Discurso durante a 125ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Contestação ao pronunciamento do Senador Ney Suassuna com relação às escolas de formação do MST.

Autor
Heloísa Helena (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/AL)
Nome completo: Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
REFORMA AGRARIA.:
  • Contestação ao pronunciamento do Senador Ney Suassuna com relação às escolas de formação do MST.
Aparteantes
Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 09/09/2004 - Página 29123
Assunto
Outros > REFORMA AGRARIA.
Indexação
  • DEFESA, ESTABELECIMENTO DE ENSINO, SEM-TERRA, ENTIDADE, MOVIMENTO TRABALHISTA, LUTA, REFORMA AGRARIA, CUMPRIMENTO, PRINCIPIO CONSTITUCIONAL, DEPOIMENTO, AUSENCIA, INCITAMENTO, VIOLENCIA, CONTESTAÇÃO, DISCURSO, NEY SUASSUNA, SENADOR.
  • CRITICA, REFORMA AGRARIA, AUSENCIA, ASSISTENCIA, AGRICULTOR, ANALISE, PERDA, TERRAS, PEQUENO PRODUTOR RURAL, FALTA, POLITICA AGRICOLA.
  • JUSTIFICAÇÃO, VIOLENCIA, OCUPAÇÃO, TERRAS, LOBBY, AGILIZAÇÃO, REFORMA AGRARIA, DENUNCIA, INJUSTIÇA, SOCIEDADE, CAPITALISMO.

A SRª HELOÍSA HELENA (PSOL - AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, eu iria falar sobre outra coisa, iria falar mais uma vez sobre a farsa da transposição do rio São Francisco e sobre a farsa da privatização enrustida das parcerias público-privadas, mas o Senador Ney Suassuna forçou-me a tratar de outro assunto. Digo isso ressalvando que S. Exª disse o que disse usando de um direito que lhe assiste. A propósito: quero dizer que sou uma democrata de carteirinha e festejar que ele, como eu, vivamos em um lugar onde podemos dizer o que queremos. Aliás, ninguém defende a liberdade como eu: se já a defendia antes, imaginem agora que fui expulsa do PT - dediquei os melhores anos da minha vida à construção desse partido e dele fui expulsa simplesmente porque queria continuar defendendo a minha visão de mundo e as concepções ideológicas e programáticas que acumulei na militância do que era o PT.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, vi-me forçada a comentar o pronunciamento de S. Exª - que, volto a repetir, tem todo o direito de fazê-lo - em relação às escolas de formação do MST.

Conheço várias escolas de formação dos movimentos sociais, não apenas do MST, mas da Igreja Católica - que é a Comissão Pastoral da Terra, que, da mesma forma que o MST, ocupa terra -, do MPL, do MLST, do MT, enfim, de quase quatorze movimentos que lutam pela reforma agrária no País, ocupando terras. E o fazem por algo muito básico.

Sabemos, o Senador Ney Suassuna e eu, independentemente das convicções ideológicas e da visão de mundo que tenhamos, que a reforma agrária é uma obrigação do Estado brasileiro, foi uma conquista da sociedade e foi uma resolução colocada na Constituição não por um ou outro esquerdista, não por um ou outro socialista, mas pelos constituintes. Assim, reforma agrária é constitucional e deve ser cumprida. Infelizmente, a reforma agrária acabou não sendo feita no Governo passado nem neste Governo.

Quando digo reforma agrária, não digo distribuição de terra. Distribuindo-se um pedaço de terra sem dar assistência técnica, infra-estrutura e subsídio agrícola, está-se fazendo com que essas pessoas ou a entreguem para o político ou o latifundiário da região ou saiam de lá porque não têm sequer a quem esmolar.

Da mesma forma, sabe S. Exª que sempre os defendi, nesta Casa, muitas vezes inclusive. Aliás, no cínico memorial das contradições que levou à minha expulsão do PT, um dos itens era o debate da medida provisória em relação ao pequeno e médio produtor rural por quem sempre lutei aqui. O Brasil não faz política agrícola para quem não tem terra - para o sem-terra - nem para quem tem terra. Atualmente é maior o número de famílias de pequenos e médios produtores rurais que perdem terra do que o número de famílias assentadas.

O Estado brasileiro é fraco, insensível e covarde e não faz reforma agrária como manda a Constituição. O limite do direito à propriedade é o interesse público, porque não plantar nada é o mesmo que plantar cocaína, papoula, maconha ou qualquer outro produto. Se não se planta, deve-se fazer reforma agrária. Capoeira e terra para especular os cristãos não defendem, nem os que são pelo Estado de direito.

O que vem acontecendo no Brasil? Em função de sua elite política e econômica inconseqüente e insensível, o Estado não cumpria a lei e não fazia reforma agrária. O que aconteceu no mapa de reforma agrária? Só havia reforma agrária onde havia violência no campo ou ocupação de terra. Se o Estado fosse conseqüente, para plantar e para colher, ou seja, para utilizar todas as terras agricultáveis no Brasil, seria preciso nascer sem-terra. Não é à toa que apenas 14% das áreas agricultáveis do Brasil efetivamente produzem e, portanto, dinamizam a economia local, geram emprego e renda. No Brasil, para haver a reforma agrária era preciso haver ocupação; era preciso haver violência no campo para haver reforma agrária.

Não farei o balanço das vítimas da dor e do sofrimento e dos mortos, porque, para mim, é condenável que uma criança seja assassinada ou brutalmente espancada, seja ela de qualquer classe social. E, na balança dos mortos, o número de sem-terra, de pobres, excluídos e oprimidos é infinitamente maior do que o do outro lado da história.

O problema do Brasil é este: foi preciso haver violência no campo e ocupação de terras para que começasse a haver reforma agrária. Há uma frase histórica de João Pedro Stédile - às vezes até discutíamos, porque ele defendia ardorosamente a própria política de reforma agrária do Governo, que, para mim, é de uma inconseqüência gigantesca, pois não há política agrícola no Brasil - que considero extremamente importante: “Se querem acabar com o MST, façam a reforma agrária”. E reforma agrária, volto a repetir, não é distribuição somente de terra, mas também de renda, poder, infra-estrutura, subsídio agrícola e assistência técnica. Caso contrário, as pessoas não ficam lá sem ter a quem esmolar.

E entro no tema que V. Exª, com todo o direito, enfocou. V. Exª está reproduzindo algo que foi veiculado nos meios de comunicação, como já fiz várias vezes aqui em relação a notícias...

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - Permite-me V. Exª um aparte?

A SRª HELOÍSA HELENA (PSOL - AL) - Pois não, Senador Ney Suassuna.

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - Concordo, não com essa veemência, com quase 90% do que V. Exª diz: tem que haver reforma agrária. Ao passarmos pelos Estados, é vergonhoso vermos a quantidade de terras improdutivas. Essas terras tinham que ser distribuídas. O que eu disse, no entanto, é que nas escolas não deve ser ensinado às crianças um tema de ódio. E, se o dinheiro é do Ministério da Educação, é mais uma razão para o Ministério intervir, procurar fazer a educação - essas crianças têm que ser educadas, pois só a educação liberta - e evitar que haja o sectarismo violento. Veja que não estou dando como verdadeira ainda a informação, mas quero que ela seja apurada para vermos se é verdadeira. Se for verdadeira, que se coíba. É preciso que haja a educação regular que todos têm o direito de ter. O que não queria e não quero é a disseminação do ódio, porque isso não leva a nada. Vemos no Oriente Médio o que está acontecendo: um lado colocando na cabeça das crianças uma ideologia, outro lado mostrando-lhes outra ideologia, e, no final, não se chega a uma solução. Quanto à reforma agrária, tenha em mim um parceiro. Essa reforma já deveria ter ocorrido. É uma vergonha que há tantos anos estejamos tentando fazê-la e não tenhamos conseguido. Não se faz porque não se quer. Tinha que ter sido feita há muito tempo.

A SRª HELOÍSA HELENA (PSOL - AL) - Acato o aparte de V. Exª, Senador Ney Suassuna. Veja só uma coisa: também aprendi muito com meu processo de expulsão do PT, já que muitas vezes a paixão nos cega a ponto de não conseguirmos desvendar os mistérios sujos da alma humana. De repente, personalidades do Partido por quem eu tinha muito respeito e consideração - não digo que os endeusava, porque só adoramos a um mesmo - transformaram-se em qualquer um, iguais à fria e cínica elite paulista e à podre e truculenta oligarquia nordestina. Fizeram coisas inimagináveis que nunca pensei que podiam fazer.

Assim, não tenho elementos para contestar os casos que foram analisados na revista, mas me sinto na obrigação - porque conheço - de apresentar um outro lado também.

Conheço muitas dessas escolas de formação e, inclusive, fui parte de muitas delas. Nunca vi esse incitamento ao ódio. Muito pelo contrário, o sentido de patriotismo, o sentido de pátria como o Brasil e da pátria América Latina, da irmandade entre os povos, dos sentimentos mais belos de solidariedade humana, de fraternidade, sempre foi isso que vi e que me foi ensinado. A sociedade que cultiva o ódio é essa sociedade capitalista. É essa sociedade que corrompe o sentido humano das pessoas, que destrói as pessoas, que violenta e faz as pessoas violentas. É essa sociedade que coloca uma criança de oito anos de idade para ser olheiro da estrutura podre do narcotráfico e a ela paga com um sanduíche de mortadela ou com crack. É essa sociedade que empurra meninas de oito, nove, dez anos para vender o corpo por um prato de comida, que empurra a juventude para o narcotráfico como último refúgio. É essa sociedade podre capitalista que joga 60% do orçamento público para encher a pança dos banqueiros internacionais e esvaziar o prato, o emprego, a infância, a juventude e a dignidade de mães e pais de família! Essa é a sociedade que cultiva o ódio, essa é a sociedade que desumaniza, essa é a sociedade que corrói o caráter. É esse tipo de sociedade capitalista que hierarquiza, de forma perversa, ricos e pobres, brancos e negros, heterossexuais e homossexuais, homens e mulheres. É essa sociedade que temos que condenar e não outras alternativas que estão sendo realizadas.

Então deixo aqui, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o meu testemunho em relação a muitas escolas de formação, que são dadas pela Igreja Católica, na Comissão Pastoral da Terra, pelo MST, pelo MLST, pelos nossos queridos companheiros do MTL, do MT e de vários outros movimentos que lutam pela reforma agrária, porque o Estado brasileiro é irresponsável, covarde, incapaz de enfrentar o latifúndio.

É por isso que todas as vezes que falo da reforma agrária lembro-me de uma frase belíssima de D. Pedro Casaldáliga, que dizia, num dos mais belos poemas de sua autoria: “Malditas sejam todas as cercas! Malditas todas as propriedades privadas, que nos primem de viver e amar”*.

Deixo, então, registrado o meu testemunho sobre as escolas de formação que conheço. E não tenho dúvida de que a sociedade que expande e cultiva o ódio é essa sociedade capitalista, que hierarquiza, que exclui e que oprime uma grande maioria da população, para beneficiar uma minoria que muitas vezes nem produz, nem sabe o que o é o sangue, o suor, as lágrimas e o trabalho de produzir e apenas usufrui dessa produção.

Sei o que é uma ocupação de terra. Sr. Presidente, Senador Eduardo Siqueira Campos, não é uma coisa simples. Nas fotografias e na televisão, até parece que é uma grande festa, uma grande farra. Não é nada disso. A ocupação de terra é uma coisa dolorosa, trabalhosa, sofrida, de risco. Estou falando de ocupação de terra improdutiva, nas quais o Estado brasileiro devia fazer a reforma agrária, mas, como não tem coragem de enfrentar o latifúndio, não faz.

Já participei de ocupações de terra e sei o que é sair correndo no meio do canavial, da mata, da caatinga, fugindo de tiros de espingarda 12 mm. À noite, o frio é tão grande que parece que vai destruir os nossos ossos e, durante o dia, é um sol tão grande que ninguém consegue ficar nem embaixo da barraca nem fora. São crianças, mulheres, homens desesperados que lá estão buscando um pedacinho de terra para evitar que suas crianças fiquem na marginalidade.

Erros existem em todos os lugares, e é por isso o Estado brasileiro precisa cumprir a sua obrigação constitucional e fazer a reforma agrária.

Assim, sinto-me na obrigação de, mais uma vez, demonstrar a minha solidariedade a tantas ações extremamente importantes que, em vez de cultivarem o ódio, de reproduzi-lo, de corromperem o caráter, a dignidade, a humanidade das pessoas como faz essa sociedade em que vivemos, pelo contrário, estabelece, através do amor, da solidariedade, do exemplo de coragem e de liberdade, a partilha e a conquista de novos e melhores dias para o nosso querido Brasil.

Era o que tinha a dizer, Sr. Presidente. Depois, voltarei a falar do meu querido rio São Francisco e da farsa da PPP, a privatização enrustida do PT.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/09/2004 - Página 29123