Discurso durante a 98ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários à reforma do Judiciário.

Autor
Geraldo Mesquita Júnior (PSB - Partido Socialista Brasileiro/AC)
Nome completo: Geraldo Gurgel de Mesquita Júnior
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA JUDICIARIA.:
  • Comentários à reforma do Judiciário.
Publicação
Publicação no DSF de 08/07/2004 - Página 21455
Assunto
Outros > REFORMA JUDICIARIA.
Indexação
  • ELOGIO, JOSE JORGE, SENADOR, RELATOR, DECLARAÇÃO DE VOTO, ORADOR, VOTO CONTRARIO, PROPOSTA, REFORMA JUDICIARIA, AUSENCIA, ATENDIMENTO, INTERESSE, POPULAÇÃO.
  • REGISTRO, DADOS, PESQUISA, OPINIÃO PUBLICA, FALTA, CONFIANÇA, JUDICIARIO.
  • DETALHAMENTO, ERRO, INEFICACIA, PROPOSTA, AUSENCIA, GARANTIA, ACESSO, DEFENSORIA PUBLICA, POPULAÇÃO CARENTE, FALTA, AGILIZAÇÃO, ATIVIDADE, JUSTIÇA, COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, O GLOBO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), LEITURA, TRECHO, OPINIÃO, JURISTA.

O SR. GERALDO MESQUITA JÚNIOR (Bloco/PSB - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ressalvando preliminarmente o louvável e elogiável esforço do eminente Relator, que, nesta Casa, prolatou seu parecer sobre a reforma do Judiciário, o nobre Senador José Jorge, a quem rendo as minhas sinceras homenagens, declaro que votei contra a aprovação dessa proposta de emenda - aliás, único voto contrário -, por entender que as mudanças do texto constitucional dela constantes não atendem às aspirações do povo brasileiro de contar com um sistema judicial que lhe garanta, com celeridade e a qualquer tempo, seus direitos fundamentais e lhe proporcionem uma justiça rápida, eficiente, equânime, sem discriminações, excesso de formalismos e entraves burocráticos que a têm caracterizado desde a sua instituição, nos tempos coloniais.

Declaro, ainda, que a convicção que me levou a essa atitude se funda nas seguintes e procedentes razões.

Quando se discutiu a instalação de uma comissão parlamentar de inquérito sobre o Poder Judiciário nesta Casa, nos idos de 1999, o Instituto Vox Populi promoveu, por encomenda da Confederação Nacional dos Transportes, uma pesquisa de opinião pública realizada em 195 cidades, em que 59% dos brasileiros ouvidos disseram ter um grau de confiança baixo e muito baixo no Poder Judiciário. Nada menos que 89% consideraram a Justiça lenta; e 67% acreditavam ser ela favorável aos ricos.

Esse panorama não se alterou de lá para cá. Pesquisa do Ibope feita para a Federação do Comércio de São Paulo no ano passado concluiu que apenas 11% dos paulistas declararam ter “muita confiança” na Justiça. São duas constatações que se repetem ao longo de décadas e que revelam não só as deficiências do sistema judicial brasileiro, mas também a baixa credibilidade de que padece a Justiça em nosso País.

Não é esse, porém, o fundamento da presente proposta de emenda à Constituição. Entre muitas outras razões, porque se baixa credibilidade fosse o móvel das mudanças reclamadas pela opinião pública brasileira, o Congresso Nacional, igualmente falto desse requisito e tão ou mais refratário a mudanças que o Judiciário, já deveria ter modernizado suas práticas, reformado sua atuação e modificado profundamente o processo legislativo, sabidamente formalista, obsoleto, que não mais atende às expectativas da sociedade brasileira.

Sob muitos aspectos, Sr. Presidente, a PEC 29 soa como represália contra o Poder Judiciário, em face de medidas como a Súmula Vinculante, de caráter obrigatório, e as providências que pretendem evitar o nepotismo, necessárias, sem dúvida, mas que devem ser de caráter geral e amplo, não apenas em relação a um, mas a todos os Poderes.

As normas de organização, estrutura e funcionamento dos juizados e tribunais, que constituem a maioria das propostas dessa reforma, não dizem respeito ou não têm quase nada a ver com o interesse da maioria dos cidadãos. E as alterações nela propostas não prevêem medidas que assegurem o funcionamento efetivo da Defensoria Pública Federal e a dos Estados, sem o que o direito de acesso à Justiça aos que não podem pagá-la continuará mera declaração de intenção, das muitas que contém a Constituição em vigor.

A simples proposta de autonomia para as Defensorias Públicas Estaduais, sem que se defina que autonomia será essa, poderá resultar em nada, permanecendo tais órgãos sem prestar à coletividade os serviços essenciais, para os quais foram instituídos.

No primeiro discurso que pronunciei no Senado, no ano passado, procurei mostrar como é encarada a defesa dos interesses da União, em confronto com a proteção dos direitos difusos da sociedade e as garantias dos cidadãos:

“A União, dizia naquela oportunidade, dispõe de cerca de seis mil advogados. Para representar e defender os direitos difusos da sociedade, o Ministério Público Federal conta com apenas 10% desse total: 600 procuradores, Sr. Presidente. E para assegurar os direitos da maior parte de todos os brasileiros, aqueles a que a nada têm acesso, a Defensoria Pública Federal tem menos de 2% dos que defendem o Estado, ou seja, 110 membros em todo o País! A reforma não altera esse quadro e, para mudá-lo, não é necessário emendar a Constituição.”

São muitas as objeções feitas à Emenda, dentro e fora do Poder Judiciário e entre os magistrados brasileiros. A própria Associação Nacional dos Magistrados tem assinalado que, embora o Governo se empenhe em vender a Reforma como solução, a PEC não irá resolver o principal problema da Justiça: a morosidade.

Tomo a liberdade de valer-me das palavras do professor e jurista Luís Roberto Barroso, em seu artigo: “O Judiciário que não funciona”, publicado pelo jornal O Globo, no dia 22/03/2004, para manifestar minha inteira concordância com suas conclusões, quando afirma sobre a PEC que, “sem embargo de algumas inovações positivas, sua aprovação afetará muito limitadamente o funcionamento da Justiça” e, mais ainda, quando lembra que “pouquíssimas modificações verdadeiramente relevantes dependem de emenda à Constituição”. Para ele, “É possível sistematizar as grandes questões do Judiciário em três planos distintos: o ideológico-estrutural, o humano e o normativo (que importa modificações das normas constitucionais e legais em vigor), para, logo em seguida, aduzir: “O plano ideológico-estrutural envolve, em primeiro lugar, dar justiça a quem não tem acesso a ela, o que significa a criação e o aparelhamento das defensorias públicas e dos juizados especiais, destinados ao julgamento de pequenas causas. E, em segundo lugar, a melhoria da justiça prestada a quem já tem acesso, tornando-a mais ágil e confiável.

Ampliar o acesso e melhorar a qualidade exige políticas públicas bem definidas e constantes, bem como investimentos adequados em pessoal capacitado, estruturas físicas, informatização. Sem surpresa, constata-se que o primeiro conjunto de problemas não exige nenhuma reforma constitucional ou legislativa.”

Não menos expressivos são os seus comentários quanto ao plano humano que, segundo ele, “compreende diversos aspectos que serão meramente referidos, sem ser possível aprofundá-los.

Em primeiro lugar, o recrutamento de juízes deve ser precedido de um exame nacional de magistratura e o ingresso deverá ser para cursar a Escola da Magistratura, e não diretamente para o exercício do cargo. Em segundo lugar, é preciso mudar a mentalidade de partes, advogados e juízes, em relação à solução do litígio. Em países como a Inglaterra e os Estados Unidos, bem mais da metade dos processos terminam mediante acordo entre os litigantes, com intenso envolvimento do juiz na busca de uma composição. Isso ocorre tanto no cível (amicable settlement) como no crime (plea bargain). No Brasil, salvo na Justiça do Trabalho, juízes investem mínima energia nessa atividade conciliatória que abreviaria imensamente o processo”.

Aqui, abro espaço para fazer referência ao esforço da magistratura do meu Estado em fazer funcionar a justiça comunitária. Representantes da própria comunidade estão sendo capacitados para atuarem como conciliadores, sob a supervisão de um magistrado. Assim fazendo, o Poder Judiciário acreano sinaliza para o caminho que deve levar não só à verdadeira reforma do Judiciário, mas à imprescindível e necessária revolução na prestação jurisdicional.

“E, por fim, o Poder Público de todos os níveis precisa mudar sua conduta processual de se defender agredindo o direito e os fatos, de recorrer mesmo quando já se pacificou o entendimento contrário, e de se empenhar em empurrar a condenação para o próximo Governo”.

Por fim, as observações em relação ao plano legislativo, Sr. Presidente. Peço só mais um minuto de tolerância. “No plano Legislativo, é imperativa a mudança do sistema de recursos processuais, para dar-lhe mais racionalidade e celeridade. Hoje em dia, a melhor coisa que uma pessoa mal intencionada pode pretender é ser demandada na Justiça. Tudo se arrasta interminavelmente, mesmo que se trate de um juiz ou tribunal extremamente operoso. É o sistema que está feito para não funcionar. Em suma, a verdadeira reforma do Judiciário não se concentra nem se exaure na proposta hoje em votação no Senado”.

Assim, o julgamento, com o qual me ponho inteiramente de acordo, leva a uma conclusão inelutável: a PEC é mais um remendo do que uma reforma, Sr. Presidente.

A estrutura e a organização do Poder Judiciário, desde o advento da Carta Imperial outorgada, de 25 de março de 1924, vêm sendo substancialmente ampliadas. Porém, ressalvada a criação dos juizados especiais cíveis e criminais, produto da Constituição de 5 de outubro, nenhuma outra alteração de natureza organizacional beneficiou diretamente a população. Enquanto a organização muda, altera-se, amplia-se e se modifica a cada nova Constituição, os instrumentos legais que regulam o seu funcionamento, como os Códigos de Processo, Civil e Penal, sofrem um processo de sistemático envelhecimento, sem que mereça a atenção do Congresso Nacional.

Código Civil, tivemos dois, Sr. Presidente, entre 1603 e 2002. Só em janeiro de 2003, quando o Código filipino completou 400 anos de sua decretação, é que se adotou uma nova versão para o Código de Clóvis Bevilacqua, que o revogou com a entrada em vigor em 1917.

Os de natureza Penal sofreram alterações um pouco mais freqüentes. No entanto, ao contrário da organização e da estrutura, a funcionalidade da Justiça, que depende dos Códigos de Processo, só lentamente se move - estou concluindo, Sr. Presidente -, e isso é o que interessa à sociedade brasileira.

Se oito emendas constitucionais não resolveram essa questão básica da Justiça em nosso País, não será essa, por muito ampla que seja, que vai melhorar o seu funcionamento e a sua funcionalidade.

O estado cartorial em que se transformou o Brasil é estrutura inamovível, ancorada no corporativismo e no imobilismo ultraconservador dos mais variados interesses que emperram, atrasam e estão levando o Brasil ao retrocesso, em face dos países dotados de maior dinamismo.

Em apenas um ano, regredimos da condição de 12ª a 15ª economia do mundo, ultrapassados em nosso Produto Interno por países como a Austrália, com uma população de apenas 19 milhões de habitantes, e a Holanda, com pouco mais de 16 milhões.

Num país com a expressão territorial e demográfica do Brasil, com a complexidade da organização dos Poderes de Estado e da estrutura dos órgãos públicos de que hoje dispomos, torna-se ilusório supor que a reforma limitada de um deles vai alterar seu funcionamento, sua racionalidade ou sua eficiência. Nós não temos uma só, mas várias justiças. Os problemas de uma nem sempre são os de outra. Há mitos e preconceitos que têm sido utilizados tanto para denegri-las quanto para minimizar os seus males. A que justiça se refere a PEC 29, Sr. Presidente? A todas e, por conseqüência, a nenhuma.

Concluindo, Sr. Presidente, desde logo é indispensável ressalvar que a maioria absoluta dos magistrados brasileiros é composta de cidadãs e cidadãos prestantes e probos, profissionais competentes, constituindo uma categoria profissional que trava uma luta diária, no duro e solitário ofício de julgar, na maioria das vezes acima da sua capacidade física, e sem esmorecimento, mesmo desfrutando de dois meses de férias, privilégio criticado por muitos. Por outro lado, alega-se que institutos como a súmula, que se pretende vinculante, tenha por objetivo aliviar a carga dos Tribunais Superiores, notadamente do Supremo Tribunal Federal, que, em 2003, recebeu 87.186 processos, o que representa pouco mais da metade da quantidade protocolada em 2002.

A quantidade de demandas judiciais é só um dos problemas com que se defrontam os juízes. A Justiça brasileira padece de muito mais. Esta reforma, infelizmente, não vai evitá-los e, menos ainda, melhorar o acesso dos cidadãos aos tribunais, na defesa dos direitos dos que deles vivem, há muito, carentes. Na verdade, se o propósito fosse, de fato, melhorar o funcionamento do Judiciário, bastaria reeditarmos o art. 161 da Constituição de 1824 para resolvermos grande parte dos problemas vividos pela população no tocante à prestação jurisdicional. A sugestão atende, inclusive, ao conselho do Prof. Luís Roberto Barroso em seu artigo aqui transcrito. A redação daquele artigo mostra como são simples as soluções quando o intuito, mais do que reformar, é o de simplificar. “Art. 161 - Sem se fazer constar que se tem intentado o meio de reconciliação, não se começará processo algum”.

Com essas considerações, declaro meu voto contrário ao acolhimento da presente medida provisória pelas razões acima expostas.

Muito obrigado, Sr. Presidente, pela tolerância.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/07/2004 - Página 21455