Discurso durante a 182ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Transcurso dos 56 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Construção da Justiça Ambiental.

Autor
Fátima Cleide (PT - Partido dos Trabalhadores/RO)
Nome completo: Fátima Cleide Rodrigues da Silva
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.:
  • Transcurso dos 56 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Construção da Justiça Ambiental.
Publicação
Publicação no DSF de 16/12/2004 - Página 43759
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.
Indexação
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO, CRIAÇÃO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, OPORTUNIDADE, RECONHECIMENTO, IMPORTANCIA, GARANTIA, DIREITOS SOCIAIS, POPULAÇÃO.
  • ANALISE, EXISTENCIA, CRISE, MEIO AMBIENTE, GRUPO INDIGENA, EFEITO, IDEOLOGIA, POLITICA.
  • ELOGIO, ATUAÇÃO, GOVERNO FEDERAL, LUTA, JUSTIÇA SOCIAL, DESENVOLVIMENTO, AGRICULTURA, PROPRIEDADE FAMILIAR, PRESERVAÇÃO, MEIO AMBIENTE, DESENVOLVIMENTO SUSTENTAVEL, APOIO, GRUPO INDIGENA.

A SRª FÁTIMA CLEIDE (Bloco/PT - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores: na sexta-feira da semana passada, dia 10 de dezembro, comemorou-se mundialmente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, editada há 56 anos, como fundamento legal em defesa da vida, válido em todos os países do mundo, em resposta regeneradora às duas grandes guerras mundiais da primeira metade do século XX.

A Declaração Universal dos Direitos do Homem é um marco na conquista dos direitos sociais que se efetivou no século passado.

Estima-se que, durante 7 milhões de anos, a humanidade viveu em grupos nômades de caçadores, pescadores e coletores. E, nessas condições, por milhões de anos, os seres humanos se multiplicaram e mantiveram equilibrada relação com os recursos vitais à sua disposição na Natureza.

Nessa fase se desenvolveram diferentes sistemas de direito natural entre os diferentes grupos humanos. Porém todos os esses sistemas tinham, necessariamente, a manutenção da Vida por valor fundamental de sua organização social e práticas culturais.

Segundo Arthur Soffiati, ao longo dos últimos 6 mil anos, surgiram e multiplicaram-se as cidades. Com elas, vieram a propriedade, o mercado, a moeda, o capital; e, com o tempo, a sociedade civil e o governo.

Pouco a pouco, fundou-se um sistema de relações humanas onde o mundo ao nosso alcance ganhou um valor novo valor de referência: o valor de capital. E a humanidade foi substituindo o valor real absoluto da Vida pelo valor abstrato relativo do capital.

Nessa fase, nascem e acentuam-se as desigualdades sociais, derivadas da diferença básica entre os que têm o capital e os que não o têm - com infindáveis variações intermediárias, entre quem tem quase tudo e quem tem quase nada.

A crise desse período exigiu e oportunizou a construção dos direitos políticos, instituídos no século XIX e dos direitos sociais, em processo de conquista no século XX, que culmina com a edição da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Contudo, isso não impediu que mais e mais se convertesse o valor absoluto da Vida em valor relativo de capital, até finalmente atribuir-se valor vital ao capital - de modo que, hoje em dia, qualquer pessoa de bom senso é capaz de afirmar, com toda naturalidade, que “sem dinheiro não se vive”. Mesmo que o “dinheiro” represente um valor que só existe no mundo das abstrações humanas - e, muito provavelmente, sejamos a única espécie que acredita que não se vive sem ele.

Enfim, sob essa grave ilusão, a humanidade adoeceu gravemente, e sua enfermidade contamina também gravemente o ambiente não humano, afetando o presente e o futuro do Homem e dos demais seres vivos.

Assim, nos encontramos numa nova crise - desta vez, uma crise ambiental. Pela primeira vez, uma crise ambiental planetária gerada exclusivamente pela espécie humana. E de tais proporções, que nos coloca no limite de uma escolha fatal para o destino da experiência humana e das condições de vida no planeta.

O momento desta escolha é o agora e a responsabilidade por ela compete a todos e a cada um dos seres humanos. A discussão dessa responsabilidade é o campo da Justiça Ambiental.

O escritor indígena Daniel Mundurucu, nos conta que, certa vez, um velho índio descreveu seus conflitos internos com a seguinte imagem: "Dentro de mim existem dois cachorros; um deles é cruel e mau, o outro é muito bom. Os dois estão sempre brigando."Quando então lhe perguntaram qual dos cachorros ganharia a briga, o sábio índio parou, refletiu e respondeu: "Aquele que eu alimento".

Srªs e Srs. Senadores, felizmente, a sociedade brasileira, inspirada em seu imensurável patrimônio natural e cultural, mantém ânimo regenerador, frente à crise ambiental que enfrenta. E escolhe alimentar o futuro pródigo e justo.

Sinais dessa escolha são a reflexão fecunda e as manifestações de diferentes setores da sociedade brasileira - que se registram em documentos produzidos recentemente, em eventos que este mandato parlamentar teve oportunidade de acompanhar e participar, direta ou indiretamente, por demanda do movimento social organizado que representa, no interesse do povo de Rondônia, da Amazônia e do Brasil.

Menciono aqui, especialmente, para que constem como parte deste pronunciamento, o Documento Final do II Fórum Permanente dos Povos Indígenas da Amazônia; a Carta Mapimaí, do Povo Suruí, de Rondônia; a Carta do Fórum em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas contra a violência em Raposa Serra do Sol; e a Declaração Política do I Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental.

Ilustrados com fatos concretos, os documentos denunciam a injustiça, conclamam e se dispõem à construção da Justiça ambiental. Contêm diagnóstico, avaliação e propostas relativas a realidades específicas, porém plenas de universalidade. Portanto, valiosíssimas às autoridades públicas, mas também à reflexão e à inspiração dos cidadãos e cidadãs, dos líderes e representantes políticos, das organizações sociais, governamentais ou não.

A Carta do Fórum em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, denuncia crimes, reclama por Justiça e faz recomendações quanto aos direitos dos povos da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, reafirmando a necessidade da imediata homologação de seu território.

A Carta Mapiamaí do povo Suruí, exige Justiça, nos seguintes termos: “Nesta ocasião, em respeito aos nossos parentes mortos, em crimes praticados contra nosso povo e contra a humanidade, celebramos a necessidade de realização da “Justiça”.

Na Declaração Política do I Encontro Nacional da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, um conjunto de indivíduos, entidades e comunidades “afirma sua identidade comum na luta contra injustiças ambientais e a favor da justiça ambiental, da democracia, da plena vigência de todos os direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais”.

Essa declaração foi produzida por representantes de populações tradicionais extrativistas, de comunidades afetadas por grandes projetos de infra-estrutura, de comunidades e trabalhadores que sofrem os impactos do modelo agrícola baseado na grande propriedade e na mecanização, e de populações afetadas pela contaminação industrial e urbana.

Já o Documento Final do II Fórum Permanente dos Povos Indígenas da Amazônia, afirma:

“O nosso projeto etnopolítico deve ser enraizado na visão de mundo diferente de nossos povos e no orgulho de sermos herdeiros de culturas milenares, portadoras de uma civilização e modelo de desenvolvimento que prioriza e respeita a Natureza e não o lucro e a riqueza, que levam à destruição do meio ambiente”.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, são relatos, críticas e recomendações especialmente bem vindas a esta Casa legislativa, que tem o dever institucional de discutir e formular as leis, sobre as quais se opera a Justiça em nossa sociedade.

Relatos, avaliações e recomendações certamente bem vindas também ao governo do presidente Lula, que tantas vezes tem conclamado a crítica criativa da sociedade ao seu governo, pedindo reiteradamente essa contribuição aos diversos segmentos do povo brasileiro.

No entanto, compartilho a advertência de Jean Pierre Leroy, da Rede de Justiça Ambiental, ressalvando que “(...) a efetivação dos direitos humanos econômicos, sociais, culturais e ambientais é uma longa marcha que envolve todos os setores: Executivos, Legislativos, Judiciários e sociedade; e essa efetivação se dá ao longo do tempo. Portanto, o atual Executivo federal não pode ser o único bode expiatório da profunda injustiça reinante no país”.

Até porque, o governo Lula, embora limitado pelas condições da realidade política que enfrenta, tem dado sinais de sensibilidade à promoção da Justiça ambiental. Pode-se citar especialmente

A criação e orientação dada ao Ministério da Cidade, com a saudável e promissora constituição do Conselho Nacional de Habitação, do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social e do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social.

Também são igualmente animadores as ações e programas do Ministério do Desenvolvimento Agrário, voltados à reforma agrária e à agricultura familiar sustentáveis.

O recente lançamento do Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel, que gera emprego e renda, reduz nossas importações de óleo diesel, criando uma cadeia de fabricação de óleos combustíveis a partir da enorme diversidade de oleagenosas de nosso país - especialmente a mamona e o dendê. 

Assim também é no Ministério do Meio Ambiente, onde se desenvolve a delicada construção do Plano Amazônia Sustentável e do Plano de Desenvolvimento Sustentável para a BR-163; as inúmeras iniciativas de combate ao fogo e ao desmatamento; assim como o apoio ao resgate das práticas culturais tradicionais dos povos indígenas e quilombolas.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, neste particular, quero saudar algumas recentes ações exitosas do governo Lula junto a populações tradicionais, extrativistas e indígenas de Rondônia - de reflexos muito positivos em toda a sociedade do meu Estado.

Refiro-me aqui, primeiro, ao apoio prestado ao projeto Suruí de resgate de suas tradições: um processo estratégico para a resistência, a autonomia e o protagonismo sustentáveis do povo Suruí, com reflexos diretos na economia e no equilíbrio social e ambiental do município de Cacoal e região circunvizinha.

A primeira fase do projeto concluiu-se com a realização da principal festa tradicional daquele povo - o Mapimaí -, que há cerca de quinze anos não se praticava.

Há cerca de trinta anos aquele povo fez o primeiro “contato pacífico” com o que eles chamam “o homem branco”. Antes disso, fugiam ou morriam, subjugados pela pólvora e pela dinamite.

Depois da “pacificação”, ainda morreram às centenas, vitimados pelas doenças físicas do homem branco, principalmente gripe e sarampo. Nessa fase quase 3 mil indivíduos foram reduzidos a 200 sobreviventes.

Os que resistiram tiveram de enfrentar ainda a pressão cultural da tecnologia do branco e “as coisas que o dinheiro pode comprar”. Superaram também esta fase do “encantamento”, e a população Suruí voltou a crescer. O processo de desencantamento, no entanto, iluminou e ampliou a consciência no povo Suruí, de modo que puderam reconhecer a tempo, que sua força e seu futuro estão guardados em suas próprias tradições; que sua própria cultura guarda os fundamentos de sua existência milenar.

De posse dessa consciência, organizaram-se internamente, identificaram aliados, articularam parcerias, definiram estratégias e prioridades e construíram um projeto de regeneração cultural. Para isso, acharam apoio no Ministério do Meio Ambiente e a assessoria em seus aliados mais imediatos.

Por esse processo o povo Suruí revisitou-se por meses, até chegar ao Mapimaí, numa celebração de reconquista de si mesmo, de harmonização interna, de gratidão e reconhecimento ao empenho dos seus amigos e aliados e de crítica à “Justiça do branco” - em ritual que homenageou especialmente o indigenista Apoena Meireles - na pessoa de sua mãe e sua irmã, Sr.ª Abgail Lopes e Lídice Meireles.

Outra feliz ação do governo Lula, de efeito significativo no Estado de Rondônia, foi referendada na celebração do povo Cinta Larga, pela edição da medida provisória que definiu prazos e condições legais para a comercialização dos diamantes que extraíram de seu território, até o último dia 20 de novembro. A medida livra-os do injusto constrangimento da ilegalidade e restaura a interlocução possível com o governo.

Quero ainda mencionar aqui a criação de mais uma unidade de conservação em Rondônia - o Estado amazônico mais impactado pela agropecuária. A Floresta Nacional de Jacundá, criada pelo presidente Lula, no último dia 2 de dezembro, tem pouco mais de 220 mil hectares.

Uma área maior que a capital paulista, que permite atividades de pesquisa, turismo e extrativismo florestal, desde que operados de forma sustentável.

Com mais esta Flona, apenas nos dois primeiros anos gestão, o governo Lula chega ao recorde de cerca de 3 milhões de hectares consagrados à conservação de nossa diversidade biológica, mineral e cultural. Para explicitar a importância desses números, ressalte-se que, em governos anteriores, as unidades de conservação têm sido criadas sempre nos anos finais dos mandatos presidenciais e nunca haviam passado de 600 mil hectares.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, apesar das preocupações e esforços do governo e da sociedade, a grave situação ambiental que vivemos, sob degradação global crescente, coloca-nos à beira da extinção do futuro - do futuro da humanidade e das demais espécies vivas neste planeta.

Isso exige que a Justiça e o Direito, transcendam a percepção do Homem como centro do universo, com direitos privilegiados sobre o destino dos demais seres vivos.

Diante disso, como membro desta Casa que faz as leis do meu País, auscultando meu coração de beiradeira e minha alma amazônida, digo que todos os seres vivos valem por si mesmos e por todo o universo criado com eles.

Digo que as relações e realizações humanas só se sustentam sob o valor primordial da Vida. E que esse valor deve sustentar uma atitude e um desempenho de civilização, por sua vez, capazes de sustentar a Vida em intenção e gesto.

Digo que é este o valor e o processo civilizatório que nos arrebata e mobiliza, feito anticorpus na sociedade enferma - vítima da armadilha letal que armou para si mesma num futuro cada dia mais próximo, a cada minuto mais agora.

Digo que o Sopro da Vida fez brotar no Brasil uma gente cujo futuro tem sabor de eternidade. No pedaço de Brasil onde eu brotei, por exemplo, é tudo tão farto e diverso que o tempo do futuro da gente é o sempre. Nos corações, mentes e ritos da gente de Rondônia, o futuro é um antiqüíssimo companheiro que, tão pródigo e desafiador, parece que sempre houve e sempre haverá - feito com nossos sonhos e esperanças.

Eu escolho alimentar o futuro.

Era o que eu tinha a dizer,

Muito obrigada.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 16/12/2004 - Página 43759