Discurso durante a 116ª Sessão Especial, no Senado Federal

Homenagens ao ex-Presidente Getúlio Vargas, pelo transcurso dos 50 anos de seu falecimento.

Autor
Tasso Jereissati (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
Nome completo: Tasso Ribeiro Jereissati
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagens ao ex-Presidente Getúlio Vargas, pelo transcurso dos 50 anos de seu falecimento.
Publicação
Publicação no DSF de 25/08/2004 - Página 27486
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, CINQUENTENARIO, ANIVERSARIO DE MORTE, GETULIO VARGAS, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, ELOGIO, VIDA PUBLICA, MODERNIZAÇÃO, ESTADO, RENOVAÇÃO, REPUBLICA, DIREÇÃO, DESENVOLVIMENTO NACIONAL, ANALISE, DITADURA, ESTADO NOVO, INDUSTRIALIZAÇÃO, RETORNO, GOVERNO, DEMOCRACIA.

            O sr. Tasso jereissati (psdb - ce. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há 50 anos, Getúlio Vargas - como ele mesmo afirmara em sua carta testamento - deixava a vida para entrar na história. Mesmo depois de decorrido meio século, Getúlio continua a despertar paixões, a favor e contra aquele que, a despeito das controvérsias que gera, é apontado unanimemente como a maior figura política brasileira, em todos os tempos.

Tão grande, que de uma forma ou de outra, influenciou e continua a influenciar todas as gerações de políticos brasileiros, até hoje. Posso testemunhar por exemplo, como Getúlio foi determinante na vida de meu pai, Carlos Jereissati.

Filho de imigrante libanês, meu pai sofreu toda espécie de preconceitos, comuns também aos brasileiros que se batiam contra as barreiras sociais e econômicas impostas pelas oligarquias rurais, interessadas em manter a monocultura cafeeira, fonte do poder daquelas elites. Mesmo sem ser político, guardava profunda identidade com Getúlio, admirando a força e a coragem daquele homem que se levantara contra a política do “café-com-leite” que dominava a república velha. Como milhões de brasileiros, meu pai reconhecia em Getúlio o líder capaz de transformar a sociedade brasileira, elitista, retrógrada e excludente, em algo novo, igualitário e integrante, um Brasil de todos.

Tal era sua admiração por Vargas, que meu pai ousou recebê-lo como hóspede em sua casa em Fortaleza, saindo do exílio em São Borja, quando Getúlio apenas ensaiava seu retorno à vida pública, após a queda do estado novo. Àquela época, Getúlio era execrado, perseguido pelas mesmas forças que o obrigaram a renunciar em 1945 e temiam sua influência e popularidade junto aos trabalhadores e os mais pobres. Dar-lhe abrigo era perigoso e arriscava-se, quem o fizesse, a ser tomado como inimigo pelo poder constituído, numa época de caça às bruxas. Trazido por Salgado Filho, Getúlio veio à nossa casa para - mais tarde eu saberia - mudar nossas vidas para sempre.

Construiram-se então uma amizade e uma admiração mútua que marcou a trajetória política de meu pai, iniciada com a construção do ptb no ceará. Com o retorno de Getúlio à presidência, agora em bases democráticas e motivado por levar a defesa de Getúlio contra os ataques de Carlos Lacerda até o Congresso Nacional, meu pai já era candidato à Câmara dos Deputados antes mesmo do fatídico agosto de 1954. Mesmo tomado de surpresa pelo gesto trágico do líder e amigo, insistiu na campanha e foi eleito em outubro daquele ano. Desde de sua posse na Câmara em 1955 até sua morte em pleno mandato de Senador em 1963, defendeu as bandeiras levantadas por Vargas.

Esforço-me, entretanto, para que esta vertente pessoal não desvirtue minha análise de Getúlio e do getulismo. Abstendo-me das paixões que o assunto comumente provoca, prefiro mirar Getúlio e a sua importância para este país, pelo ponto de vista de sua obra. E sua obra se espalha por todos os setores da vida nacional.

Não seria exagero afirmar que o próprio Estado brasileiro começou com Getúlio. Estamos nos referindo ao estado no sentido prático, da sua efetiva presença, de forma organizada, na vida dos cidadãos. Se é verdade que já existíamos há muito como nação, com identidade cultural sendo construída desde sempre; no Brasil do final da década de 20 o estado nacional se resumia à capital federal. A atuação da união nos Estados, pouco se diferenciava das antigas províncias coloniais, obedecendo aos interesses e circunstâncias dos acordos locais com o poder central. O que alguns estudiosos chamavam de “nervos” do estado, ou seja, a rede institucional necessária a implantação de qualquer política pública de âmbito nacional, as bases da organização governamental, tudo se inicia com a revolução liderada pelo Rio Grande do Sul, Minas e Paraíba - portanto, com decisiva participação do Nordeste. Nem poderia ser diferente. Como um movimento que pretendia alterar as bases de uma sociedade quase feudal, sem promover profundas transformações nas estruturas de poder e de governo propriamente dito? Como transformar as relações trabalho x capital, fundadas em condições quase escravocratas, sem criar institutos e instrumentos de valorização dos trabalhadores? Por outro lado, como alterar uma sociedade que economicamente era incapaz sequer de produzir os próprios sapatos e tecidos que consumia, sem estabelecer institutos que propiciassem esta mudança? A absoluta dependência externa condenava os brasileiros a uma igual mendicância em relação aos representantes internos dos interesses estrangeiros e estes tinham que ser removidos.

Da mesma forma era necessário estabelecer uma nova relação com o capital estrangeiro, enfrentando todos os obstáculos e as forças que a isso se opunham. Esta última questão acompanhou Vargas até seus últimos dias. Não é por acaso que a carta testamento cita a lei de remessa de lucros, por ele tão intransigentemente defendida, como a causa por trás das campanhas encetadas contra ele por seus inimigos. Esse era em linhas gerais, o ideário da revolução de 30, da qual Getúlio inteligentemente soube cristalizar-se como símbolo.

O nacional-desenvolvimentismo implantado por Vargas, foi a base política responsável pela construção dos marcos do Brasil moderno. Para servir de instrumentos dessa nova ideologia, Getúlio criou, quer como líder do movimento rebelde, quer como ditador autoritário, a máquina e as leis necessárias ao novo Brasil. A profissionalização do serviço público, com a criação do DASP, a Justiça do Trabalho, o Ministério do Trabalho e a consolidação das leis trabalhistas, o salário mínimo, a Previdência Social, o Ministério da Saúde, a nacionalização do petróleo e a Petrobras são exemplos deste instrumental. Seu pensamento, estejamos falando de qualquer dos dois getúlios, alcançava muito além do horizonte imediato. Inaugurou o planejamento de longo prazo com o IBGE e o BNDE (atual BNDES), ampliou o processo de integração nacional com os correios e o correio aéreo nacional, para muito além da construção de estradas. Essa visão que alguns consideravam meramente intuitiva, veio a se revelar estratégica na opção pelos aliados na 2ª Grande Guerra. Mesmo após conflagrado o conflito mundial, Getúlio consegue manter o equilíbrio até o último instante, flertando tanto com o eixo quanto com os aliados, tirando proveito de ambos. Reprovável ou não tal procedimento, a verdade é que dele resultou a liderança estratégica de um continente em que todos os outros países optaram pela neutralidade. Esta preferência, entre outros benefícios, valeu-nos o financiamento americano para inúmeros projetos industriais como a companhia siderúrgica nacional em volta redonda.

Muitos condenam a transformação do líder libertário em um déspota repressor.

Prefiro buscar compreender um homem, qualquer um, como fruto de seu tempo e de suas circunstâncias. E o mundo dos tempos de Getúlio Vargas era tremendamente instável, experimentando profundas transformações em velocidade incontrolável. A América recuperava-se do crash de 29, fruto do excessivo liberalismo da economia. As ditaduras totalitárias, por sua vez, sejam de direita como de esquerda, ainda não haviam demonstrado sua face mais cruel e contavam com poderosa propaganda. Internamente Getúlio se via entre integralistas e comunistas, numa edição caseira dos conflitos ideológicos internacionais que ditaram as relações internacionais até bem recentemente. Por seu lado, as diversas forças de oposição já haviam mostrado sua força na revolução constitucionalista de 32 e a intentona comunista de 35. Sentindo-se ameaçado, tanto à direita quanto à esquerda, em 1937 Vargas não resistiu à tentação do golpe. Atacado por antigos companheiros liberais, alvo da esquerda aparelhada e preso na verdadeira barafunda ideológica do Brasil de então, Vargas preferiria a força. Rendia-se ao fascínio da miragem fascista, que seduzia o continente.

O Estado Novo sepulta a república nova e tudo que eventualmente tivesse de democrática. Vargas via-se agora livre dos incômodos constitucionais que jurara defender na carta de 1934. Surgia um estado à feição de seu criador, fechado, voltado para si próprio, personalista e concentrador, muitas vezes autoritário. Há, entretanto, um traço distintivo entre a ditadura de Vargas e seus similares europeus. Não havia um partido como sustentáculo político do estado novo. O Estado Novo era Getúlio, parafraseando Luís XIV. Em assim sendo, Getúlio era um homem só. E era só um homem, repleto de contradições, como demonstrou ao longo da vida. Finda a guerra, os pracinhas são o símbolo de mais esta contradição, de nos alinharmos contra regimes que em muito se assemelhavam ao nosso estado novo. É o mote dos neogolpistas que forçam sua renúncia em outubro de 1945. Cai Getúlio, o ditador que abandonara os ideais democráticos dos rebeldes de 30, mas que ironicamente consolidara um dos pilares revolucionários: a construção de uma nova sociedade, emergente da ruptura do pacto oligárquico da monocultura e da total dependência externa, para uma nova realidade com a substituição das importações através de um processo de industrialização e urbanização, acompanhada da expansão das classes média e proletária urbanas. Esta mudança, já não tinha retorno. Para desespero de seus opositores, a popularidade de Vargas - construída em boa dose com a descarada utilização de poderosa propaganda, mas sem dúvida nenhuma, também motivada por inquestionáveis avanços sociais - só aumenta. As massas trazem de volta ao poder, o “pai dos pobres”, agora, por ironia, de forma democrática.

A desconfiança dos conservadores e dos militares anticomunistas, as críticas da esquerda aparelhada que por sua vez o denunciavam como entreguista, as condicionantes da nova geopolítica da “guerra fria” transformaram o novo governo Vargas em um turbilhão incontrolável. O episódio da rua Tonelero fora apenas a gota d’água de um processo de desgaste que levaria irremediavelmente o país a um impasse. Vítima incompreendida ou déspota ardiloso, Getúlio escolhe a morte como o ato final de uma tragédia brasileira.

Há quem critique, com razão, os excessos de Getúlio. Condena-se, por exemplo, os rigores da legislação sindical e trabalhista e o protecionismo que acabou por nos retardar a integração à economia globalizada, hoje indispensável ao desenvolvimento. Isto é fato. Mas fato também é que ele foi o primeiro a pensar e implantar uma política de desenvolvimento para o Brasil, de longo prazo. Certo ou errado, o saldo é mais do que positivo.

Poucos de seus sucessores, mesmo em circunstâncias institucionais e históricas muito mais favoráveis, ousaram tanto.

            Ousadia Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ousar e inovar. Esta foi uma das lições de Vargas que os que hoje, louvam ou criticam, quer o Getúlio revolucionário, quer o Getúlio do estado novo, não foram por aqueles absorvidas. O Presidente Fernando Henrique sintetiza Getúlio como “um homem que sabia sonhar com os pés no chão”. Não me atrevo a resumir Getúlio Vargas a apenas um conceito. Talvez porque para compreender completamente as múltiplas dimensões de um grande homem como Getúlio Vargas e suas idéias, sejam necessários bem mais do que “apenas” 50 anos.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/08/2004 - Página 27486