Discurso durante a 82ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Relato histórico da emancipação político-administrativa do Estado do Acre.

Autor
Sibá Machado (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Sebastião Machado Oliveira
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Relato histórico da emancipação político-administrativa do Estado do Acre.
Publicação
Publicação no DSF de 16/06/2004 - Página 18248
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, EMANCIPAÇÃO, ESTADO DO ACRE (AC), LEITURA, TEXTO, UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE (UFAC), REGISTRO, LUTA, AUTONOMIA, TERRITORIO FEDERAL DO ACRE, NECESSIDADE, RECUPERAÇÃO, HISTORIA, POPULAÇÃO, INDIO, MIGRANTE, REGIÃO NORDESTE, BUSCA, TRABALHO, SERINGUEIRA, ORGANIZAÇÃO, MOVIMENTO TRABALHISTA, RESISTENCIA, COMBATE, EXPLORAÇÃO, DEFESA, MEIO AMBIENTE.
  • ELOGIO, GOVERNADOR, ESTADO DO ACRE (AC), FESTA, ANIVERSARIO, EMANCIPAÇÃO, PRESENÇA, PRESIDENTE, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF).

O SR. SIBÁ MACHADO (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, um acalorado debate sobre política de valorização maior do salário mínimo seria o tema principal por mim abordado hoje, mas, diante do pronunciamento do Senador Geraldo Mesquita, também vou dedicar os 20 minutos a mim concedidos para ler um texto que recebi da Universidade Federal do Acre a respeito de tão importante data. Se me restar tempo, vou-me pronunciar também sobre o salário mínimo.

Sr. Presidente, observei que o tempo a mim destinado está marcado em 10 minutos. Na verdade, disponho de 20 minutos, os quais pretendo usar integralmente.

Passo à leitura do texto:

Da autonomia da política e da autonomia das mulheres e homens do Acre

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores,

Hoje, completa 42 anos da elevação do Estado do Acre a Estado. É sobre isso e um pouco mais da história do Acre que, embora seja uma das histórias regionais mais interessantes, é, infelizmente, pouco conhecida no Brasil.

A autonomia do Acre, ou melhor, a sua busca, nasceu no seio do movimento de incorporação das terras do sudoeste amazônico ao Brasil, a partir da Questão Acreana, que, em novembro de 1903, teve seu desfecho com o Tratado de Petrópolis.

As disputas entre os dois principais centros do comércio da borracha, Manaus e Belém, fez com que o Governo Federal instituísse o sistema de Território Federal. O Acre foi o primeiro. Oficialmente, o Governo central argumentava a necessidade de ressarcimento dos prejuízos da anexação do território, tanto à Bolívia como na construção da ferrovia Madeira-Mamoré.

Nessas condições, muitos dos indicados para o Governo do Território do Acre desconheciam completamente a realidade da floresta, dos núcleos urbanos nascentes, de uma sociedade que se constituía junto aos rios e igarapés e, neles, as pélas descendo rumo aos mercados internacionais [pélas são as borrachas defumadas]. Assim, de uma luta de dentro, com a participação importante de seringueiros pela incorporação das terras para o Brasil, é de fora e de maneira autoritária que foi sendo constituída parte importante dos “donos do poder” no Acre.

Contudo, por dentro ou por fora da “elite” política e econômica que se formava no Acre, em vários lugares do território, as insatisfações frente ao poder exercido por não-acreanos ultrapassou o âmbito do discurso e deflagrou movimentos de resistência. Em Cruzeiro do Sul, em 1910. Em Sena Madureira, em 1913. Em 1918, em Rio Branco.

Nos primeiros anos da década de 30, com o Governo de Getúlio Vargas, o movimento autonomista se fortalece. Mas, em 1934, com a nova Constituição, o Acre apenas conquista o direito a dois Deputados Federais, permanecendo o mesmo critério para a indicação de governadores.

O sonho da autonomia, vezes mais, vezes menos, reapareceria no cenário político. Em grande medida embalado por grupos “elitistas” do Acre, sempre em oposição de outros grupos de poder, o movimento autonomista toma novo impulso nos anos 50, com o então Governador José Guiomard dos Santos. O projeto chega ao Congresso Nacional em 1957.

Assim, a autonomia administrativo-política do Acre, aprovada em 15 de junho de 1962, foi a culminância de um processo tenso e conflituoso entre os principais grupos políticos acreanos. De um lado, José Guiomard dos Santos, do PSD, e do outro, Oscar Passos, do PTB. O primeiro defendia o projeto autonomista; o segundo, em oposição, argumentava que o Território do Acre tinha uma economia fraca, o que tornava inviável a autonomia. Venceu José Guiomard dos Santos, que, ironicamente, perdeu a eleição que elegeu o primeiro Governador do Acre, também em 1962, para o candidato do PTB, José Augusto de Araújo.

A elevação do Acre à categoria de Estado, portanto, esteve longe de representar um projeto e um anseio unânimes. A autonomia, assim, deve ser compreendida como parte de interesses que, naquele dado momento e pela correlação de forças, fez vencer o projeto autonomista.

O primeiro Governador do Acre eleito, em 1962, teve curta duração, um pouco mais de um ano. Com o Golpe Militar de 1964, José Augusto de Araújo foi obrigado a renunciar, sendo nomeado o Capitão Edgard Pereira de Cerqueira Filho, até 1966. Era o primeiro golpe contra a autonomia do Acre, que, a partir de Brasília, via reproduzir nas terras acreanas a nomeação de governantes como ocorrera de forma semelhante em 1920 e em 1962.

Esses pontos da história política do Acre, rapidamente dispostos, dão mostras expressivas de persistência de “elites” políticas e econômicas que, desde 1904, foram se constituindo longe do poder central. É também indiscutível que o movimento autonomista, mesmo que permeando o movimento político durante 58 anos, entre 1904 e 1962, foi um sucesso.

Contudo, neste momento e deste lugar, é necessário e importante falar de uma outra autonomia, ainda inconclusa, que nasceu bem antes de 1903 e se estende para além de 1962. Uma autonomia que transcende o caráter político e econômico das “elites” e abarca a dimensão social, cultural, identitária e dos modos de vida da maior parte das gentes do Acre.

Autonomia também é a detenção do direito de escolha. O direito de escolha se aproxima da liberdade. Da liberdade define-se o presente e o futuro. Também o passado. A construção da própria história e, assim, do próprio lugar, tem na inversão da lógica dominante a possibilidade de reinterpretação do “movimento autonomista” dado pelas e pelos de baixo, que no tempo e no território acreanos, buscaram e ainda buscam a autonomia.

A história oficial consagra importante capítulo às “correrias” contra as índias e os índios, em especial, a partir de meados do século XIX, com a expansão extrativista dada pela necessidade de borracha para atender o mercado industrial externo. As “correrias” matavam e expulsavam. Mas, inversamente, as índias e os índios também “corriam”. Fugiam. Era, uma ou de outra forma, a “correria” pela vida e que, por mais de 150 anos, fez e faz emergir, em cada pedaço de chão indígena, como entre os Poyanawa, em Mâncio Lima, ou Kashinawá, em Feijó, a busca pela autonomia que se transmuda em auto-determinação dos povos indígenas.

Essa autonomia, deliberadamente ou não, foi esquecida pelos homens do movimento autonomista. Mas, para além da autonomia de 1962, o movimento indígena, nos diversos e múltiplos contextos indígenas acreanos, transcende os seus territórios e especializa-se em um movimento nacional e até internacional.

Outra autonomia, gestada no seio do movimento migratório de nordestinos para os rios e seringais do médio e alto Juruá, ou do Purus ou do Acre, dentre outros, foi a perspectiva e a motivação postas para os próprios seringueiros, os arigós, os brabos. Em busca do “ouro branco”, do látex, milhares de homens, solteiros ou casados, fugindo do desemprego, do latifúndio e das secas no Nordeste, fincaram-se nas estradas de seringa em busca de autonomia, com a perspectiva de saldar as contas com o patrão - ou coronel - e, acumulando uns trocados, retornar para a terra natal. A autonomia, portanto, era um anseio no Nordeste que se colocava também na Amazônia. A maioria era de homens rurais, camponeses, vinham para os seringais não para ficar, mas como condição provisória.

A autonomia seringueira, contudo, não foi protagonizada nem na propalada “revolução” acreana, nem no movimento autonomista em 1962. Em suas particularidades dadas pelas fases de “auge” e “decadência” da atividade extrativista, os seringueiros seguiram sua sina de endividamento, mas não sem a resistência característica dos sujeitos rijos do Nordeste e da Amazônia. Os negócios com os regatões, a plantação de roçados, a caça, a pesca, a migração, o desenvolvimento de um modo de vida da e sobre a floresta, foram meios incontestes de resistência frente aos mandos e desmandos dos seringalistas.

Constituído esse modo de vida e a estreita relação entre as gentes e as coisas da floresta, os seringueiros, com seus filhos e esposas, desenvolveram, nas décadas de setenta e oitenta, um dos mais expressivos movimentos de resistência contra a perda de seu chão, de sua identidade e de seu modo de vida. Os “empates”. O movimento seringueiro, em relação estreita com o movimento sindical rural - mas também urbano - da época, constitui-se como um movimento de construção de uma territorialidade dada pela posse e pelo direito à terra seringueira, não mais seringalista e muito menos agropecuarista dada pela expansão do capital do centro-sul do Brasil.

            Os “empates”, curiosamente, também se deram como contraponto a projetos de parte da “elite” política e econômica do Acre, como o expressado pelo Governador Francisco Vanderlei Dantas, na primeira metade da década de setenta, quando divulgava a idéia de que “o Acre é o Nordeste sem seca e o Sul sem geadas”. Portanto, uma terra propícia para plantar, cultivar e colher. Ou para plantar o pasto, criar o gado bovino e vender a carne: “produzir no Acre, exportar pelo Pacífico”, como também assevera o Governador.

O movimento seringueiro teve, nos embates, a expressão prática da resistência e, nas reservas extrativistas, com a herança de vivos e de mortos, dentre eles Wilson Pinheiro e Chico Mendes, a luta tanto pela permanência e preservação da floresta, como também pela destruição do poder seringalista e pela produção de uma territorialidade e de um lugar de autonomia, de participação e de construção coletiva da própria existência.

A autonomia seringueira também é expressão da autonomia camponesa, do trabalho familiar e do não submetimento nem à lógica seringalista, nem à lógica pecuarista, ambas reprodutoras de um dos pilares da estrutura concentracionista de renda e de poder no Brasil: o latifúndio.

Mas também fora dos projetos das reservas extrativistas, ribeirinhas e ribeirinhos, camponesas e camponeses - colonheiras e colonheiros - distribuídos pelas margens dos rios e igarapés, pelo interior das matas e pelos diversos projetos de assentamento, desde as colônias agrícolas aos mais recentes projetos de colonização, lutaram e lutam pela autonomia, mesmo que relativa, sobre a terra, sobre a produção, a comercialização e a renda.

Vale lembrar que a lógica camponesa não se assenta sobre a mesma lógica capitalista, mas na perspectiva de que a produção de farinha ou de feijão e banana possibilite à família camponesa a aquisição de produtos no mercado, podendo reproduzir, no rural ou na floresta, o jeito de ser ribeirinho e camponês. Portanto, a autonomia camponesa não é dada por decreto, por lei ou medida provisória, mas pela labuta diária de mulheres e homens que se fazem acreanas e acreanos agricultores e extrativistas.

Contudo, desde a perda da hegemonia da produção da borracha em 1912-1913 da Amazônia para a Ásia, principalmente com o processo avassalador de expansão agropecuária a partir dos anos setenta, que se territorializava, não sem resistência, sobre a parte expressiva do leste acreano, milhares de famílias migraram da floresta para as cidades, em especial para a capital Rio Branco.

Assim, foi construída e está ainda em curso, no Acre, desde os ribeirinhos, seringueiros, passando pelos moradores dos bairros da Lagoa de Cruzeiro do Sul, da Praia de Tarauacá, do Samaúma de Brasiléia, ou do Bairro da Paz de Rio Branco, a luta, silenciosa ou não, pela autonomia das gentes que, nos dias e nas noites, têm dificuldades em reconhecer, nos homens das “elites”, os seus representantes na luta pela autonomia...

Se no início apontamos mais de duas dezenas de nomes ligados à história política acreana, é no mínimo necessário fazer referência, mesmo que rápida, a outras e outros sujeitos que fizeram e fazem, de suas vidas, expressões na e da busca de autonomia: as crianças dos seringais de ontem e das periferias de hoje; as mulheres seringueiras e as mulheres na luta contra a dominação calcada no machismo; os “soldados” e as “soldadas” da borracha de ontem e os trabalhadores informais do mercado do colono de hoje; enfim, todas e todos que, de seus jeitos, fazem-se mais livres e mais autônomos no movimento mesmo do viver, do trabalho e da esperança, porque também esperança é um ato de espera. Uma espera não oficializada, não dada pela lei que criou o nosso Estado, não dada pelo ano, pela data ou pelo político isoladamente, mas pela vitalidade de mulheres e homens que fazem da vida, na floresta ou fora dela, um gesto de autonomia. E isto não é pouco.

Vivam os 42 anos do Acre autônomo! Mas viva, especialmente, a autonomia feita esperança das mulheres e homens do Acre, desde bem antes de 1962 e também bem depois dele.

Era o que tinha a dizer.

Parabenizo o Governador Jorge Viana pela tão brilhante festa que, desde ontem, conta com a presença do Presidente do Supremo Tribunal Federal, Dr. Nelson Jobim.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/06/2004 - Página 18248