Discurso durante a 38ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Transcurso do Dia do Índio. Situação dos indígenas no Brasil.

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PPS - CIDADANIA/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA.:
  • Transcurso do Dia do Índio. Situação dos indígenas no Brasil.
Aparteantes
Mão Santa.
Publicação
Publicação no DSF de 17/04/2004 - Página 10442
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA NACIONAL, INDIO.
  • REGISTRO, AMPLIAÇÃO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, DIREITOS, PROTEÇÃO, INDIO.
  • ANALISE, DADOS, FUNDAÇÃO NACIONAL DO INDIO (FUNAI), SITUAÇÃO, INDIO, BRASIL, ATUALIDADE.
  • QUESTIONAMENTO, ATUAÇÃO, INFLUENCIA, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), CONSELHO INDIGENISTA, CRITERIOS, DEMARCAÇÃO, TERRAS INDIGENAS.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quero hoje, nesta sexta-feira que antecede o Dia do Índio, que vai ser comemorado na próxima segunda-feira, dia 19, trazer algumas reflexões sobre o tema.

No Brasil, o índio, depois da Constituição de 1988, passou a ter a merecida atenção dos brasileiros, principalmente no tocante ao resgate de sua cidadania, de sua condição de ser humano à busca de seus diretos. Isso nos faz lembrar do primeiro brasileiro a cuidar seriamente do problema, o Marechal Rondon. Isso nos leva a refletir que, desde a época do Serviço de Proteção ao Índio, comandado pelo Marechal Rondon, o Brasil vem buscando proteger seus índios, garantindo não só a sua sobrevivência, como o seu aumento populacional e também o resguardo dos seus direitos.

A Constituição de 1988, Sr. Presidente, ampliou os direitos indígenas, principalmente no que tange à propriedade das terras, para que sua subsistência, a procriação e o conseqüente aumento populacional sejam garantidos, como também uma vida mais digna.

Como Constituinte, orgulho-me de ter participado daqueles debates. Quando Deputado Federal, fui membro da Comissão do Índio quando o falecido Deputado Juruna era o símbolo da presença da comunidade indígena no seio da Nação brasileira.

E hoje, Sr. Presidente, precisamos fazer, sem nenhuma ideologia, sectarismo ou outras conotações, uma reflexão sobre a questão indígena no País.

Inicialmente, devemos conhecer o total da população indígena do País. Segundo a Funai, há dois números: 320 mil e 410 mil índios - fico com os 410 mil índios. Portanto, os descendentes dos habitantes do Brasil quando da chegada de Pedro Álvares Cabral correspondem, mais ou menos, a 0,2% da população brasileira. Quanto às terras hoje demarcadas, essa população dispõe de 12% do território nacional.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em nenhum país há essa correlação. Nesse particular, o Brasil está de parabéns. No entanto, a minha preocupação é no sentido de que a política indigenista do País não é mais comandada pela Funai, mas por organizações não-governamentais. À frente, temos o Conselho Indigenista Missionário, que implantou, em cada Estado, um conselho indígena que segue as suas orientações. As outras organizações atuam de maneira coadjuvante, mas o certo é que a Funai hoje não comanda mais a política indigenista do País, apenas chancela e executa aquilo que o Cimi, Conselho Indigenista Missionário, determina.

Como brasileiro, Senador da República, não possa aceitar que seja tirado do Estado brasileiro o comando da questão indígena. Ela é muito importante, envolve terras, fronteiras, domínio da biodiversidade brasileira, de minérios estratégicos. Não posso aceitar que tudo isso fique nas mãos de organismos que nem sequer podem ser fiscalizados pelo Poder Público, pois não existe legislação que permita a fiscalização adequada dessas instituições nacionais ou internacionais.

Presidi a CPI das ONGs e tenho certeza de que grande maioria delas é séria. Contudo, como sei que há dez instituições com irregularidades, propus uma regulamentação cuja votação é sempre adiada por manobras feitas para procrastinar, protelar. Será que as ONGs sérias não se beneficiariam da regulamentação legal da sua atuação? Por que evitariam que ONGs picaretas, como, por exemplo, a ONG indicada pela CPI, a Cumpir, no Estado de Rondônia, em que foi detectado, pela própria Funasa, o desvio de R$2 milhões de recursos que seriam aplicados na saúde indígena daquele Estado. Quando isso foi constatado, o responsável pela ONG disse que não havia ficado com o dinheiro, apenas não havia pegado as notas fiscais, mas tinha comprado combustível, remédios, enfim, aplicado o dinheiro. Ou seja, dinheiro público repassado pela Fundação Nacional de Saúde é desviado e fica por isso mesmo?!

Desta tribuna, pedi providências ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal e ao Tribunal de Contas da União para que o caso seja muito bem apurado, afinal de contas, é nosso dinheiro, dos impostos que pagamos.

Sr. Presidente, ao lembrar o Dia do Índio, na próxima segunda-feira, preocupa-me ver que o Brasil está perdendo o controle dessa segmento. Já citei aqui o Cimi, um braço, uma vertente da Igreja Católica, como foi o que participou da Inquisição e das chamadas Santas Cruzadas, que cometeram barbaridades enormes em nome da fé, em nome de Deus. Hoje, o Cimi prega, de Estado em Estado, a violência, a subversão da ordem e, o que é pior, fabricando, como na época da Inquisição e das Santas Cruzadas, “verdades”, para não dizer mentiras, quanto à questão indígena no País. Isso vem acontecendo de norte a sul, de leste a oeste.

Não é por acaso que me dedico ao tema. Em meu Estado, 8% de nossa população é de índios. Desses, cerca de 80% moram nas cidades e apenas os 20% restantes, em aldeias. Mesmo esses aldeados podem residir nas cidades, até podem plantar nas aldeias e vender nas cidades, como se fosse um sítio, o que considero justo e até advogo. No entanto, 8% da população do meu Estado detém a posse de 57% das terras, as reservas indígenas, que já somam 32 demarcadas no Estado de Roraima. Agora, pretendem demarcar a 33ª de acordo com a imposição do Cimi hoje defendida pela Funai.

Essa posição foi insistentemente estampada na mídia nacional e internacional. E aquela história: uma mentira repetida várias vezes termina sendo aceita como verdade. Tudo começa com o nome da reserva: Raposa Serra do Sol. Quem ouve esse nome pensa que se trata de apenas um lugar: Raposa Serra do Sol Mas não é. Quando a Funai iniciou a demarcação da área, primeiramente queria a reserva da Serra do Sol, que fica no norte, perto do Monte Roraima, e a reserva da Raposa, lá embaixo, distando 150 quilômetros uma da outra.

Pois bem, ao longo desse tempo, o Cimi e o CIR foram subdividindo as comunidades indígenas da seguinte maneira: onde existiam duas ou três comunidades de cem famílias, por exemplo, que aceitavam o comando do CIR, ela tomou duas famílias e fez outra comunidade; mais dez famílias, outra comunidade, e assim por diante. Existe comunidade formada por apenas uma família. Criou-se um monte de líderes indígenas fictícios. A maioria da população indígena residente naquela região não quer a demarcação como defende o Cimi e a Funai, que levam para o mundo uma mentira a respeito da realidade daquela região.

Não estou aqui questionando que os não-índios não querem a demarcação, ou que essa demarcação coloca em risco a soberania nacional porque está numa fronteira entre dois países em litígio por espaço territorial - Venezuela e a Guiana. Também não estou aqui questionando, por exemplo, que, demarcando-se da forma pretendida, o Estado de Roraima vai perder a única fonte de produção que tem hoje, o arroz, uma vez que já se fechou a mineração e a pecuária naquela região. Agora, pretende-se fechar a produção de arroz, a única com destaque na região. Não questiono nada disso. Mas, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, nem sequer ouvir os índios que moram lá e que não desejam essa demarcação é, no mínimo, tentar tapar o sol com a peneira, desvirtuar a verdade, e, portanto, não aceitar que as coisas ocorram de maneira transparente e séria. Estou trazendo aqui essas reflexões para que possamos, no Dia do Índio estabelecer um marco de mudança para nacionalizar a nossa política.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR) - Ouço, com muito prazer, o aparte de V. Exª.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Nobre Senador Mozarildo Cavalcanti, acho que nenhum Senador tem representatividade e responsabilidade tão grande como V. Exª. Com muito orgulho para todos nós, V. Exª representa aqui a classe médica; representa a Maçonaria, instituição secular que trouxe a Independência; representa o bravo povo de Roraima. Entendo ainda que V. Exª, neste instante, representa a luta dos índios, a defesa, a luz, a bússola, o discernimento. Quis Deus estar em minha mão o livro Grandes Vultos que Honraram o Senado, de Darcy Ribeiro. O primeiro discurso de Darcy Ribeiro nesta Casa foi precisamente em 20 de março de 1991. O Professor Darcy Ribeiro, que fundou a UnB, que criou, juntamente com Leonel Brizola, os Cieps, esse grande educador diz o seguinte:

Um tempo sem Rondon

Invoco, primeiro, o herói da minha juventude e dos primeiros passos de minha vida profissional - o Marechal Rondon. Ele foi, a meu ver, o maior dos brasileiros no plano humanístico. Com Rondon aprendi a amar e a respeitar a natureza brasileira e, especialmente, os índios.

Para ser sintético, V. Exª representa, na nossa história, Rondon e também Darcy Ribeiro.

E ele termina:

Só me cabe dizer aqui, agora, lamentando sentidamente, que esta nossa Nação brasileira não precisa mais de índio nenhum para existir. Mas não existirá jamais, em dignidade e vergonha, se deixar morrerem - morrerem até de suicídio - os poucos índios que sobreviveram à invasão quinhentista.

As terras eram dos índios e foram invadidas. No meu Piauí, no delta do Parnaíba, existia a tribo dos tremembés. Os portugueses mataram todos, sob o comando de Jorge Velho. Então, que sirva isso de alerta. Ninguém melhor do que V. Exª tem a responsabilidade de salvaguardar a nossa história indígena.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR) - Agradeço-lhe, Senador Mão Santa, o aparte. E, como V. Exª tocou nesse ponto, quero dizer-lhe que foi como médico que aprendi a conhecer os índios. Como médico recém-formado e, depois, ao longo da minha profissão no Estado, atendendo, juntamente com a Igreja Católica, à população indígena que tive a oportunidade de conhecer todas as comunidades indígenas e a sua realidade. A saúde dessas comunidades é precária. A maior reserva indígena do Norte do Brasil, que abrange o meu Estado e o Estado do Amazonas, a reserva indígena ianomâmi se impôs, apesar de ter sido alvo de disputa interna e externa. Só no meu Estado, ocupa uma área de 9 milhões de hectares, para cerca de quatro ou cinco mil índios. Como estão os índios lá? Estão no paraíso, conforme foi apregoado?

Não. Os índios estão daquela região estão morrendo de oncorcecose, doença endêmica transmitida por um mosquito e ocasiona cegueira precocemente e distrofias. Quanto à alimentação, os índios se alimentam precariamente e comem as larvas das pulgas dos cachorros, nosso conhecido bicho-de-pé. Estive lá recentemente, acompanhando uma comissão parlamentar que esteve visitando a região de Surucucu, e fiquei, como médico, como ser humano, deprimido ao ver as condições muito precárias em que vivem aqueles índios.

Lá, Senador Mão Santa, há uma ONG que recebe quantia quase equivalente ao que recebe a metade dos Municípios do interior para assistir a toda população. Essa ONG recebe o mesmo valor para dar assistência aos cerca de seis mil índios. A qualidade de vida dos índios não melhorou, mas a dos donos da ONGs, sim. Em Roraima, consta que eles têm uma farmácia muito moderna, são proprietários de carro atuais.

Existe uma outra ONG que cuida também da saúde indígena de Roraima, que é o Conselho Indígena de Roraima. Juntas, essas duas ONGs recebem mais recursos para a saúde - se atendessem a toda a população indígena, mas só prestam assistência primária a uma parte da população indígena que está aldeada - do que recebem todos os Municípios do interior do meu Estado.

Já fiz essas denúncias e as tenho reiterado. Entendo que devemos, sim, preocupar-nos com o índio como pessoa humana, ver o que querem efetivamente, e não saber o que o antropólogo quer que ele queira. Os índios hoje sabem se manifestar. Há índios fazendo mestrado, e queremos manter os índios como se estivessem ainda no momento em que Pedro Álvares Cabral chegou aqui.

É o momento para que todos nós que nos interessamos pela causa indígena, que pensam de um jeito ou de outro, possam encontrar inteligentemente um caminho para efetivamente trabalhar pelo índio, para o índio, e não para instituições que se dizem defensoras e procuradoras dos índios. Conheço, por exemplo, a fotógrafa Cláudia Andujar, que dizia que era uma missionária heróica no meio dos ianomâmis. Ela vendia as fotografias dos índios na Europa, a peso de ouro. Isso nunca foi coibido. Hoje, essa ONG que atua lá é ligada a essa pessoa.

Precisamos passar a limpo essa história da questão indígena, para que os 410 mil índios - ou mesmo que fossem um milhão de pessoas - tivessem mais dignidade para viver, oportunidade de acesso à escola. No meu Estado, apesar de absurdos de reservas indígenas, há em todas comunidades indígenas escola mantida pelo Estado de Roraima, portanto, pelo Governo estadual, inclusive escola de 2º grau. Há até, em algumas comunidades, cursos de extensão da universidade.

A Universidade de Roraima mantém um projeto só para indígenas, e o Governo do Estado fez um convênio para formar professores indígenas no nível de 3º grau. Somos um dos poucos Estados que possuem uma Secretaria do Índio, dirigida por um índio, que, por sinal, é antropólogo. Estamos dando um exemplo de como queremos cuidar da cultura indigenista, tratando da pessoa do índio, e não, como certas instituições, que se dizem porta-vozes mas sem ter procuração dessas comunidades.

Li hoje, no jornal Correio Braziliense, que estão acampados em frente ao Ministério da Justiça 100 mil índios de todo o Brasil, para pedir a demarcação da reserva Raposa Serra do Sol. Quantos índios de lá estão aqui? Quatro, do CIR, que foram trazidos para cá. Quem pagou a passagem deles e desses cerca de noventa para se acamparem aqui? Como estão mantendo esses índios aqui? Pelo que sei, os índios não têm esses recursos.

É preciso bastante seriedade com este assunto. Nesse sentido, a partir de segunda-feira, iniciaremos um debate desapaixonado, ouvindo todos os pontos de vista e acabando com essa história de que alguém é o dono da verdade a fim de não repetirmos inquisições ou cruzadas, como antigamente, em nome da fé ou em nome de Deus. Não acredito que o Cimi represente o pensamento da Igreja Católica.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/04/2004 - Página 10442