Discurso durante a 100ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Considerações sobre o artigo do ex-Ministro Pedro Malan, publicado na edição de ontem de O Estado de S.Paulo.

Autor
Arthur Virgílio (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AM)
Nome completo: Arthur Virgílio do Carmo Ribeiro Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • Considerações sobre o artigo do ex-Ministro Pedro Malan, publicado na edição de ontem de O Estado de S.Paulo.
Publicação
Publicação no DSF de 13/07/2004 - Página 23413
Assunto
Outros > GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • TRANSCRIÇÃO, ANAIS DO SENADO, ARTIGO DE IMPRENSA, PUBLICAÇÃO, JORNAL, O ESTADO DE S.PAULO, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), AUTORIA, PEDRO MALAN, EX MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA FAZENDA (MF), ANALISE, HISTORIA, BRASIL, TENTATIVA, GOVERNO FEDERAL, DESVALORIZAÇÃO, RESULTADO, GESTÃO, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA.

O SR. ARTHUR VIRGILIO (PSDB - AM. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o Governo atual está construindo, sim, sobre avanços de governos anteriores. Esse é o tema do artigo do ex-Ministro Pedro Malan, publicado na edição de ontem de O Estado de S. Paulo. Para que o historiador do futuro disponha de elementos de aferição do Governo Lula, estou juntando o artigo referido a este pronunciamento, para que, assim, passe a constar dos Anais do Senado da República.

O texto é o seguinte:

Os ciclos do Millôr e o infindável diálogo

Pedro S. Malan

A cada quinze/vinte anos o Brasil esquece o que aconteceu nos últimos quinze/vinte anos." A frase, se não me falha a memória (afinal, já se passaram mais de 20 anos), é do genial Millôr Fernandes, a quem jamais escapariam algumas datas-chave, consideradas rupturas com o passado, como, por exemplo, 1930, quando o Brasil tentou esquecer a República Velha. Ou 1945, quando o País tentou esquecer os 15 anos de varguismo e iniciar um experimento democrático - que acabou durando menos de 20 anos. O regime militar instaurado em 1964 e que pretendeu esquecer o período democrático anterior durou também cerca de 20 anos. O ciclo pós-regime militar iniciou-se em 1985 e, como já se passaram quase 20 anos, há quem entre nós considere que um novo ciclo de mudanças históricas, políticas, sociais e administrativas teria começado a partir de 2003, após um período de quase 20 anos de "transição pós-regime militar". Para estes, mudanças antes historicamente impensáveis estariam redesenhando novas geometrias externas e internas, esquecendo os últimos 15/20 anos.

Se os ciclos do Millôr existissem, o País estaria agora escrevendo a crônica de uma nova ruptura, preanunciada para algum momento entre 2018 e 2023, quando o Brasil esqueceria o que aconteceu a partir de 2003. Acho que nem o extraordinário humor de Millôr chegaria a tanto. Afinal, é de outro gênio do humor brasileiro, Luis Fernando Veríssimo, a pertinente observação: "Se o século 20 nos ensinou algo, foi a acrescentar a expressão salvo erro a qualquer projeção, e a expressão salvo novas evidências em contrário a qualquer conclusão."

A brincadeira de Millôr, como tudo o que nos vem de seu livre-pensar, expressa também algo instigante, isto é, a importância de que um país esteja sempre (ou a intervalos mais ou menos regulares) a mirar esperançosamente à frente, e não ficar olhando pelo retrovisor a estrada já trilhada - os "últimos 15/20anos".

Mas, para aqueles que consideram a História, ou o fugidio momento presente, como um infindável diálogo entre passado e futuro, a idéia de negar o passado, ou dar-lhe um rótulo ou adjetivo fácil (o que é uma forma pseudo-sofisticada de esquecimento) não é muito promissora.

Na verdade, a cada momento, e não apenas a cada geração, um país está revisitando, reinterpretando e repensando seu passado à luz de duas coisas:

(a) os problemas mais angustiantes e prioritários do presente e (b) esperanças, expectativas, desejos e sonhos em relação a seus possíveis futuros.

Quanto mais rico, informado e profundo este diálogo, melhor uma sociedade conhece a si mesma e, portanto, mais capaz é de extrair do conhecimento do passado (seu próprio e do mundo mais amplo do qual é parte) as lições - erros e acertos - que lhe podem dar o mínimo de autocrítica, auto-estima e confiança para vislumbrar e tentar construir seu futuro. Sem as ilusões das grandes rupturas, das reinvenções da roda e de tentativas de estabelecer um marco zero a partir do qual se começariam a fazer coisas que nunca jamais ninguém teria tido a idéia de fazer nos 500 anos de História deste país.

Não quero, de forma alguma, sugerir que não haja casos de rupturas relevantes com o passado. Tampouco que algumas destas possam, sob certas condições, ir criando condições para significativos avanços de uma sociedade. Por vezes, em períodos de tempo relativamente curtos do ponto de vista da História de um país. Portugal e Espanha são dois exemplos conhecidos de extraordinário progresso - econômico, social, político e institucional - no curto espaço de uma geração, após quase simultâneas rupturas com longos passados autoritários.

Contudo, feita a transição para a democracia e consolidada esta, em ambos os países há pouco mais de 20 anos, nenhum deles tentou nenhuma outra grande ruptura ou pretendeu reinventar a roda. Integraram-se às economias européia e mundial, com benefícios palpáveis para as respectivas populações, que hoje trocam de governo, como sói acontecer em democracias, mas não querem saber de aventuras populistas nem de experimentos econômicos que possam pôr em risco ganhos já alcançados.

No Brasil, a nossa ruptura com o período do regime militar ocorreu em 1984-1985 e a nossa democracia se consolidou nos anos 90. Não há mais grandes rupturas à vista, tanto no plano político como no econômico. Há, sim, um enorme trabalho pela frente e que muito continuará a exigir da sociedade e, principalmente, de um governo que gerou exacerbadas expectativas. Que não serão atendidas por meio de críticas fáceis ao passado, baseadas nas certezas da visão retrospectiva, que, como sabemos, acha que sabe quase tudo - sobre o que já ocorreu.

É interessante notar que muitas das manifestações sobre o recém-completado décimo aniversário do Real foram, se as li corretamente, variantes da seguinte estrutura: o Real controlou a inflação (temos dificuldade de chamar um processo hiperinflacionário pelo nome), mas não "resolveu" todos os principais problemas do País (como se, ingenuamente, a isso se tivesse proposto no curto prazo) e, segundo alguns, teria gerado problemas adicionais (ou antes encobertos pela anestesia inflacionária, ou derivados da tentativa de preservar a inflação sob controle).

Algum dia, interpretações menos simplórias e menos politicamente motivadas emergirão, com um senso de perspectiva que cubra mais de um dos ciclos do Millôr, que não devem ser esquecidos. Afinal, o Brasil e seu governo têm obrigação de olhar adiante. Na minha opinião, é impossível fazê-lo de forma adequada sem um mínimo de compreensão das condições específicas em que se desenvolveram os processos que nos trouxeram à situação atual. Quando este diálogo tem uma certa qualidade, um país consegue evitar a perda de sua memória histórica e, talvez, relegar apenas às emoções dos discursos de palanque a noção de que todos os esforços anteriores não foram mais que sucessões de erros a serem corrigidos.

Discursos puramente retóricos à parte, o fato é que, na prática, o governo atual está, como qualquer governo em qualquer parte do mundo democrático, construindo, sim, sobre alguns avanços alcançados por governos anteriores.

Cresce entre nós a percepção de que todo e qualquer governo, sem exceção, tem seus acertos e seus erros. E de que em governos ninguém estabelece reputação com base naquilo que diz esperar poder fazer um dia, no futuro.

Como já escrevi neste espaço, falar e escrever é fácil. O difícil é fazer. E só não erra quem não decide, tenta, faz e refaz. Este governo não é e não será exceção. E tampouco se protegerá de riscos e incertezas culpando um passado sem o qual não poderia estar fazendo o que faz.

Complexo é o país. Difícil é o governo. Dura é a vida. Felizmente, há sempre o humor do Millôr e das extraordinárias gerações que se lhe seguiram.

Pedro S. Malan, economista, foi ministro da Fazenda no governo FHC.

Era o que eu tinha a dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/07/2004 - Página 23413