Discurso durante a 119ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre os transgênicos.

Autor
Fátima Cleide (PT - Partido dos Trabalhadores/RO)
Nome completo: Fátima Cleide Rodrigues da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.:
  • Considerações sobre os transgênicos.
Publicação
Publicação no DSF de 27/08/2004 - Página 27941
Assunto
Outros > POLITICA CIENTIFICA E TECNOLOGICA.
Indexação
  • COMENTARIO, PROJETO, SEGURANÇA, BIOTECNOLOGIA, ANALISE, RISCOS, PRODUTO TRANSGENICO, DENUNCIA, MANIPULAÇÃO, INFORMAÇÃO, ASSUNTO, ATENDIMENTO, INTERESSE, PODER ECONOMICO.
  • COMENTARIO, OCORRENCIA, CONTESTAÇÃO, UTILIZAÇÃO, PRODUTO TRANSGENICO, DIVERSIDADE, PAIS, MUNDO.
  • COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL DO BRASIL, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), CULTIVO, PLANTAS PSICOTROPICAS, ALTERAÇÃO, GENETICA.
  • DETALHAMENTO, ORDEM CRONOLOGICA, HISTORIA, PRODUÇÃO, COMERCIALIZAÇÃO, UTILIZAÇÃO, PRODUTO TRANSGENICO, MUNDO.

            A SRª FÁTIMA CLEIDE (Bloco/PT - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, reanima-se o debate sobre os transgênicos, com o projeto da Lei Nacional de Biossegurança na pauta de votações do Senado. E se reacende o debate sob a pressão das culturas transgênicas que se expandem em solo brasileiro - ao arrepio da lei e sem o conhecimento da população.

            As ciências biológicas e suas aplicações são produto de curiosidade humana muito antiga. Porém, só a partir dos anos 70 é que se usam técnicas de engenharia genética. A transgenia é uma dessas técnicas.

            E é uma técnica tão especial que disparou um debate mundial sobre segurança alimentar da humanidade e poluição genética - um alerta geral.

            Poluição genética, porque necessariamente a transgenia rompe as fronteiras entre as espécies, misturando, por exemplo, características genéticas de uma bactéria ao código genético de uma planta ou de um ser humano, ou de qualquer ser vivo a qualquer outro ser vivo. 

            E o mais grave nisso tudo, do nosso ponto de vista, é a natureza das motivações dessas proezas biotecnológicas.

            Na verdade, sob o pretexto de "acabar com a fome no mundo", essas proezas têm-se realizado sempre no sentido de saciar a insaciável "fome de capital" do mercado mundial do século XXI.

            Não é de hoje que nos surpreende e encanta a complexa rede de relações entre as diferentes espécies de seres vivos e o perfeito sistema que as harmoniza e equilibra entre si e ao meio ambiente: cada espécie naturalmente programada com funções específicas para existir em processo de transformação constante e dinâmico equilíbrio com a diversidade que lhe cerca.

            No entanto, pondera Frei Leonardo Boff, "o universo trabalhou 15 bilhões de anos, e a biogênese, 3,8 bilhões, para ordenar as informações que garantem a vida e seu equilíbrio. Nós, numa geração, pretendemos já controlar esses processos complexíssimos, sem medirmos as conseqüências de nossa ação".

            Até este momento, todo acúmulo científico não conhece nem metade das espécies vivas deste planeta. E sobre estas, sabemos muito pouco. Além disso, multiplicam-se as dúvidas científicas sobre o próprio conceito de gene.

            É fato: produtos geneticamente modificados por transgenia manipulam com o que não se conhece e colocam todos os seres vivos sob risco de proporções imprevisíveis e irreversíveis.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a poluição genética não é o único risco grave dos transgênicos.

            O processo pelo qual está sendo desenvolvido e implementado no mundo tem por motivação predominante o monopólio da produção mundial de alimentos, por meio de sementes geneticamente modificadas, patenteadas por duas ou três grandes empresas transnacionais de agrotóxicos - comprovadamente, sem qualquer compromisso ético, social ou ambiental.

            O Jornal do Brasil publicou, ontem, exemplo bastante atual das motivações a que me refiro, ao noticiar cultivos de coca transgênica, encontrados por agentes antinarcóticos colombianos.

            As plantas de coca, geneticamente modificadas, são muito mais altas que as normais, produzem mais por hectare e o percentual de cocaína que se obtém delas é de 97 a 98%. Vale dizer que, na planta normal, esse percentual é de mais ou menos 25%.

            Segundo os agentes policiais colombianos, agora os narcotraficantes estão investindo alto na produção de uma variante de coca que resista ao glifosato - veneno que o governo tem usado para destruir as plantações ilegais de coca na Colômbia.

            A técnica de transgenia pretendida pelos narcotraficantes é a mesma que já se aplica à soja e outros grãos - sob outros pretextos - pelas empresas que dominam o mercado internacional de agrotóxicos.

            No Brasil, a ilegalidade não foi suficiente para evitar que essas empresas ocupassem nossos campos com suas sementes geneticamente modificadas para vender mais de seus agroquímicos específicos. 

            Até este momento, tal proeza biotecnológica tem resultado mesmo é no aumento dos lucros daquelas empresas, assim como no aumento da fome e das desigualdades no mundo.

            Nos últimos oito meses, o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento executou inspeções em 806 municípios, fiscalizou mais de 5.000 estabelecimentos e coletou mais de 7.000 amostras, nos 14 estados produtores de soja.

            Das amostras coletadas, 296 revelaram presença de soja geneticamente modificada.

            Em 88 desses casos, os produtores haviam assinado o Termo de Compromisso e Ajustamento de Conduta, previsto pela Lei 10.814/2003. Outros 117 produtores não assinaram.

            Nesse mesmo período, a Secretaria de Apoio Rural e Cooperativismo do Ministério da Agricultura autuou 62 produtores, indústrias, armazenadoras e transportadoras de soja.

            Portanto, não podemos mais ficar de olhos fechados. Ou, parodiando a expressão popular: Pode-se não acreditar em transgênios, "mas que los hai, los hai" - nos nossos campos agrícolas, nas prateleiras dos supermercados, no prato dos brasileiros desavisados.

            Isso exige uma postura nova no trato com a transgenia, de modo a que se valorize, sobretudo, a ética da responsabilidade e o controle social para os transgênicos.

            Por isso mesmo - pondera a jornalista Fátima Oliveira - a comunidade científica tem o dever de prestar contas a todo o povo, que paga os investimentos em ciência, assim como caberá às autoridades de governo assegurar a participação de todo o povo nessas decisões, tão estratégicas para o futuro da humanidade.

            Afinal, não se pode negar que muita coisa já saiu errado com os "transgênicos seguros", desde o primeiro plantio comercial, nos Estados Unidos, em 1994:

1. Aprovada para plantio comercial nos EUA em 1994, a primeira colheita de soja transgênica se deu em 1996. Dois anos depois, pesquisadores encontraram níveis inferiores de fitoestrogênios na soja transgênica. Em 1999, foi encontrada uma importante alteração no metabolismo dessa soja, possível causa do rachamento do caule da planta em situação de calor excessivo;

2. Em 2000, foi descoberto que fragmentos desconhecidos de DNA foram adicionados acidentalmente a essa soja. Em 2002, a empresa Monsanto afirmou que esses fragmentos não estavam ativos. Mas, algum tempo depois, foi descoberto exatamente o contrário;

3. O atual estágio das tecnologias utilizadas na obtenção de transgênicos nada assegura quanto ao controle de todas as suas etapas, sobretudo nos seus efeitos sobre o ecossistema;

4. Há dois anos, uma equipe de médicos italianos descobriu que ratos alimentados com soja transgênica Round up Red apresentaram alterações nas estruturas internas das células do fígado e alterações quantitativas em alguns componentes do pâncreas;

5. Uma avaliação dos primeiros oito anos das culturas transgênicas nos EUA demonstrou um aumento expressivo no consumo de agrotóxicos, devido à combinação da redução do preço dos produtos químicos com o surgimento das superervas daninhas, que exigem mais agrotóxicos.

6. E, por fim, o Senado brasileiro discute o projeto da Lei Nacional de Biossegurança, sob forte pressão no sentido da pronta liberação da produção e cultivo comerciais de transgênicos, sem a avaliação feita pelos órgãos competentes dos Ministérios da Saúde, Meio Ambiente e Agricultura.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Indevidamente, do meu ponto de vista, o PL da Biossegurança, apresentado pelo Governo ao debate no Congresso Nacional, também dispõe sobre a liberação da pesquisa com células de embriões humanos descartadas em clínicas de fertilidade para a obtenção das chamadas células-tronco, que podem ser convertidas em qualquer tipo de tecido humano, técnica tida como possibilidade de cura de doenças genéticas ou degenerativas. Quero deixar claro que, dadas as circunstâncias impostas pela grande indústria de agrotóxicos, sou favorável ao PL da Biossegurança, na versão que veio da Câmara, no que se refere aos transgênicos. Ao mesmo tempo, tendo a concordar com o substitutivo proposto na Comissão de Educação, no que se refere à liberação de experiências com células-tronco. Contudo, insisto que a gravidade dos riscos que a transgenia nos impõe exige reflexão profunda e enorme responsabilidade aos legisladores e às autoridades de governo.

            Por isso, para concluir, eu gostaria de compartilhar com meus nobres companheiros de Parlamento, trecho de um artigo de Eduardo Galeano - o escritor uruguaio, autor de "As Veias Abertas da América Latina". O artigo de Galeano, intitulado "A Era Frankstein", desafia-nos à radical responsabilidade pública e, por isso mesmo, faço questão de trazê-lo como inspiração à reflexão desta Casa e à sociedade brasileira neste momento.

            (...) “O mundo fabricará pessoas geneticamente modificadas, como já fabrica alimentos geneticamente modificados.

(...) Agora, os gigantes da indústria química nos dão de comer. Questão de siglas: depois de produtos como o DDT, que finalmente foram proibidos quando já fazia anos que se sabia que davam mais câncer que felicidade, chegou a vez dos GM, os alimentos geneticamente modificados. Dos Estados Unidos, da Argentina e do Canadá, os GM invadem o mundo inteiro, e somos todos cobaias desses experimentos gastronômicos dos grandes laboratórios.

Na verdade, nem sabemos o que estamos comendo. A não ser por raras exceções, as etiquetas dos alimentos não nos advertem que eles contêm ingredientes que sofreram a manipulação de um ou de vários genes. A empresa Monsanto, a principal abastecedora, não inclui esse dado em suas etiquetas de origem, nem mesmo no caso do leite proveniente de vacas tratadas com hormônios transgênicos de crescimento. Esses hormônios artificiais favorecem o câncer da próstata e dos seios (...) Mas os Estados Unidos autorizaram a venda do leite sem menção nas etiquetas, porque, afinal das contas, os hormônios apressam o crescimento e aumentam o rendimento, e portanto, também aumentam a rentabilidade e o lucro. Primeiro o que vem primeiro, e em primeiro lugar, a saúde da economia. Seja como for, quando a Monsanto é obrigada a confessar o que vende, como no caso dos herbicidas, a coisa não muda muito. Faz alguns anos a empresa precisou pagar uma multa por causa de "setenta e cinco menções inexatas" nos galões do venenoso herbicida Roundup. Foi a preço de ocasião. Três mil dólares por cada mentira.

Alguns países se defendem, ou pelo menos, tentam se defender. Na Europa, a importação de produtos da engenharia genética está proibida em alguns casos, e em outros, está submetida a controle. Desde 1998, por exemplo, a União Européia exige etiquetas claras para a soja geneticamente modificada, mas é muito difícil levar as boas intenções à prática. O rastro se perde em múltiplas combinações: segundo o Greenpeace, a soja GM está presente em 60% de toda a comida processada que é oferecida nos supermercados do mundo.

(...) No mundo inteiro multiplicam-se as vozes de protesto. A atitude européia é resultado da pressão da opinião pública. Quando os granjeiros franceses incendiaram os silos cheios de milho transgênico, por causa do dano notório que trazia ao ecossistema, o agitador camponês José Bové converteu-se num herói nacional, num novo Asterix, que alegou em sua defesa: 'Quando foi que nós, os granjeiros e os consumidores, fomos consultados sobre isso? Nunca'. 
O governo francês, que havia metido Bové na cadeia, desautorizou os cultivos de milho inventado pela biotecnologia. Algum tempo depois, a empresa norte-americana Kraft Foods devolveu milhões de tortilhas de milho, (...) sufocada pelas queixas dos consumidores que tinham sofrido reações alérgicas. Enquanto isso, a secretária de Estado Madeleine Albright dizia e repetia na Europa, conforme obrigação prioritária da diplomacia dos Estados Unidos: 'Não existe nenhuma prova de que os alimentos geneticamente modificados sejam prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente'.

Os europeus têm motivos muito concretos para desconfiar das piruetas tecnocráticas na mesa de jantar. Estão escaldados pela sua recente experiência com as vacas loucas. Enquanto comiam pasto ou alfafa, durante milhares de anos, as vacas haviam se comportado com uma candura exemplar, e haviam aceitado, resignadas, seu destino. Foi assim até que o sistema louco que nos rege decidiu obrigá-las ao canibalismo. As vacas comeram vacas, engordaram mais, ofereceram à humanidade mais carne e mais leite, foram cumprimentadas pelos donos e aplaudidas pelo mercado -- e ficaram loucas de pedra. O assunto deu motivo a muitas piadas, até que começou a morrer gente. Um morto, dez, vinte, cem...

Em 1996, o ministério britânico de Agricultura havia informado à população que a ração de sangue, sebo e gelatina de origem animal era um alimento seguro para o gado e inofensivo para a saúde humana.”

            Era o que eu tinha a dizer. Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/08/2004 - Página 27941