Pronunciamento de Luiz Pontes em 25/08/2004
Discurso durante a 118ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Reflexão sobre os 50 anos da morte do ex-Presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas.
- Autor
- Luiz Pontes (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/CE)
- Nome completo: Luiz Alberto Vidal Pontes
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- Reflexão sobre os 50 anos da morte do ex-Presidente da República, Getúlio Dornelles Vargas.
- Publicação
- Publicação no DSF de 26/08/2004 - Página 27750
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM, CINQUENTENARIO, ANIVERSARIO DE MORTE, GETULIO VARGAS, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, OPORTUNIDADE, ANALISE, IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, MODERNIZAÇÃO, ECONOMIA NACIONAL, INSTALAÇÃO, INDUSTRIA BASICA, LEGISLAÇÃO SOCIAL, TRANSFORMAÇÃO, PAIS.
O SR. LUIZ PONTES (PSDB - CE. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, há cinqüenta anos, um tiro no peito punha fim à vida de um homem público que, muito mais do que qualquer outro, marcou a História brasileira. Ao decidir-se pelo suicídio para “sair da vida na direção da eternidade e entrar na História”, ele fez do derradeiro gesto, mais que uma atitude humana carregada de dramaticidade, o ato político que coroou sua trajetória e revolveu as entranhas da política nacional.
Getúlio Dornelles Vargas, esse gaúcho nascido no século XIX que entronizou o Brasil na modernidade do século XX, atingiu a real dimensão de estadista. Passados cinqüenta anos de sua morte, ninguém fica indiferente ao personagem e à sua obra. Para combater ou elogiar, todos encontram nessa figura maiúscula de nossa Pátria abundante material para sua análise.
Nenhum outro homem público conseguiu reunir em torno de si a enorme complexidade de Vargas. Como ser humano, era uma espécie de alma intransponível, fechado por completo em seus fantasmas, sonhos e ilusões. Um ser que se protegia do mundo, jamais permitindo que sua intimidade pudesse ser violada.
Como político, Getúlio levou ao extremo sua devoção às denominadas razões de Estado. Com efeito, ele seria capaz de atos e atitudes que, ao comum dos mortais, pareceriam incompreensíveis. Um exemplo basta para confirmar essa face de sua personalidade. Ainda que internamente dilacerado pela dor, não titubeou em afastar-se do amado filho Getulinho em seu leito de morte para não faltar ao estratégico encontro com o presidente Roosevelt, na cidade de Natal, em plena Segunda Guerra Mundial.
Desse encontro sairia - como, de fato, saiu - o acerto final em torno do financiamento norte-americano para a Companhia Siderúrgica Nacional. Entre garantir a construção da obra que seria o ponto de partida para a moderna industrialização brasileira e acompanhar os últimos instantes de vida de seu filho, Vargas fez a opção do estadista. Sabe Deus a que custo, mas agiu conforme chefe de Estado e de Governo que tem plena e absoluta consciência de seu dever.
Vargas chegou ao poder, à frente do movimento armado que sepultou a República Velha, no momento em que o Brasil e o mundo começavam a sofrer os efeitos devastadores da Crise de 1929, cujo epicentro foi a queda da Bolsa de Valores de Nova Iorque. Na esteira da Grande Depressão que se seguiria e que marcaria, em larga medida, os anos 1930, ele assume o comando de um país agro-exportador, dependente ao extremo do mercado internacional, que importava seus produtos primários.
Em meio à mais profunda crise que o capitalismo conhecera até então, incomparavelmente mais ampla e perversa que a depressão surgida por volta de 1873, Getúlio Vargas compreende a dimensão do desafio que se coloca à sua frente. Além das medidas conjunturais imediatas - como a aquisição de café para ser queimado, na tentativa desesperada de impedir a deterioração ainda mais aguda de seu preço no exterior, e a suspensão das hipotecas de brasileiros endividados que não dispunham de meios para honrar suas dívidas -, era preciso pensar grande, imaginar um futuro ainda muito distante e quase intangível, de modo a estabelecer a rota a ser seguida, da qual emergisse um Brasil novo e diferente.
É em momentos assim, Sr. Presidente, que se comprova a diferença entre o simples político e o verdadeiro estadista. A capacidade de intuir a direção para a qual se movem os ventos da História e de escolher os instrumentos certos para interferir no processo é algo encontrável apenas entre os que se afastam da mesmice e da rotina. É desse material que são forjados os autênticos estadistas. Esse é o Vargas que entrou definitivamente na História do Brasil, sepultando um passado arcaico, pesado e moroso e fazendo nascer um País dinâmico e inovado.
Essa visão permitiu a Getúlio tangenciar suas origens. Homem de uma fronteira conquistada e preservada pela luta, não raro com o uso regular das armas, ele nasceu e se formou no contexto da cultura agropastoril, fortemente voltada para a exportação de carne. Não obstante, ao chegar ao poder federal, no quadro de crise pronunciada do velho modelo econômico, demonstrou compreender, com invejável nitidez, os rumos apontados pela nova economia.
Ele sabia estar na diversificação agrícola e na industrialização a única chance de que dispunha o País para se viabilizar. No primeiro caso, libertava-se a economia brasileira do fardo da monocultura, responsável por nossa perigosa vulnerabilidade. Com a industrialização, o País trilharia os caminhos da modernidade, afastando-se do descompasso em relação ao dinamismo econômico do mundo contemporâneo.
Vargas teve clareza quanto ao papel a ser desempenhado pelo Estado em todo esse processo. Tradicionalmente carente de capitais, o Brasil teria que contar com a ação empreendedora do poder público, sob pena de não conseguir deslanchar seu desenvolvimento. Nesse sentido, ele deixou de ser apenas o dirigente máximo do Brasil para se constituir em referência latino-americana. Afinal, o quadro de carências materiais e sociais existente no Brasil não diferia, significativamente, do cenário apresentado pelas demais nações do Continente. Desse modo, ao tomar as decisões que tomou no Brasil, ele acabou por apontar caminhos que, com maior ou menor intensidade, os demais países da América Latina procuraram seguir.
Sr, Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, em termos políticos, Getúlio jamais conseguiu esconder sua formação positivista e sua concepção centralizadora da política. Coincidentemente, ele ganha projeção nacional em meio a uma conjuntura internacional de crise intensa, justamente o período do entre-guerras mundiais, quando a falência do modelo liberal de Estado é atestada à esquerda e à direita. Desse modo, sentiu-se à vontade para imprimir a marca autoritária ao Estado brasileiro, processo cuja culminância se dá no Estado Novo.
Cerca de seis décadas depois de encerrada a experiência totalitária getulista e quase duas décadas após o fim da ditadura militar, por certo que nosso amadurecimento político, conseguido à custa de muito sacrifício e de muita luta, não mais admite outro caminho que não a democracia. Assim, em relação às concepções políticas de Vargas nada temos hoje em comum. Ainda que compreendamos o momento histórico em que foram aplicadas, a elas jamais voltaremos - é o que sinceramente penso.
Sob o ponto de vista social, entretanto, Vargas se agiganta. Antes dele, sabemos todos, a questão social era tratada no Brasil como “caso de polícia”. Creio ser justo afirmar que, com ele, o capitalismo brasileiro não apenas encontra as condições necessárias para sua afirmação, com o Estado assumindo a função indutora do desenvolvimento, como também adquire feições “humanas”. Isso não é pouco, especialmente se levarmos em consideração um passado histórico de três séculos de escravidão, de uma abolição que não cuidou da inserção dos ex-escravos na cidadania, além de outras formas menos ostensivas de exploração do trabalho.
O surgimento da Consolidação das Leis do Trabalho, a CLT, no difícil contexto da Segunda Guerra Mundial, deve ser entendido como símbolo de um novo tempo. Assim, ao mesmo tempo em que se deslancha a industrialização - tendo na Companhia Siderúrgica Nacional, na Fábrica Nacional de Motores e na Companhia Vale do Rio Doce seus elementos definidores -, o Estado volta seu olhar sobre o mundo do trabalho, agindo no sentido de lhe oferecer a proteção que jamais tivera.
Esse mesmo Vargas foi ousado o bastante para instituir o salário mínimo no País, identificado como ponto de partida para a remuneração do trabalhador, de modo a garantir-lhe - bem como à sua família - o sustento digno.
Esse mesmo Vargas foi corajoso o bastante para, em 1953, de volta à Presidência da República pelo voto direto dos brasileiros, recuperar o poder de compra do salário mínimo, conferindo-lhe aumento nominal de 100%.
Esse mesmo Vargas foi sensível o bastante para compreender a necessidade da organização política dos trabalhadores por meio de sindicatos, ainda que, em sintonia com o contexto histórico em que operava, os mantivesse atrelados ao aparelho de Estado.
É evidente que o trabalhismo de Vargas envelheceu com o tempo, o que não é difícil de entender. A dinâmica evolutiva do mundo contemporâneo, em particular a partir dos anos cinqüenta do século passado, é de tal ordem e ocorre com tamanha celeridade que o próprio sistema produtivo não é mais nem sombra do que era há algumas décadas. Outras são as demandas sociais, bem como outras - e bem muito diferentes - são as novas formas de organização da produção e do trabalho, em um ambiente cada vez mais conduzido pelo conhecimento e pelas inovações tecnológicas.
Além disso, mudaram os próprios parâmetros básicos sob os quais se desenrola a cena política. Não é mais crível que sindicatos vivam à sombra do Estado, da mesma forma que a ninguém ocorre, hoje, reduzir a democracia à atuação dos partidos políticos e à realização periódica de eleições.
O tempo em que vivemos é por demais distinto daquele que marcou a atuação pública de Vargas. Não obstante, torna-se impossível negar seu decisivo papel na origem do salto modernizador da economia nacional, a partir da instalação da indústria de base, e da legislação de cunho social, fundamental para a nova configuração do País.
Encerro este pronunciamento, Sr. Presidente, com a certeza de que não se pode analisar a História movido por idéias pré-concebidas, pelo olhar unilateral e pelo foco reducionista. Assim como a vida, a História é por demais complexa para ser entendida de maneira linear e simplista.
Na História do Brasil, Getúlio Vargas é o personagem que melhor simboliza a complexa teia que envolve os atos humanos, sobretudo as ações políticas. Compreender seu papel exige, pois, em primeiro lugar, a sincera disposição de não se deixar prender a dogmas e a preconceitos. Dialeticamente humano, Vargas protagonizou papel único em nossa História. Quanto mais refletirmos sobre esse personagem e seu tempo, quanto mais aprofundarmos nosso conhecimento sobre essa tão rica experiência histórica do Brasil republicano, mais compreenderemos a Nação que fomos capazes de construir.
A rigor, o conhecimento histórico nada mais é senão isto: o presente inquirindo o passado, não para julgá-lo, mas para compreender o que somos. No caso brasileiro, nada em nosso passado tem a força que até hoje, meio século depois de morto, Vargas continua a mostrar. Basta isso para concluir que nenhum outro personagem histórico em nosso País conseguiu, na dimensão e na intensidade dele, sair da vida para entrar na História.
Muito obrigado!