Discurso durante a 65ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Defesa da implantação de uma política efetiva de ciência e tecnologia.

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PPS - CIDADANIA/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DO MEIO AMBIENTE. POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.:
  • Defesa da implantação de uma política efetiva de ciência e tecnologia.
Publicação
Publicação no DSF de 28/05/2004 - Página 16635
Assunto
Outros > POLITICA DO MEIO AMBIENTE. POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.
Indexação
  • IMPORTANCIA, RIQUEZAS, BIODIVERSIDADE, BRASIL, REPRESENTAÇÃO, POTENCIA, CAMPO, BIOTECNOLOGIA.
  • DEFESA, NECESSIDADE, IMPLEMENTAÇÃO, EFICACIA, POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA, COMBATE, CONTRABANDO, RECURSOS NATURAIS, BIODIVERSIDADE, REGIÃO, PAIS, ESPECIFICAÇÃO, REGIÃO AMAZONICA, IMPORTANCIA, INSTALAÇÃO, FUNCIONAMENTO, CENTRO DE ESTUDO, BIOTECNOLOGIA.
  • IMPORTANCIA, OBJETIVO, CONVENÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), GARANTIA, UTILIZAÇÃO, CONSERVAÇÃO, BIODIVERSIDADE, SOBERANIA, ESTADOS, OPOSIÇÃO, INTERESSE, ACORDO, DIREITOS, PROPRIEDADE INDUSTRIAL, INCENTIVO, AMPLIAÇÃO, PATENTE DE REGISTRO, PRODUTO, PROCESSO, BIOTECNOLOGIA, ATENDIMENTO, IMPOSIÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA).
  • DEFESA, REAPARELHAMENTO, INSTITUTO NACIONAL DE PROPRIEDADE INDUSTRIAL (INPI), APROVAÇÃO, LEGISLAÇÃO, DISCIPLINAMENTO, ACESSO, RECURSOS, BIODIVERSIDADE, GARANTIA, PROTEÇÃO, TRADIÇÃO, CONHECIMENTO, COMUNIDADE, IMPEDIMENTO, PREJUIZO, CONSERVAÇÃO, PATRIMONIO, GENETICA.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, inúmeras vezes tenho vindo a esta tribuna ressaltar que a vastíssima diversidade biológica que o Brasil detém representa um patrimônio de extraordinário valor, cuja defesa e proteção o Poder Público tem o dever de exercer com o mais absoluto rigor.

Com efeito, é de amplo conhecimento que, em nível mundial, nosso País ocupa posição de grande destaque no que tange à variedade de espécies vegetais e animais que daqui são endêmicas. Somos um dos países de maior biodiversidade, haja vista que aqui se encontram pelo menos 10% a 20% do número total de espécies existentes no Planeta.

São mais de 55 mil espécies vegetais, correspondendo a 22% do total mundial. A variedade de palmeiras e de orquídeas aqui encontradas - respectivamente 390 espécies e 2,3 mil espécies -, por exemplo, é maior do que em qualquer outra nação. Diversas espécies de plantas que adquiriram importância econômica em escala planetária, a exemplo da borracha, são originárias do Brasil.

E a riqueza de nossa fauna não fica muito aquém da pujança exibida pela flora. Pelo menos 10% dos anfíbios e mamíferos e 17% das aves do mundo aqui se encontram, além de um número superior a 3 mil espécies de peixes de água doce, o dobro do existente em qualquer outro país. Quanto aos insetos, as estimativas apontam para a existência, em nosso território, de 5 milhões a 10 milhões de espécies, a maior parte delas ainda não descrita pela ciência.

De fato, a variedade de espécies vegetais e animais existentes em nosso País é tão estupenda que os especialistas acreditam que, possivelmente, nunca se venha a conhecer com absoluta precisão toda a diversidade biológica encontrada nos nossos biomas terrestres e nas nossas águas continentais e marinhas, principalmente tendo-se em consideração a extensão e complexidade desses ecossistemas.

O valor desse patrimônio é imenso. Na verdade, incalculável, seja levando-se em conta a utilização direta das plantas e animais na alimentação e diversos outros usos econômicos, seja em vista dos benefícios proporcionados pelos ecossistemas na manutenção do clima, na preservação dos recursos hídricos e dos solos etc.

Mas ao tentarmos dimensionar, ainda que vagamente, o potencial econômico da diversidade biológica de que o Brasil é detentor, o que devemos ter em mente, sobretudo, é o potencial que essa diversidade representa no campo da biotecnologia, setor que, todas as projeções indicam, virá a se constituir numa das vertentes do desenvolvimento mundial nos próximos anos. Afinal, entre as milhões de espécies biológicas que possuímos, em muitas se encontram substâncias químicas com valiosas propriedades terapêuticas. Já foram identificados, por exemplo, organismos de onde se podem extrair substâncias com propriedades anestésicas, relaxantes musculares, antialérgicas e antiinflamatórias, além de várias outras.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, ocorre, contudo, que, até o presente, essa espetacular riqueza não se tem convertido em maior bem-estar, em melhor qualidade de vida para o nosso povo.

Infelizmente, quando as grandes corporações utilizam recursos genéticos oriundos de países megadiversos, como o nosso, para gerar novas tecnologias e bens de comércio, valendo-se até mesmo de conhecimentos tradicionais de comunidades locais, não realizam qualquer contraprestação econômica, seja ao país, seja às comunidades. A bioprospecção e a transferência, de forma ilegal, de recursos vivos, bem como a apropriação de conhecimentos tradicionais pela indústria dos países altamente industrializados, valendo-se da legislação de proteção aos direitos de propriedade intelectual, caracteriza a prática da biopirataria, fenômeno que vem ocorrendo há séculos, embora só tenha sido conceituado muito recentemente.

Num esforço para pôr cobro a essa rapina dos recursos biológicos dos países megadiversos, foi firmada, durante a Cúpula da Terra, em 1992, a Convenção das Nações Unidas sobre Diversidade Biológica - CDB. Os objetivos centrais desse tratado são, de um lado, assegurar a utilização sustentável e a conservação da diversidade biológica; e, de outro lado, induzir uma repartição mais justa e eqüitativa dos benefícios oriundos da exploração, comercial ou não, dos recursos biológicos e dos conhecimentos tradicionais a eles associados.

Com esse desenho, a CDB representa um instrumento do Direito Internacional que contraria os interesses de muitas nações desenvolvidas, na medida em que consagra a soberania dos Estados nacionais sobre os recursos biológicos localizados dentro de suas fronteiras. Desde sua assinatura, a diversidade biológica deixou de ser considerada patrimônio comum da humanidade, passando a ser patrimônio sujeito à soberania dos Estados.

Em sentido contrário, porém, e apenas dois anos após o advento da CDB, foi celebrado o tristemente famoso Acordo TRIPs - Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights , ou Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio. Além de instituir normas muitíssimo mais rígidas de proteção às patentes, o TRIPs prevê, por pressão norte-americana, que as leis de propriedade intelectual dos países signatários do acordo não devem abrir exceções quanto a determinados tipos de inventos, criando categorias não patenteáveis, como era praxe até então. A maquiavélica intenção era, exatamente, garantir o patenteamento, em nível internacional, de produtos e processos biotecnológicos.

Ao contrário do espírito norteador da Convenção sobre Diversidade Biológica, que é o de assegurar proteção aos conhecimentos tradicionais de comunidades agrícolas, indígenas, extrativistas e quilombolas, o espírito do TRIPs é compelir todos os países a proporcionar cobertura de patentes para todos os microorganismos, além de instituir legislação de propriedade intelectual que abranja as variedades vegetais.

Em outras palavras, o TRIPs opõe-se frontalmente à noção de repartição dos benefícios oriundos da exploração dos recursos biológicos e dos conhecimentos tradicionais, conflitando, portanto, com a Convenção sobre Diversidade Biológica. Enquanto a CDB busca obstar a biopirataria, o TRIPs, ao permitir a concessão pura e simples de monopólios comerciais sobre elementos da biodiversidade, fomenta tal prática.

Em obediência às disposições do TRIPs, e para evitar sua exclusão sumária da Organização Mundial do Comércio - OMC, o Brasil viu-se obrigado a colocar em vigência, já em 1996, sua nova Lei de Propriedade Industrial - Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996, na conformidade da qual o País passou a proceder ao patenteamento de microorganismos geneticamente modificados; e, em 1997, aprovou a Lei de Cultivares - Lei nº 9.456, de 28 de abril de 1997, a qual protege, por meio de certificados de melhorista, as obtenções vegetais da indústria de biotecnologia.

Para agravar ainda mais todo esse quadro, que conspira para perenizar a situação de atraso e dependência tecnológica que o País vive, nosso órgão responsável pela avaliação dos pedidos e pela concessão de patentes - o Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI - encontra-se completamente desaparelhado para o exercício das suas funções.

E, ironicamente, embora nos tenhamos apressado em atender às exigências do TRIPs, editando a nova Lei de Propriedade Industrial e a Lei de Cultivares, não demonstramos a mesma agilidade na tarefa de regulamentar o acesso aos recursos genéticos e assegurar a proteção dos conhecimentos tradicionais a eles associados. Até hoje, essas matérias estão disciplinadas exclusivamente por Medida Provisória - MP nº 2.186, de 23 de agosto de 2001.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, urge que adotemos ações aptas a coibir, tanto em âmbito doméstico como internacional, a apropriação ilegal dos recursos da nossa diversidade biológica, bem como dos conhecimentos e tecnologias das comunidades tradicionais a ela associados. Precisamos evitar que continuem a ocorrer prejuízos à conservação e à exploração sustentável do nosso patrimônio genético. Há que assegurar a manutenção da ciência e da tecnologia de nossas comunidades tradicionais indígenas e agrícolas, as quais, desde tempos imemoriais, vêm curando doenças, alimentando populações, desenvolvendo técnicas, de forma aberta, em benefício de todos, sem a preocupação de auferir lucros.

Nesse sentido, eu gostaria de alinhar algumas sugestões que, uma vez implementadas, representarão significativa contribuição no sentido de coibir a biopirataria do nosso patrimônio.

Em primeiro lugar, tratemos de considerar as medidas necessárias no âmbito interno.

Nesse aspecto, destaca-se a necessidade de aprovarmos legislação que discipline adequadamente o acesso aos recursos genéticos e aos conhecimentos tradicionais a eles associados. É fundamental que essa legislação leve em consideração as normas consuetudinárias das comunidades tradicionais no que concerne ao uso e exploração desses conhecimentos, reconhecendo direito e poder às comunidades sobre seus conhecimentos, bem como sobre as terras onde vivem, mantêm e reproduzem tais conhecimentos.

Não menos importante é promover a alteração da legislação de proteção à propriedade industrial, fazendo dela constar a exigência de que o solicitante da patente aponte, nos documentos descritivos da invenção, o local de origem do recurso genético e a comunidade tradicional que transferiu determinado conhecimento que tenha fundamentado a invenção, quando for o caso. Além disso, o solicitante deverá, também, apresentar cópia do acordo que regulou o acesso ao recurso e/ou conhecimento e que previu a repartição de benefícios oriundos desse acesso.

Sugere-se, outrossim, a criação de um banco de dados, acessível à Organização Mundial da Propriedade Intelectual e aos escritórios de marcas e patentes de todo o mundo, que contenha as denominações comuns brasileiras dadas a frutas, cultivares, bebidas e produtos alimentícios. Com essa providência, poderemos evitar que voltem a ocorrer casos como o registro da denominação popular “cupuaçu” como marca comercial nos Estados Unidos, na Europa e no Japão.

É necessário que formulemos e implementemos uma política efetiva de ciência e tecnologia para a Amazônia, dotando essa região dos recursos materiais e humanos necessários para um amplo programa de avaliação e utilização sustentável da biodiversidade amazônica. Em particular, propugno pela imediata instalação e entrada em operação do Centro de Biotecnologia da Amazônia.

Não pode perdurar, de outra parte, a situação de penúria vivida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial - INPI. É preciso, com urgência, reaparelhar essa importante instituição.

No contexto mais geral, do planejamento de médio e longo prazo, devemos incluir, no Plano Plurianual, programas específicos para a Amazônia. Esses programas devem refletir uma agenda sobre o tema articulada intersetorialmente.

No entanto, Srªs. e Srs. Senadores, para que essas medidas de cunho interno sejam realmente eficazes, no sentido de obstar a prática da biopirataria, é preciso, simultaneamente, alterar os acordos internacionais que regulam a propriedade intelectual.

Evidentemente, isso não é tarefa simples. Serão necessários árduos esforços diplomáticos, realizados no contexto de uma estratégia muito bem formulada.

Nesse particular, podemos valer-nos da experiência adquirida por ocasião do conflito diplomático com os Estados Unidos, a respeito do reconhecimento das patentes e do abusivo custo dos medicamentos para tratar a Aids. A vitória que obtivemos nesse episódio evidencia que, com persistência e habilidade, é possível obter importantes concessões dos detentores do poder político e econômico.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, a realidade nua e crua é que os direitos de patentes vêm sendo utilizados para usurpar outros direitos tão ou mais legítimos.

É dever do Governo brasileiro repudiar esse abuso e reivindicar, perante a comunidade internacional, a alteração do quadro normativo vigente, como único caminho para garantir a repartição justa dos benefícios advindos da utilização do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado a esse patrimônio.

É profundamente injusto que os países megadiversos, muitos dos quais padeceram durante séculos a rapinagem colonialista, vejam-se hoje espoliados pela ação dos biopiratas. Precisamos garantir o uso sustentável da nossa biodiversidade, em benefício do povo brasileiro.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 28/05/2004 - Página 16635