Discurso durante a 58ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Desequilíbrios na economia brasileira devido a crises externas. Proposta de um "choque social" no Brasil, representado por maiores investimentos no setor educacional.

Autor
Cristovam Buarque (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIO ECONOMICA.:
  • Desequilíbrios na economia brasileira devido a crises externas. Proposta de um "choque social" no Brasil, representado por maiores investimentos no setor educacional.
Aparteantes
Alvaro Dias, Ramez Tebet.
Publicação
Publicação no DSF de 19/05/2004 - Página 14966
Assunto
Outros > POLITICA SOCIO ECONOMICA.
Indexação
  • NECESSIDADE, INICIATIVA, LEGISLATIVO, CRIAÇÃO, PROJETO, DESENVOLVIMENTO SOCIAL, DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL, BRASIL, OBJETIVO, CRESCIMENTO ECONOMICO, PAIS, REDUÇÃO, EFEITO, CRISE, ECONOMIA INTERNACIONAL, ECONOMIA NACIONAL.
  • COMENTARIO, GRAVIDADE, PROBLEMAS BRASILEIROS, BRASIL, COMPARAÇÃO, SITUAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO.
  • IMPORTANCIA, CRIAÇÃO, AMPLIAÇÃO, DIVERSIDADE, BENEFICIO, NATUREZA SOCIAL, ATENDIMENTO, NECESSIDADE, TRABALHADOR, APOSENTADO, OBJETIVO, COMPLEMENTAÇÃO, VALOR, SALARIO MINIMO.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs Senadoras e Srs. Senadores, por diversos discursos ontem aqui e pelo noticiário da imprensa, vemos voltar a rondar, no Brasil, a sombra da crise econômica importada do exterior.

Mais uma vez, começa-se a falar que de fora vem uma crise econômica. E, de fato, sabemos que a economia brasileira, como qualquer outra economia no mundo global de hoje, carrega uma instabilidade decorrente das relações internacionais.

Entretanto, em primeiro lugar, é preciso dizer que o dever de casa vem sendo feito pela equipe econômica do Governo do Presidente Lula. Não podemos deixar de reconhecer no Ministro Palocci o esforço para cumprir tudo aquilo que é necessário para que a economia brasileira resista às pressões internas para que se desequilibre e às pressões externas para também provocar desequilíbrios.

Sr. Presidente, quero dizer que o problema é muito menos de desequilíbrio provocado por razões importadas e muito mais de dois tipos de desequilíbrios profundos que vivemos dentro do Brasil.

O primeiro é o cansaço, lá fora e aqui dentro, de propostas, de dentro do próprio Governo, para mudar a política econômica, enfraquecendo a política vigente. O segundo refere-se ao fato de termos deixado de ver uma sombra muito forte e pesada, uma ameaça muito mais séria do que o risco de uma crise econômica. Essa sombra, esse problema, esse desequilíbrio é a tragédia social brasileira.

Hoje, estamos vivendo o Dia Internacional da Luta contra a Exploração Sexual de Adolescentes e de Crianças. Enquanto falamos de crise econômica que pode chegar ao Brasil, esquecemos que o nosso País faz parte de um seleto grupo de países no mundo - não mais que cinco -, vistos como ponto do turismo sexual de menores. Isso parece que não provoca a nossa indignação, mais preocupados com a taxa de juros do que com a taxa de crianças obrigadas a se prostituírem.

A prostituição infantil e a prostituição de adolescentes são conseqüências diretas dessa tragédia social que pesa sobre o Brasil. E, mais grave, Sr. Presidente, é essa tragédia social que não apenas dificulta a nossa recuperação, como provoca crise interna.

Há três ou cinco anos atrás, a Argentina vivia uma desarticulação muito mais forte do que a nossa. Pois a Argentina, hoje, já começa a se recuperar de uma maneira muito mais rápida e segura do que o Brasil, porque aquele país tem um passado de investimento no social. A Rússia, que foi um país praticamente destruído pela crise econômica nos últimos dez anos, dentro de cinco anos, não tenho dúvida, voltará a ser uma potência internacional. Assim, também, a Coréia do Sul, a Malásia, a Islândia, a Irlanda, a Espanha, enfim, países que atravessaram crises e que há 30 anos tinham a mesma condição social que o Brasil hoje são exemplos de países que crescem e se superam, deixando o nosso País para trás.

Por isso, Sr. Presidente, volto a insistir, não podemos correr o risco de um desequilíbrio econômico por provocações à atual política, que está fazendo aquilo que é necessário. Para tanto, quero aqui defender, propor e cobrar do Senado que façamos, dentro de todas as limitações que aí estão, um choque social que faça no Brasil duas coisas: construa um colchão social que impeça que a crise, se chegar, vire tragédia; e, mais do que isso, faça com que esse choque social seja um instrumento de dinâmica econômica para o Brasil, invertendo a lógica dos últimos 50 anos, de que a pobreza se resolve pelo crescimento econômico, para uma lógica na qual o crescimento econômico decorre dos investimentos sociais. Ou seja, ao mesmo tempo que podemos enfrentar o problema social, podemos criar uma dinâmica para voltarmos a ter crescimento econômico.

Para se ter uma idéia, Sr. Presidente, se assumíssemos o compromisso, todos nós, juntos, de levarmos adiante um programa de recuperação da educação brasileira, não tenham dúvida de que haveria geração de emprego, por causa das obras que seriam necessárias, e uma dinâmica econômica com geração de emprego, em virtude do aumento do salário dos professores.

Se colocássemos, em cada uma das 180 mil escolas do Brasil, 10 computadores - o que não é muito -, haveria a aquisição de praticamente dois milhões de computadores, o que significaria o desenvolvimento do setor de produção de computadores, ou seja, haveria geração de empregos nessa indústria. E fala-se que isso custa muito, mas não vou falar agora quanto custa, porque quero referir-me, de uma maneira mais ampla, sobre esse choque social.

Se definirmos com vigor - o que não foi feito ainda - a idéia de abolir o analfabetismo de adultos, poderemos criar 100 mil empregos de alfabetizadores por quatro anos apenas, sem carteira profissional; mas são R$300,00 pagos por mês a jovens desempregados que se transformariam em alfabetizadores.

Se decidíssemos colocar água e esgoto em todas as casas deste País, poderíamos criar um milhão de empregos, e esses trabalhadores receberiam apenas o salário mínimo. Mas, no final, além do salário mínimo, que é pequenininho, esses trabalhadores - mesmo aqueles que nem emprego têm - teriam aquilo que ainda parece luxo no Brasil: água e esgoto em suas casas.

Se fizéssemos um programa para garantir que o Governo Federal nos trouxesse o projeto do fundo de desenvolvimento da educação básica, poderíamos dar um salto de qualidade na educação brasileira. Se simplesmente déssemos um prazo para este País abolir o trabalho e a prostituição infantis - que ainda nos envergonham -, estaríamos não apenas pagando uma dívida social, mas gerando uma dinâmica, porque, em cada lugar em que se implanta um programa como o Bolsa-Escola ou o Bolsa-Família, criamos uma dinâmica econômica. Creio que, na sexta-feira, o Senador Mão Santa explicou como que gastar dinheiro gera dinheiro.

Proponho tudo isso, Sr. Presidente, com toda a responsabilidade fiscal, sem aumentar os gastos além da renda, dos recursos, da disponibilidade do setor público. Um programa, um choque social neste País não exigiria mais de R$6 bilhões. Bastaria dobrar o fundo de erradicação da pobreza, que já existe - criado neste Senado -, e estaríamos dando o salto há tantos anos desejado pelo Brasil, que ainda não teve a ousadia de fazê-lo porque esse assunto não toca nos interesses das classes mais privilegiadas.

Quando percebemos que a poliomielite se espalhava neste País, estendendo-se também aos ricos, soubemos abolir a doença. Se analfabetismo pegasse, não tenham dúvida de que ele já teria sido abolido. Mas como o analfabetismo e a fome são problemas que permanecem nas classes mais pobres, a elite brasileira não desembolsa o mínimo necessário para resolvê-los.

Sr. Presidente, isso é possível, e creio que não podemos deixar a questão apenas nas mãos do Executivo. Se o Poder Executivo quer nos enviar um pacote para dar um choque social no Brasil, creio que cabe a nós agilizar o processo para que a matéria seja aprovada. Nunca é tarde e nunca é demais lembrar que o Projeto de Lei da Abolição da Escravidão levou apenas cinco dias no Parlamento para ser aprovado. Mas se o Governo, se o Poder Executivo não se interessa em nos enviar um pacote que permita um choque social que leve à abolição da pobreza - não em um ano, nem em dois, três ou cinco anos, mas em dez ou quinze anos; mas não adiando para começar daqui a um ano e, sim, começando já -, que nós, Senadores da República, tenhamos a ousadia e a responsabilidade de tomarmos a dianteira para viabilizarmos o projeto. Isso é fácil fazer, isso é possível fazer. Para isso, temos os recursos necessários com responsabilidade financeira.

O que falta é quebrar a lógica da maneira pela qual vimos governando este País pelos últimos 50 anos: observar a abolição da pobreza como conseqüência do crescimento econômico desde o tempo em que se dizia “fazer o bolo para depois distribuí-lo”. Invertamos essa lógica, percebamos que o investimento no social gera emprego, gera crescimento e gera, sobretudo, a estabilidade social neste País.

Quando vejo todos assustados com o risco de importação de uma crise, o que mais me preocupa não é a crise financeira que venha a ocorrer, o que mais me preocupa é que essa crise financeira, se chegar aqui, vai encontrar um País que ainda não investiu o que precisa na educação, na saúde pública, na higiene e nas favelas. Os outros países enfrentam crises financeiras e, quando saem delas, o seu povo já tem escola pronta; o seu povo já tem o sistema de saúde pronto, como ocorre com a Rússia atualmente, ao sair da crise. E o Brasil, entra crise e sai crise, adia sempre a solução do problema social.

Sr. Presidente, peço autorização a V. Exª para conceder um aparte ao Senador Ramez Tebet.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB - MS) - Senador Cristovam Buarque, não quero que V. Exª desça da tribuna com as suas considerações adequadas sem que receba da minha parte, como tenho certeza que de toda a Casa, a manifestação de que é por aí mesmo. Afinal de contas, o que V. Exª está sustentando? Que se tivéssemos um quadro social menos dramático, um quadro social aceitável, um quadro social de boa prestação de serviços no campo da educação, no campo da saúde, suportaríamos qualquer tempestade que viesse do exterior. Porém, no Brasil, a qualidade dos serviços não é boa, e arrastamos algumas chagas que, positivamente, nos envergonham. Na semana passada, da tribuna que V. Exª com tanto garbo ocupa neste momento, ouvimos a Senadora Patrícia Gomes, que preside a CPMI encarregada de averiguar os crimes sexuais, falar sobre as crianças que são vítimas desses abusos, falar sobre a prostituição. S. Exª fez uma narrativa dramática, pungente. Portanto, diante desse quadro que está aí, temos que voltar os olhos para a crise social. Por isso, digo: não podemos governar só com números, Senador Cristovam Buarque, é muita insensibilidade observar apenas os números, observar apenas a questão fiscal, fazer economia para pagar juros! Não podemos continuar mais assim, porque se vai chegar ao ponto da insensibilidade. Aliás, V. Exª, no seu pronunciamento, refere-se a questões que, no Brasil, já estão meio banalizadas, ocorrem todos os dias, praticamente todas as horas. Parece que as pessoas já não estão tão indignadas diante de um quadro assustador como esse, que é o quadro social brasileiro. Quero juntar a minha voz - aceite-a, é humilde, mas é sincera - à de V. Exª.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Senador Ramez Tebet, V. Exª traz a esta Casa a lembrança de uma comparação que faço neste momento com muita vergonha de ser brasileiro: lembro a todos os que estão me ouvindo que, nas últimas semanas, o mundo inteiro se horrorizou com as cenas do que foi feito no Iraque pelo exército americano. O mundo inteiro se horrorizou com aquilo. Se mostrássemos ao mundo inteiro a prostituição de nossas meninas e nossos meninos, aquilo que o exército americano fez com os presos iraquianos seria visto como algo simples. Porque aquilo que fazemos escondido, discretamente, sem perceber a gravidade da situação enfrentada pelas meninas e pelos meninos, submetidos à exploração sexual, é muito pior, muito mais feio do que as cenas que assustaram o mundo nas prisões do Iraque.

Senador Alvaro Dias, concedo a V. Exª um aparte.

O Sr. Alvaro Dias (PSDB - PR) - Senador Cristovam Buarque, é importante que o Governo tenha V. Exª como um dos seus conselheiros. O Governo devia ouvi-lo mais. A lucidez de V. Exª seria da maior utilidade para o Governo reencontrar os caminhos da eficiência administrativa. Ainda ontem, notamos uma desconexão da equipe governamental com a realidade econômica externa e interna e uma desconexão interna no seio do próprio Governo. O Ministro Palocci disse que a nossa economia suporta o impacto da crise externa, e o Ministro José Dirceu pede um pacto em favor da resistência, porque o sistema ortodoxo adotado pelo Governo brasileiro impediria que a nossa economia resistisse ao impacto da crise externa. V. Exª traz a questão social como central. É a questão maior. Quero aduzir alguns dados recentes, de hoje, divulgados pela Fundação Oswaldo Cruz, dados de pesquisa da Organização Mundial de Saúde: quase 15% dos brasileiros já perderam todos os dentes, e 55,9% das mulheres de baixa renda com mais de 50 anos já perderam todos os dentes. Isso é um sintoma de pobreza absoluta, que provoca essa indignação em V. Exª e em todos nós, brasileiros; 19% da renda domiciliar mensal já é gasta com saúde, uma função pública que não é exercida com eficiência; 61% das despesas com saúde dizem respeito a medicamentos. Está aí o Governo anunciando a tal Farmácia Popular. Enfim, não quero tomar o tempo precioso de V. Exª - é muito bom ouvi-lo -, mas quero destacar que apresento esses números de agora, recentes, exatamente para dar maior sustentação à tese que V. Exª defende de um pacto em favor da pobreza neste Pais.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Agradeço a V. Exª o aparte.

Para concluir, Sr. Presidente, lembro que um dos temas que serão discutidos aqui, nos próximos dias, será o salário mínimo. Mais uma vez teremos que escolher entre a lógica da economia de aumentar o salário apenas ou uma lógica mais ampla de aumentar o salário até quanto for possível, mas complementá-lo com serviços sociais que o Brasil precisa oferecer a sua população.

O Senador Alvaro Dias trouxe o problema dos remédios. O que é melhor para os trabalhadores brasileiros, sobretudo os aposentados: um salário de R$260,00, R$275,00, R$300,00 ou um salário de R$260,00 com remédio grátis, cuja garantia consta do Estatuto do Idoso e não é cumprida? Não tenho a menor dúvida de que um salário menor com a garantia de remédios para os idosos é mais vantajoso do que a ilusão de aumentar para R$275,00 e dar um pão e meio a mais por dia. O que é melhor: um salário que não seja o alto que desejamos, mas com boa escola para os filhos, ou um salário que continuará baixo e que não dará uma escola boa e de qualidade para seus filhos?

Sr. Presidente, há duas lógicas para conduzir este País: a lógica que põe a economia como motor da solução dos problemas sociais ou a lógica que põe a solução dos problemas sociais como motor da economia. Estou convencido de que a segunda alternativa é a melhor para o povo e para o País e trará mais segurança para impedir que, de tempos em tempos, essa sombra maldita da crise internacional apavore os dirigentes e o povo brasileiro.

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/05/2004 - Página 14966