Discurso durante a 69ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Análise da questão indígena no Brasil.

Autor
Mozarildo Cavalcanti (PPS - CIDADANIA/RR)
Nome completo: Francisco Mozarildo de Melo Cavalcanti
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INDIGENISTA.:
  • Análise da questão indígena no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 03/06/2004 - Página 17123
Assunto
Outros > POLITICA INDIGENISTA.
Indexação
  • NECESSIDADE, ESCLARECIMENTOS, OPINIÃO PUBLICA, BRASIL, INEXATIDÃO, FATO, OCORRENCIA, REGIÃO NORTE, QUESTIONAMENTO, TRATAMENTO, INDIO, DESCONHECIMENTO, DIFERENÇA, CARACTERISTICA, NIVEL, INTEGRAÇÃO, COMUNIDADE INDIGENA.
  • QUESTIONAMENTO, TUTELA, ESTADO, INDIO, IMPOSSIBILIDADE, ACESSO, CREDITO AGRICOLA, COMENTARIO, EXISTENCIA, TRIBO, DEPENDENCIA, ASSISTENCIA SOCIAL, GOVERNO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), COMUNIDADE INDIGENA, CULTIVO, DROGA, ESTADO DO MARANHÃO (MA), FORMAÇÃO, QUADRILHA, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE), GRAVIDADE, HOMICIDIO, GARIMPEIRO, RESERVA INDIGENA, ESTADO DE RONDONIA (RO), ELOGIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, FOLHA DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), DEFESA, PUNIÇÃO, CRIME.

O SR. MOZARILDO CAVALCANTI (PPS - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores: é meu costume, como bem o sabem meus ilustres Pares, subir a esta tribuna para trazer notícias e questionamentos a respeito de algumas questões, especialmente relativas à Amazônia, que são objeto de grande desinformação, ou mesmo de informação falsa e maliciosa, nas outras regiões do Brasil. Penso, de fato, ser esse um dos papéis de maior responsabilidade por parte de um representante de um Estado da região Norte, sobretudo de uma Unidade Federada tão pouco conhecida dos brasileiros em geral, como é Roraima.

Há, com efeito, questões espinhosas que, difundidas de maneira tendenciosa por entidades movidas por interesses ilegítimos, tendem a ser entendidas, pela opinião pública, de maneira distorcida, completamente falaciosa. Torna-se difícil, por exemplo, debater com racionalidade a questão ambiental, tão carregada está de ignorância e preconceitos a visão até de muitos de nossos principais formadores de opinião do centro-sul do País.

Não é, porém, a questão ambiental que me traz hoje à tribuna desta Câmara Alta do Congresso Nacional. Venho tratar de outro assunto muito mal compreendido, e sobre o qual se difundem mitos e inverdades que obliteram a visão dos fatos e tolhem a possibilidade de um debate racional. Refiro-me à questão indígena.

Quando tratamos desse assunto e dizemos que está, em geral, muito mal colocado, não estamos negando o fato de que as populações indígenas das Américas, bem como as de outros continentes que foram objeto da colonização predatória empreendida pelas potências européias, não estamos negando, eu dizia, que tais povos tenham sido vítimas do que se pode chamar genocídio. Conquanto sejam falhas quaisquer estimativas da população autóctone existente quando da chegada do colonizador a este continente, é forçoso reconhecer que é relativamente pequena hoje a fração dos seus descendentes não inteiramente absorvidos pela cultura dominante.

Entender o processo histórico da colonização como uma invasão violenta sobre os domínios desses povos, no entanto, não deve implicar uma visão monolítica dos índios de hoje como “coitadinhos”, vítimas da ambição e do desprezo do homem branco para com as outras culturas e para com os direitos dos outros grupos humanos. De fato, há uma grande diversidade na situação atual dos vários grupos indígenas oficialmente reconhecidos. Os contrastes, na verdade, são surpreendentes para os que pensam que todo índio usa cocar e é desajustado na sociedade exterior a sua tribo.

Isso é o que mostra a reportagem de Flávia Marreiro, Virgílio Abranches e Ricardo Westin publicada na Folha de S. Paulo em sua edição de 25 de abril deste ano. Eles citam dados do Conselho Indigenista Missionário que desmistificam a idéia de que todos os índios pertenceriam a duas categorias: ou são isolados e têm hábitos rudimentares, ou são aculturados.

A realidade é bem diferente. No Rio Grande do Sul, por exemplo, há caingangues que vivem em terras indígenas no interior e caingangues morando na periferia de Porto Alegre. No oeste de Santa Catarina há tribos da mesma etnia que plantam e comercializam milho e arroz. Enfrentam, porém, uma dificuldade: como suas terras pertencem à União, eles estão fora de qualquer plano de financiamento do Governo para a agricultura, porque não podem oferecê-las como garantia.

Vejam que situação a desses índios: por um lado, são emancipados e produzem para o mercado, mas, por outro lado, são tutelados pelo Estado, pois não podem gozar plenamente da propriedade de suas terras e não podem investir para melhorar sua produtividade. A falta de um programa específico de financiamento agrícola para eles deixa-os nessa espécie de limbo, impedindo-os de avançar.

No Norte e no Nordeste, muitas tribos são completamente dependentes do assistencialismo do Estado. Algumas chegaram a ser incluídas como grupos prioritários para o Programa Fome Zero, tão grave é sua miserabilidade, como os cambiuás, do semi-árido pernambucano.

Também em Pernambuco, no vale do São Francisco, os trucás produzem arroz em escala comercial, mas, vivendo na área do chamado polígono da maconha, sofrem o assédio dos plantadores da erva. Aliás, outra matéria do mesmo jornal, no mesmo dia, noticiava a apreensão, pela Polícia Federal, de 700 mil pés de cannabis sativa e 542 quilos da erva dentro da reserva indígena Araribóia, dos índios guajajaras, no Maranhão.

Ora, Senhor Presidente, analisemos com boa vontade esse quadro. De um lado, temos índios que querem produzir alimentos comercializáveis, mas não contam com financiamento oficial; de outro, temos índios que resolvem o problema plantando uma erva proibida, mas de mercado combinado e seguro. Em sã consciência, será possível condenar esses pobres guajajaras, que, abandonados pelo Estado e assediados por traficantes, simplesmente seguem as leis do mercado e maximizam seus ganhos? A falta de uma política de apoio à agricultura indígena adquire, aqui, contornos de tragédia.

Em São Paulo, há índios favelados. Na divisa dos Estados de Roraima e Amazonas, cerca de dez mil ianomâmis vivem em uma reserva homologada de 9,6 milhões de hectares -- um verdadeiro latifúndio, sobretudo se comparados aos pequenos lotes em que 30 mil guaranis-caiuás se comprimem no Mato Grosso do Sul. Há, ainda, índios que vivem da comercialização de artesanato, em cidades como Porto Velho, em Rondônia, e dependem de organizações não-governamentais que agem como intermediárias desse comércio.

Agora vejam, Srªs e Srs. Senadores, as tais ONGs, sempre tão elogiadas. Há informações de que um cocar que esses índios vendem para elas, em Porto Velho, por R$50,00, alcançaria, nos hotéis de São Paulo, a cifra de 800 reais. Se os índios são vítimas, os algozes certamente são muitos, e alguns ainda posam de defensores deles.

Outra notícia, esta publicada no Estado de S. Paulo do mesmo dia 25 de abril, dá conta de que onze índios aticuri, de Pernambuco, teriam sido presos no Município de Carnaubeira da Penha, por formação de quadrilha, falsidade ideológica, porte de arma e de droga e roubo de automóvel. A matéria não trazia informação precisa sobre a fraude de que eram acusados, mas dizia que eles teriam desviado cerca de R$280 mil de dinheiro público. Um dos aticuris era vereador naquela cidade e já tinha ordem de prisão decretada contra ele no Município vizinho de Mirandiba.

Cito esse episódio não para traçar um quadro negativo, mas tão somente para reforçar aquele argumento sobre a grande diversidade de situações que apresentam os indígenas no Brasil. Quer dizer, há índios pobres, vivendo em dificuldades, índios remediados, mas que precisam de maior apoio, índios emancipados e índios envolvidos em delitos de gravidade considerável.

Contudo eu não poderia deixar de abordar o episódio mais terrível envolvendo indígenas ocorrido nestes últimos anos: o assassinato dos garimpeiros invasores da reserva Roosevelt, em Rondônia, pelos índios cinta-larga, donos da terra.

Digo “assassinato” e sei que, com isso, desagrado certos grupos de militantes da defesa dos índios, que os tomam sempre como inimputáveis. Mas eu pergunto: que defensores são esses, que parecem julgar os índios incapazes de compreensão dos próprios atos, como se fossem débeis mentais, ou seres amorais? Que defensores são esses, que, na hora de apoiar a demarcação de enormes glebas para os índios, argumentam com a capacidade deles de autodeterminação e, na hora de encarar uma ação criminosa, alegam que eles são como crianças?

Quero, porém, fazer um elogio ao editor do caderno de Ciência da Folha de S. Paulo, Marcelo Leite, que escreveu um artigo equilibrado, com reflexões muito pertinentes sobre o episódio e sobre as deficiências de nossa política indigenista. Um ponto se destaca em sua argumentação: a corajosa afirmação da necessidade de punição dos assassinos, naturalmente de acordo com a Lei, consideradas todas as circunstâncias atenuantes e agravantes e garantido o pleno direito de defesa. É artigo que, por sua lucidez, merece transcrição nos anais desta Casa.

Gostaria, ainda, de mencionar o conteúdo da coluna “Parabólica”, da Folha de Boa Vista de 21 de abril. O jornalista responsável ressalta o verdadeiro papel de vítimas dos garimpeiros assassinados, como brasileiros que lutam contra o desemprego, mesmo que tenham agido contra a Lei ao invadir a área indígena. Estavam errados, mas eram brasileiros pobres buscando sua sobrevivência e a de suas famílias.

De todo modo, isso é inescapável: a ninguém caberia o direito de trucidá-los covardemente, como fizeram os cintas-largas, e com os requintes de crueldade revelados pelo Instituto Médico-Legal de Rondônia. Os responsáveis precisam ser processados e punidos devidamente pela Justiça, ou o Brasil cairá ainda mais no conceito já baixo que tem no mundo desenvolvido, pelas freqüentes violações dos direitos humanos de que somos acusados.

Mas o jornalista da Folha de Boa Vista faz uma comparação muito oportuna, perguntando por que os 19 sem-terra mortos em Eldorado dos Carajás entraram para a História como mártires de uma causa justa, vítimas de um Estado cúmplice de elites arcaicas, enquanto os 29 garimpeiros correm o risco de entrar como bandidos e invasores de terras? Tanto quanto os sem-terra de Carajás, os garimpeiros da reserva Roosevelt eram pobres, excluídos, pais de família que deixaram dezenas de órfãos e viúvas, além de pais, irmãos e mães enlutados. Uma só explicação tem essa duplicidade de tratamento dedicado aos dois morticínios por certos formadores de opinião: a estúpida tese romântica do bom selvagem firmou-se como ideologia em nosso meio, e está a impedir muita gente de ver a realidade múltipla dos índios brasileiros.

Como costumo repetir, a ignorância e a desinformação de muitos brasileiros constituem grande obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia. Mas, como vemos, são também empecilhos à justiça e à paz social.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/06/2004 - Página 17123