASIL, IMPORTANCIA, MANUTENÇÃO, ESTADO DEMOCRATICO, ATUALIDADE.
  • COMENTARIO, LEITURA, ARTIGO DE IMPRENSA, AUTORIA, JUIZ DO TRABALHO, PARENTE, ORADOR, CRITICA, FALSIDADE, ATUAÇÃO, GOVERNO, REGIME MILITAR, BRASIL.

A SRª ANA JÚLIA CAREPA (Bloco/PT - PA. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Senadora Presidente, Srªs e Srs. Senadores, público que nos assiste e que nos ouve, seria difícil não falar sobre o golpe militar de 64, que foi um equívoco a começar da data da sua eclosão. Até o último minuto de 31 de março daquele ano, João Goulart continuava Presidente da República, sendo o cargo declarado vago pelo Presidente do Congresso Nacional, Auro de Moura Andrade, somente em 01/04/1964, verdadeiramente o marco inicial da ditadura.

Disse o companheiro Chico Alencar, Deputado Federal pelo Rio de Janeiro:

O 31 de março foi para fugir do Dia Internacional da Mentira, criação popular do período do Absolutismo francês, quando os reis mudavam até o calendário para iludir as massas.

Quarenta anos depois, é até possível abordar com uma dose de ironia aquele período. No entanto, para quem enfrentou a truculência do regime, para as famílias que perderam entes no enfrentamento, para quem viveu o sobressalto da vontade tolhida, do grito preso na garganta, amanhã é um dia de reflexão e reafirmação do compromisso com a construção de uma sociedade fundada na liberdade, na justiça social e na solidariedade.

É dia de reafirmar um “nunca mais” à exceção, ao arbítrio e à perseguição política, dos quais foram vítimas, em meu Estado do Pará, imediatamente após o golpe, Carlos Sá Pereira, Presidente do Sindicato dos Petroleiros; o Secretário do Partido Comunista Brasileiro em Belém, Humberto Lopes; o poeta Ruy Barata e o Deputado Estadual Benedito Monteiro, ambos ligados ao PCB; o Coronel reformado da Aeronáutica e membro do PSB, o paraense Jocely Brasil; os Líderes do PSB Hélio Gueiros e Laércio Barbalho; o Presidente da União dos Lavradores da Zona Bragantina, Benedito Serra, que, morto em 18/05/1964, teve registrada como causa de sua morte a hepatite aguda; e tantos outros que ousaram lutar para que o País não mergulhasse nas trevas daquela aventura militar, muitos pagando com a própria vida tamanha “ousadia”.

Quando eu tinha sete anos de idade, meu avô Cássio escreveu uma crônica que bem refletiu o clima que atingia o País e o Pará naquele momento. Vovô Cássio, que era o Dr. Cássio Estanislau Pessoa de Vasconcelos, Juiz do Trabalho, aposentou-se por doença - câncer - e posteriormente perdeu a vontade de lutar pela vida, por desgosto pela situação política do País. Pois bem, ele dirigiu-se aos netos de forma muito tocante. Como tomamos conhecimento do inteiro teor dessa crônica apenas este ano, permito-me reproduzir parte do texto, que assume grande importância, porque traz, em seu bojo, um retrato vivo dos males de uma ditadura:

Neste 10 de outubro, que vê nascer esta pobre, enfezada e mascarada “democracia” em que vivemos, por condescendência e favor do Alto Comando e de seu filho, o Ato “Prostitucional”, eu falo aos meus netos já que não posso falar a mais ninguém.

É a você que eu me dirijo, porque, se estas palavras chegassem a outros ouvidos, toda a nossa família seria mais sacrificada, mais vilipendiada, tragada...

A SRª PRESIDENTE (Lúcia Vânia. PSDB - GO) - A Presidência se associa à emoção de V. Exª.

A SRª ANA JÚLIA CAREPA (Bloco/PT - PA) -

...irremissivelmente por este mar de trampa que está tragando tudo: brio, vergonha, honra, justiça, ordem.

A inveja, a calúnia, o arbítrio, a violência são virtudes. A simulação, a contrafação são as roupagens que vestem tais virtudes.

Uma fauna variada e heterogênea espalha-se por toda parte: serpentes inoculam nas vítimas previamente marcadas venenos mortais; cães rabeiros e fedorentos lambem os pés dos donos e a um sinal destes investes contra o incauto, para em seguida, retornar mais vis, mais fedorentos, balançando a cauda como que a indagar se cumpre bem a missão torpe. Peixes vorazes, tubarões e agulhas inconscientes e paranóicos, destroçam tudo e todos. Seu fim - matar, seu prazer - matar, sua preocupação única - matar, matar sempre. Mas matar o mais fraco, o desprevenido, o desarmado; não o superior, não o mais forte perante os quais se agacham como sapos. Araras e papagaios repetem sons a outros papagaios e outras araras. Nos ares voam passarinhos, outrora presos em gaiola humilde e agora soltos querem voar, voar mais alto, sempre. Nada lhes importa, a chacina, a devastação, que mal distinguem de lá de cima. O que importa é subir, subir até o céu.

Esse era o espírito de quem viveu e sofreu na carne aquele período.

Mas não apenas de arbítrio viveu o Brasil da ditadura. Aqueles governos nos legaram uma bomba-relógio social e econômica, na forma de um modelo de desenvolvimento que aprofundou a dependência do país ao centro do capitalismo mundial, e ampliou muito mais ainda a concentração de renda.

A sanha repressiva castrou toda uma geração de brasileiros e brasileiras do acesso a algumas das melhores coisas que a cultura brasileira já produziu. Além das aposentadorias compulsórias de professores, o que empobreceu e atrasou a produção acadêmica brasileira, a censura se abateu sobre todas as formas de produção de idéias, atingindo desde obras como Feliz Ano Novo, de Rubens Fonseca, até novelas, como “Roque Santeiro”, de Dias Gomes. Era uma verdadeira ode à ignorância e ao obscurantismo, onde a brutalidade muitas vezes ganhava contorno de ópera bufa, como no famoso episódio onde um censor procurava o autor grego Sófocles, para prendê-lo em razão de uma de suas peças...

Entretanto, a face mais desumana deste período certamente apareceu na institucionalização da tortura como política de Estado. Já não há mais dúvida de que a tortura era um método sancionado pelo alto comando da Ditadura. As versões, hipocritamente repetidas de que a tortura seria uma prática de exceção, contra inclusive as ordens da cúpula dos governos militares, tornou-se insustentável após as revelações trazidas à luz, entre outros, pelo jornalista Élio Gaspari, que demonstram seu conhecimento e acobertamento pelas mais altas autoridades do regime.

O Brasil, sob a égide da doutrina de segurança nacional foi transformado em um país em guerra, onde de um lado estavam os militares que sustentavam o regime e, de outro, toda e qualquer oposição, possuísse a cor que tivesse.

Não sofri pessoalmente as grades ou a tortura, mas conheci pessoalmente algumas das vítimas da tortura: Humberto Cunha, ex-vereador em Belém, Iza Cunha, que inclusive já faleceu, Hecilda Veiga, socióloga e hoje professora da UFPa, Paulo Fonteles, ex-deputado estadual do PC do B, assassinado por mando do latifúndio do Pará, enfim, uma lista vergonhosamente enorme cujas publicações do projeto Brasil Nunca Mais trazem em toda a sua extensão.

O assassinato dos membros da Guerrilha do Araguaia, que ocorreu quando esses já estavam presos e absolutamente impossibilitados de reagir, com a seguida ocultação de seus cadáveres, revela bem a extensão da covardia com que operava a lógica da ditadura, covardia essa que certamente alcançou seu ápice no atentado terrorista praticado contra a comemoração do Dia do Trabalho no complexo do Riocentro no Rio de Janeiro.

A máscara de moralização da administração pública, que serviu no início para encobrir o ataque a opositores que não podiam ser apresentados publicamente, nem de longe, como comunistas ou guerrilheiros, desmanchou-se em escândalos de corrupção como a Capemi e o Caso Coroa/Brastel, isso sem falar naquilo que a pesada censura conseguiu esconder. Como toda ditadura, a nossa também foi um mar de falcatruas.

Como é boa a democracia que permite que um cidadão, general reformado chamado Carlos de Meira Mattos, faça um elogio à ditadura militar no jornal Folha de S.Paulo, esquecendo a história de falcatruas e corrupção da época da ditadura.

Hoje, restaurada a dignidade e resgatados os escrúpulos de consciência, o País vive em um clima de maturidade institucional, tendo atravessado, sem sobressaltos, a deposição de um Presidente da República, e festeja, cívica e democraticamente, a sucessão entre partidos adversários. E quem avaliza essa normalidade é a sociedade brasileira, que foi às urnas brigar pelo direito de eleger seus governantes e de apeá-los, democraticamente, quando não honrarem o voto popular.

Enfim, hoje podemos afirmar que os vinte anos de ditadura serviram para mostrar que o povo brasileiro ama a liberdade, a democracia e nunca mais deixará que os abutres do arbítrio lancem suas asas sobre nosso País.

Srª Presidente, agradeço-lhe a solidariedade e registro o que disse uma ex-guerrilheira e historiadora Jesse Jane: “Enquanto os cadáveres não saírem dos armários, a História não será passada a limpo”.

Seria impossível, neste dia, deixar de fazer esse registro histórico.

Estou estudando, com minha assessoria, uma forma de indicar ao Conselho de Educação, que determina o currículo básico, que essa data seja discutida em todas as escolas brasileiras do ensino fundamental ao superior. Isso para que as nossas crianças e a nossa juventude tenham sempre a história na mão e possam seguir em frente defendendo a democracia. Isso, sim, um valor. Que nunca mais esses - como se diz aqui - abutres possam voltar a governar este País. Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 01/04/2004 - Página 8923