Discurso durante a 144ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre a divulgação de fotos pela imprensa sobre o caso do jornalista Vladmir Herzog. Posicionamento contrário à unificação de programas assistenciais, como o Vale-Gás e o Bolsa alimentação, e educacionais, como o Bolsa-Escola, em um único programa governamental, o Bolsa-Família.

Autor
Cristovam Buarque (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
FORÇAS ARMADAS. POLITICA SOCIAL. EDUCAÇÃO.:
  • Considerações sobre a divulgação de fotos pela imprensa sobre o caso do jornalista Vladmir Herzog. Posicionamento contrário à unificação de programas assistenciais, como o Vale-Gás e o Bolsa alimentação, e educacionais, como o Bolsa-Escola, em um único programa governamental, o Bolsa-Família.
Aparteantes
Edison Lobão, Eduardo Suplicy, Romeu Tuma.
Publicação
Publicação no DSF de 21/10/2004 - Página 32460
Assunto
Outros > FORÇAS ARMADAS. POLITICA SOCIAL. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • ELOGIO, ATUAÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DA DEFESA, COMANDANTE, EXERCITO, CORREÇÃO, NOTA OFICIAL, COMENTARIO, ARTIGO DE IMPRENSA, JORNAL, CORREIO BRAZILIENSE, DISTRITO FEDERAL (DF), DIVULGAÇÃO, FOTOGRAFIA, VIOLENCIA, TORTURA, DITADURA, REGIME MILITAR.
  • DEFESA, NECESSIDADE, REFORÇO, COMPROMISSO, FORÇAS ARMADAS, DEMOCRACIA, AMPLIAÇÃO, DIVULGAÇÃO, ARQUIVO, DITADURA, ESCLARECIMENTOS, OPINIÃO PUBLICA.
  • COMENTARIO, RESPOSTA, GOVERNO, DENUNCIA, TELEJORNAL, EMISSORA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), IRREGULARIDADE, PROGRAMA, COMBATE, FOME, PROVIDENCIA, PATRUS ANANIAS, MINISTRO DE ESTADO, MINISTERIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E COMBATE A FOME.
  • ANALISE, PROBLEMA, BOLSA FAMILIA, AMEAÇA, POLITICA SOCIAL, CRITICA, TENTATIVA, UNIFICAÇÃO, PROGRAMA, VINCULAÇÃO, EDUCAÇÃO, PROJETO, ASSISTENCIA SOCIAL.
  • DEFESA, PROGRAMA, RENDA MINIMA, SEPARAÇÃO, TRANSFERENCIA, RENDA, INCENTIVO, EDUCAÇÃO.
  • NECESSIDADE, PRIORIDADE, MELHORIA, ENSINO, PRECARIEDADE, SITUAÇÃO, ESCOLA PUBLICA, REFORMULAÇÃO, POLITICA SALARIAL, VALORIZAÇÃO, PROFESSOR.
  • DEFESA, FEDERALIZAÇÃO, EDUCAÇÃO, ESCOLA PUBLICA, UNIFICAÇÃO, PISO SALARIAL, PROFESSOR, DEFINIÇÃO, CURRICULO, PADRÃO, SEDE, EQUIPAMENTOS.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, venho aqui hoje com duas preocupações: lembrar que há gestos que ajudam o político a ficar no poder, outros que o ajudam a ficar na história. Esta semana, dois fatos ajudarão o Presidente Lula na sua permanência no poder e na sua marca na história, dependendo de como forem enfrentados.

O primeiro, creio, já foi enfrentado corretamente: a notícia sobre os últimos dias de Wladimir Herzog na prisão e a nota do Comando do Exército foram enfrentados de maneira firme e correta. O Governo do Presidente Lula nada tem a ver com o passado, com os fatos ocorridos durante a ditadura militar. O próprio Exército, como instituição fundamental da nacionalidade, tampouco pode ser responsabilizado hoje pelo que ocorreu no passado. A instituição está acima dos erros dos seus dirigentes. Não se pode culpar o Exército alemão de hoje pelos crimes cometidos nos tempos da ditadura nazista. Mas para isso é preciso exigir dos atuais dirigentes de qualquer instituição transparência e crítica com relação aos seus antecessores.

A primeira nota do Comando do Exército sobre o caso Herzog comprometeu a instituição, que nada tem a ver com o que aconteceu em outros tempos, com o que foi feito por outras pessoas. A Nação brasileira esperou por isso ansiosa para que fosse esclarecido se houve erro de linguagem, cometido por algum profissional descuidado, ou se teria havido erro de concepção por parte de algum sobrevivente do tempo da ditadura. Felizmente, o erro foi de linguagem e uma nova nota foi elaborada em sintonia com os tempos democráticos de hoje, deixando claro o que todos sabemos: o Exército brasileiro atual nada tem a ver com o passado autoritário.

O Presidente Lula, o Ministro Viegas e os comandos militares agiram corretamente ao fazerem uma segunda nota esclarecendo a posição correta do Exército. O Presidente Lula tomou a medida certa, como político preocupado com o poder, ao fazer exercer a sua autoridade civil sobre as Forças Armadas, e agiu corretamente diante da História, ao não tolerar posições do passado, desrespeitosas para com um morto sob tortura e para com a democracia.

Mas ainda há muito a fazer. O assunto não está esclarecido na sua totalidade. É preciso que a instituição das Forças Armadas demonstre sua radical diferença em relação ao passado, dissociando-se dos erros do passado, abrindo todas as informações disponíveis, tratando com respeito os mortos e suas famílias.

Não é tempo de perseguir com o esquecimento aqueles que morreram nem tampouco de perseguir os que reprimiram antes.

A anistia vale para a política, não para a história. Houve uma anistia que tocou a todos, mas não houve uma amnésia. A Lei da Anistia não pode ser confundida com uma lei de amnésia.

É preciso explicar também o que se passou depois da ditadura. O passado causa indignação, mas não assusta. Assusta, sim, o medo de que resquícios daquele tempo continuem, mesmo que sem ditadura, sem tortura e sem prisões.

O Presidente, seu Ministro e o Comandante deram provas de entendimento do risco ao poder e à história, mas não devem dar o assunto totalmente por encerrado. É preciso tomá-lo como alerta, para esclarecer e tranqüilizar a opinião pública de que tudo não passou de um mal-entendido da imprensa e de um assessor de imprensa descuidado e para apurar se há algo mais camuflado nas masmorras que não foram totalmente demolidas.

O outro fato desta semana, Sr. Presidente, ainda não pode ser considerado bem administrado nem do ponto de vista político nem diante da história. Trata-se de matérias divulgadas pela imprensa sobre o programa Bolsa Família.

O Sr. Edison Lobão (PFL - MA) - Senador Cristovam Buarque, permite-me V. Exª um aparte, antes de entrar no segundo ponto do seu discurso?

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Com todo prazer, concedo-lhe o aparte.

O Sr. Edison Lobão (PFL - MA) - V. Exª não havia ainda chegado ao plenário...

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Mas ouvi o seu discurso.

O Sr. Edison Lobão (PFL - MA) - Tratei, na verdade, do mesmo assunto.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Eu sei.

O Sr. Edison Lobão (PFL - MA) - E o fiz, coincidentemente, na mesma linha. Li, inclusive, por inteiro a nota do Ministro do Exército e peço permissão a V. Exª para reler apenas um pequeno trecho. Diz o Comandante do Exército: “O Exército lamenta a morte do jornalista Wladimir Herzog”. Ou seja, lamenta hoje e lamentou sempre. Cumpre relembrar que, à época, esse fato foi um dos motivadores do afastamento do comandante militar da área, por determinação do Presidente Geisel. O Exército nunca aceitou o episódio, e o Presidente da República da época, o General Geisel, que era um democrata, puniu severamente o comandante, destituindo-o - e, em seguida, o próprio Ministro do Exército -, por conta, de algum modo, desse episódio. O que quero dizer que é as nossas Forças Armadas - Exército, Marinha e Aeronáutica - sempre foram defensoras da democracia. A democracia tem sido um balizador do comportamento das nossas Forças Armadas. O Exército, sempre que interferiu, procurou, às vezes com equívoco, preservar os pressupostos democráticos e de liberdade. Portanto, só posso ter palavras de reconhecimento ao General Albuquerque, Comandante do Exército, que não se encontrava no Brasil na época em que a primeira nota foi editada, foi emitida. O Comandante não estava no Brasil, mas corrigiu em tempo aquela posição anterior e reiterou a posição de defesa intransigente da democracia e das liberdades. Obrigado.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Senador Edison Lobão, agradeço a V. Exª o aparte. Ouvi o seu discurso e também não tive dúvidas de que isso seria esclarecido como um problema de linguagem, porque as Forças Armadas hoje estão absolutamente sintonizadas com a democracia. Também entendo que devemos separar a instituição das pessoas que a dirigem de tempos em tempos. O caso Herzog não foi o único durante os 21 anos do regime militar. Não foi a instituição que cometeu esses atos, mas muitas pessoas das instituições daqueles tempos fizeram algumas composições de comando. O que temos a dizer é que isso foi o passado e que hoje há uma situação diferente em todos os quadros das nossas Forças Armadas.

Retomo o segundo caso ocorrido na semana, que considero ainda não esteja bem administrado, como esse do noticiário do Correio Braziliense. Do ponto de vista da política, mais uma vez o Governo está tentando acertar, mas creio que o Presidente não está sendo alertado por seus assessores de que há um risco maior do ponto de vista histórico.

Na política, o Ministro Patrus Ananias está correto ao afirmar que as denúncias se referem a casos isolados, a algumas famílias, entre as quase cinco milhões que já recebem o benefício. O Governo também acertou ao tomar medidas para corrigir essas falhas e para apurar se há outras. O Ministro chegou ao ponto de demonstrar o seu cuidado ao agradecer - coisa rara em um dirigente público - à Rede Globo por ter divulgado o assunto, alertando o Governo para os erros com os quais S. Exª e o Governo não compactuam.

Mas, do ponto de vista da marca do Presidente Lula na história do Brasil, o assunto não parece estar sendo bem cuidado.

Apesar da gravidade do erro administrativo de escolher famílias que não merecem o benefício e deixar de lado algumas que o merecem, o problema do Bolsa Família não está somente em casos isolados. Há um problema muito mais forte do ponto de vista da atual concepção do programa Bolsa Família, que está destruindo um projeto que, além de apontar para a solução do problema social brasileiro, orgulha o Brasil no cenário internacional. Há duas preocupações presentes no discurso do Presidente Lula: o respeito internacional e a solução dos problemas sociais.

O programa Bolsa Família foi uma tentativa de unir diversos programas sociais brasileiros em um só. Com isso, nós - faço parte do Governo - cometemos um equívoco conceitual que pode deixar sobre os ombros do Presidente Lula a triste marca de destruir um bom projeto iniciado nacionalmente pelo governo anterior, do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

Ao unificar Bolsa-Escola, Bolsa-Alimentação, Vale-Gás e outros projetos, o nosso Governo cometeu o erro de misturar coisas que são absolutamente diferentes. O Bolsa-Escola é um programa educacional; o Bolsa-Alimentação e o Vale-Gás são projetos assistenciais dos quais o Brasil também precisa, mas eles não são uma coisa só. O Bolsa-Escola permite o ingresso da criança na escola e concede à família uma renda que, ao mesmo tempo, permite que a sua família viva, coma e se vista. Mas o objetivo do programa não é essa renda, mas a educação. É por isso que se chama Bolsa e é por isso que se chama Escola. É um programa libertador, que elimina a pobreza e mantém a pessoa pobre viva, como é necessário também.

Os demais programas, Bolsa-Alimentação e Vale-Gás, são da máxima importância, do ponto de vista assistencial, para evitar que os nossos pobres passem necessidade. Eles mantêm as famílias vivas - nobre gesto de qualquer governo -, mas não eliminam a pobreza, nem libertam o povo.

Todos esses programas são necessários, mas, ao misturá-los, matamos a diferença e os propósitos radicalmente diferentes que eles têm. O Presidente Lula tinha consciência disso e, por essa razão, tomou o cuidado de exigir que o Bolsa Família mantivesse o mesmo critério de exigência da freqüência às aulas por parte das crianças das famílias beneficiadas. Passou a exigir, inclusive, a alfabetização dos adultos. Tudo corretamente, tudo com a melhor das intenções, mas - não o percebíamos então - sem condições de funcionar bem.

Os programas têm finalidades diferentes. Por mais que tenha sido criticado, o Ministro Patrus Ananias tinha razão, como Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, quando disse que não deixaria uma família passando fome porque os filhos faltavam às aulas. Na ótica da assistência, ele está correto. Correta também está aquela professora, que, no programa Fantástico, disse que não daria falta ao aluno, com medo de que ele ficasse sem comida ao perder a Bolsa-Escola. Uma bondade natural, mas, devo dizer, perversa do ponto de vista do longo prazo, porque aos nossos filhos não perdoamos se estiverem fora da escola.

Mas eles têm razão no sentido de que, ao misturarmos o Bolsa-Escola com os demais programas, misturamos a assistência com a educação. Por isso, eu sempre disse que precisamos de um programa Bolsa-Escola e de um programa Renda Mínima. A renda mínima é uma necessidade de cada família para a sua sobrevivência. O Bolsa-Escola é uma necessidade para se levar as crianças para a escola.

Não podemos condenar uma família a ficar sem gás se os filhos faltam às aulas, mas não podemos pagar uma bolsa para estudar se as crianças não estudam. De dois programas necessitamos: o de transferência de renda e o de incentivo à educação.

Por isso, se o Governo e o Presidente Lula quiserem ficar bem na história, como sabemos que o Presidente quer, se quiserem ficar na história como o Governo que levou adiante um grande programa de transformação do Brasil, além de responder à indignação momentânea da opinião pública com equívocos gerenciais - que nada prova que tenham sido espalhados, que tudo indica que tenham sido casos isolados -, o Presidente Lula precisa ir além da apuração dos fatos, além da suspensão das bolsas de alguns que não a merecem e da incorporação ao programa de famílias que o merecem; o Presidente precisa mudar a concepção do programa Bolsa Família.

Em primeiro lugar, precisa reconhecer que misturamos programas diferentes, com finalidades diferentes, com públicos diferentes, com órgãos gerenciais que devem ser diferentes; e separar o Bolsa-Escola, um programa educacional, do Programa Renda Mínima e dos programas diretamente assistenciais.

Segundo, passar de volta a administração do Programa Bolsa-Escola, com o nome que for, para o Ministério da Educação. Jamais um Ministro da Educação diria que a freqüência às aulas é um fato sem importância, como disse, semanas atrás - corretamente, na sua ótica -, o Ministro Patrus Ananias, dentro da visão igualmente importante de cuidar dos pobres do ponto de vista da assistência. S. Exª estava certo, mas um Ministro da Educação não o diria daquele jeito. Por isso, os programas têm de estar separados.

Terceiro, o Presidente Lula precisa entender que nenhuma dessas bolsas mudará o Brasil se não melhorarmos a qualidade da escola pública brasileira. Claro que é melhor ter uma criança na escola, qualquer que seja ela, do que em escola nenhuma. Por isso, o Bolsa-Escola, em si, é positivo, mas o Brasil não mudará se a escola que a criança freqüenta for de má qualidade. O Bolsa-Escola é o primeiro passo, um passo fundamental, mas ele não basta sem mudança na política salarial, de formação e de exigência dos professores. Não basta a bolsa para a família se o bolso do professor continuar vazio, se sua cabeça não for bem formada e o seu coração não for bem dedicado à atividade do magistério.

O que mais choca na reação das pessoas diante das denúncias da Rede Globo é que a indignação se concentrou no fato de que poucos milhares de reais foram para bolsos errados, sem percebermos grandes indignações a respeito das instalações das escolas que foram mostradas. Choca-nos a corrupção no comportamento das pessoas, mas não nos chocou a corrupção nas prioridades dos governos anteriores ao do Presidente Lula, que deixaram que as nossas crianças tivessem escolas daquele jeito.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Se V. Exª quiser complementar o seu pronunciamento, pode fazê-lo, mas eu já gostaria de reservar um momento para dialogar com V. Exª após o término do seu pronunciamento, tal a riqueza do tema.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Falta muito pouco para eu concluir.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Sendo assim, contando com a compreensão do Presidente da sessão, solicito que conceda ao Senador Romeu Tuma e a mim a oportunidade de dialogar com V. Exª.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Com muito prazer, porque este é um debate que deveríamos manter nesta Casa por algum tempo, repetidas vezes. O mesmo digo ao Senador Tuma.

Mais grave do que alguns ricos corruptos receberem o Bolsa Família é o fato de que as escolas não recebem dinheiro e os professores não recebem salários. E isso não será resolvido apenas com o cuidado maior na fiscalização da bolsa, mas, sim, com a revolução na postura dos nossos Governos, o atual e os futuros, em relação à educação pública.

Senadores Eduardo Suplicy e Romeu Tuma, o Brasil precisa federalizar sua educação pública, fazer com que o Bolsa-Escola se junte à qualidade da educação. A federalização da educação não consiste em assumir as 180.000 escolas, nem os 2,5 milhões de professores, nem tentar gerenciar, em Brasília, todo o sistema educacional e municipal da educação brasileira. Federalização significa que a União e o Governo Federal tomarão as crianças brasileiras como uma preocupação nacional, suas escolas como uma preocupação de todo o Brasil, e não de cada cidade. A criança é, antes de tudo, brasileira; depois, é recifense ou carioca. Primeiro, ela é brasileira. Mas, no Brasil de hoje, lamentavelmente, uma criança pertence, primeiro, à sua cidade; ela é preocupação do seu prefeito. Ela é tratada conforme a sua cidade, por seu prefeito, sem envolvimento nacional. Isso está dividindo o Brasil .

A educação, que deveria ser um instrumento de identidade nacional, está sendo um vetor de “desidentidade”, por causa da brutal diferença entre as escolas de uma cidade e de outra.

O Brasil já federalizou a sua universidade, que serve à elite rica; federalizou as escolas técnicas, que servem ao sistema econômico; federalizou a própria educação básica daqui, do meu Distrito Federal, onde o Governo Federal tem pago os salários dos professores para os filhos dos que moram na Capital; federalizou, Senador Suplicy e Senador Tuma, até mesmo a educação privada, que é paga, em parte, com o dinheiro com que deixamos de pagar o Imposto de Renda. É com o desconto do Imposto de Renda, dinheiro federal, que pagamos a escola privada, mas ainda não federalizamos a educação pública.

O SR. PRESIDENTE (Eduardo Siqueira Campos. PSDB - TO) - Senador Cristovam Buarque, dois Senadores demonstraram querer aparteá-lo. Devo comunicar que o tempo de V. Exª acaba de se esgotar. Por isso, peço-lhe que conclua.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Sr. Presidente, estou concluindo.

Para isso, bastaria que o Governo Federal definisse e assumisse três responsabilidades, que hoje estão entregues aos Estados e Municípios:

- definir um piso mínimo salarial para o professor brasileiro, não importa a cidade onde ele viva, mas, ao lado do piso salarial, um piso de qualificação. Não importa a cidade ou o Estado onde trabalhe, o professor terá um piso salarial pago pela União, desde que tenha sido aprovado em um concurso aplicado também pela União - essa idéia foi iniciada no ano passado, já no Governo do Presidente Lula, pelo MEC;

- definir um mínimo para o conteúdo do currículo de cada série, que seja ensinado em cada escola brasileira, não importa em que cidade - por que permitimos que uma escola tenha um conteúdo diferente de outra escola, se a criança nasceu em uma cidade ou em outra, condenando a que, em breve, se não for a rádio ou a televisão, falemos Português diferente, porque não é mais o mesmo Português que se aprende nas escolas?

- definir um mínimo para as edificações e os equipamentos de cada uma das 180 mil escolas.

Não é possível que vejamos escolas como aquelas mostradas pelo Fantástico e não há outro jeito, senão federalizando-as, para que as escolas sejam iguais.

Isso não é possível de um dia para o outro, de um ano para o outro, nem mesmo para um só Governo, mas algum precisa começar. O Governo Lula tem credibilidade, tem os compromissos assumidos na campanha e acontece no momento em que o Brasil e sua população estão conscientes da necessidade de mudar e de que a Educação é o caminho.

Sr. Presidente, o Ministro Patrus acertou ao agradecer à Rede Globo por ter alertado sobre os erros no gerenciamento do Programa Bolsa Família, mas o Brasil poderá vir a agradecer muito mais à Rede Globo por ter mostrado que o Brasil não pode continuar tratando suas crianças pobres da forma como vem fazendo, com uma escola entregue às poucas condições financeiras de cada Prefeitura e à boa vontade de cada Prefeito ou Governador.

Criança é uma questão nacional, porque é nacional a questão do futuro do Brasil.

Concedo um aparte ao Senador Eduardo Suplicy.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Senador Cristovam Buarque, quero cumprimentá-lo por essa contribuição. V. Exª faz uma retrospectiva dos Projetos Bolsa-Escola e Bolsa Família, relaciona-os ao conceito da renda mínima, e também avalia como positiva a reportagem da Rede Globo, mostrada no Fantástico e nos seus diversos jornais, a respeito de eventuais desvios no Programa Bolsa Família, enfatizando a importância de se melhorarem as condições educacionais na rede pública, em todo o Brasil. Quero dar o meu testemunho de uma trajetória que, em grande parte, temos em comum. Quando V. Exª, na Universidade de Brasília, nos anos 80, colocava idéias que, depois, vieram a se consubstanciar na prática, eu, no âmbito do PT, defendia que deveríamos incluir em nosso programa uma renda mínima por meio de um Imposto de Renda negativo, algo que foi evoluindo. Recordo que quando V. Exª, no segundo semestre de 1994, disse-me: “Senador Suplicy, esteja em meus comícios, ainda mais porque vou instituir um programa de renda mínima associado às oportunidades de Educação”, com entusiasmo engajei-me em seus comícios. Também fui testemunha de que, na primeira semana de 1995, no Paranoá, V. Exª iniciou o Programa Bolsa-Escola. No final de 1994, o Prefeito José Roberto Magalhães Teixeira convidou-me para um diálogo em Campinas, juntamente com o nosso Vereador do PT que, no primeiro turno, havia votado contra a matéria, mas que, depois do esclarecimento, votou a favor. Ambos aqui estiveram, dialogando na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados sobre essas experiências. É importante, Sr. Presidente, que possamos, neste momento, recordar alguns episódios para este debate. Também acompanhei o professor Philippe Van Parijs, fundador da rede européia da renda básica e grande especialista no assunto, em audiência, em 1996, com o Presidente Fernando Henrique. O professor disse-lhe que para se chegar, um dia, à renda básica, é muito positivo iniciar-se relacionando-a às oportunidades de Educação, e deu força àquela idéia. Sou o quarto orador de hoje, Senador Cristovam Buarque. Quero convidá-lo para continuarmos este diálogo, para darmos oportunidade aos demais e não infringirmos o Regimento. Cumprimento-o dizendo que tenho mais coisas a falar, mas vou respeitar o apelo do Presidente, convidando-o para continuarmos esse nosso debate tão importante na tarde de hoje. Meus cumprimentos.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Agradeço, Senador, e vou estar presente.

Na abertura do meu discurso, falei que há coisas que o Governo faz para ficar no poder e outras, para ficar na História. De acordo com o comportamento do Governo nas próximas semanas e meses, em relação ao Programa Bolsa Família, saberemos se ficará mal ou bem na História.

Quero lembrar, apenas, que no livro onde nasce a idéia da Bolsa-Escola há uma referência específica ao seu trabalho como promotor da renda mínima. Ainda que sejam diferentes, não há dúvida que há uma correlação total. Nós, defensores da Bolsa-Escola, temos uma dívida com a sua luta pela renda mínima.

Concedo o aparte, Sr. Presidente, se V. Exª o permitir, ao Senador Romeu Tuma.

O SR. PRESIDENTE (Eduardo Siqueira Campos. PSDB - TO) - Esta Presidência não deixaria de ouvir as palavras do 1º Secretário da Casa, Senador Romeu Tuma.

Apenas para esclarecimento, Senador Eduardo Suplicy, o tempo do aparte é de dois minutos. Para a Casa, é sempre importante ouvir V. Exª, sabendo que, em dois minutos, nunca consegue fazer um aparte porque tem sempre muito a dizer.

De qualquer forma, Senador Romeu Tuma, a Mesa pede a colaboração de V. Exª, pois o tempo já está esgotado em sete minutos.

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) - Vou ser rápido. Realmente, o Fantástico não permitiu que eu continuasse a ter uma noite tranqüila. Foram muito chocantes as imagens apresentadas a respeito do desvio de dinheiro de pessoas carentes para pessoas abastadas. Eu, talvez, tenha visto isso com olhos de policial: “Já tinha que meter todo mundo em cana” - desculpe-me Senador. Estou aqui para cumprimentá-lo pela admiração que, há muitos anos, tenho pelo seu trabalho e sua sincera vocação para aquilo que é a razão da sua vida: o ensino.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Obrigado.

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) - Quando V. Exª saiu do Ministério e começaram a alterar todos os seus projetos - perdoem-me o novo Ministro e o Presidente Lula -, eu, no meu íntimo, revoltei-me. Eu não podia criticar abertamente porque colocaria V. Exª, talvez, em dificuldade para receber uma mensagem desse tipo. Hoje, corri para cá, ao ouvir V. Exª pelo rádio do carro, pois queria chegar a tempo de cumprimentá-lo pela beleza de sua exposição e pela orientação que dá àqueles que administram o País atualmente. V. Exª foi meu chefe por um período da minha vida, no Ministério da Justiça.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Quase.

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) - Foi e me ajudou muito quando assumi a chefia da Polícia Federal. V. Exª me deu mão forte, consegui passar os primeiros dias e, depois, firmei-me, sempre com a simpatia de V. Exª. Andei pelo País inteiro e gostaria de prestar, Senador, uma pequena homenagem ao Exército brasileiro, no que diz respeito ao ensino, principalmente nas regiões mais difíceis. Vi as escolas e, sim, são revoltantes. Professoras cedem parte de sua casa, improvisam e dão aulas para todas as séries do primeiro grau, ao mesmo tempo, fazendo uma lousa para cada uma, correndo de um lado para o outro. Em Tabatinga, por exemplo, a administração pública não conseguiu manter uma escola, que o Exército reformou e deixou bem apresentável. E os pelotões de fronteira, Senador, aqui pouco lembrados, constituídos por oficiais que, oriundos do Rio de Janeiro ou de São Paulo, são transferidos para regiões inóspitas da Amazônia, levando toda sua família. Ali, a esposa desses oficiais passa a ser a professora das comunidades indígenas que vivem naquela região. Portanto, há um grande sacrifício em ensinar as primeiras letras às comunidades menos assistidas do País. Não sei se o Ministério da Educação está chegando lá! Não sei, não...

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - É verdade.

O Sr. Romeu Tuma (PFL - SP) - Senador Cristovam Buarque, cito aqui um exemplo dado por esta Casa: o Senado tem atendido a comunidades que precisam de livros em braile, porque o Ministério da Educação não distribui um volume sequer. Vamos lançar agora, no Rio Grande do Sul, o primeiro dicionário em braile, que está sendo feito pelo Senado. Então, acerca dessa preocupação de V. Exª, lia, hoje, em uma revista de bordo, que “para as crianças a escola; para os adultos o trabalho”. E é isso que V. Exª sempre pregou por todo esse tempo que eu o conheço. Parabéns! Que Deus o ajude e ouça os seus lamentos e as suas orientações!

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Senador Romeu Tuma e Sr. Presidente, muito obrigado.

Senador Romeu Tuma, o MEC não chega a nenhum lugar porque não federalizamos, ainda, a educação. Das 180 mil escolas do Brasil, o MEC tem três: uma de surdos-mudos, uma de cegos e o Colégio Pedro II; há também algumas escolas técnicas e alguns colégios de aplicação. As escolas, no Brasil, são municipais. É isso que temos que mudar. Tem que haver um casamento do Município com a União, ou nós não teremos um País.

Sr. Presidente, desculpe a demora, o longo discurso, mas era impossível não ter o enriquecimento desses apartes.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 21/10/2004 - Página 32460