Discurso durante a 21ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Críticas à utilização excessiva de medidas provisórias pelo Poder Executivo.

Autor
Augusto Botelho (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RR)
Nome completo: Augusto Affonso Botelho Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
MEDIDA PROVISORIA (MPV).:
  • Críticas à utilização excessiva de medidas provisórias pelo Poder Executivo.
Publicação
Publicação no DSF de 17/03/2005 - Página 5218
Assunto
Outros > MEDIDA PROVISORIA (MPV).
Indexação
  • ANALISE, CRITICA, PREJUIZO, PAIS, EXCESSO, EDIÇÃO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), USURPAÇÃO, FUNÇÃO LEGISLATIVA, CONGRESSO NACIONAL, REGISTRO, DADOS.
  • COMENTARIO, INEFICACIA, EMENDA CONSTITUCIONAL, ALTERAÇÃO, NORMAS, MEDIDA PROVISORIA (MPV), CONTINUAÇÃO, EXCESSO, EDIÇÃO.
  • REGISTRO, HISTORIA, PODERES CONSTITUCIONAIS, BRASIL, OCORRENCIA, HEGEMONIA, EXECUTIVO, DESEQUILIBRIO, ABUSO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), CONTRADIÇÃO, ATUAÇÃO, PRESIDENTE DA REPUBLICA, EX-CONGRESSISTA.
  • COMENTARIO, REPUDIO, CLASSE POLITICA, JURISTA, ARBITRIO, MEDIDA PROVISORIA (MPV), PREJUIZO, DEMOCRACIA, ESTADO DE DIREITO, REGISTRO, TRAMITAÇÃO, PROPOSTA, EMENDA CONSTITUCIONAL, BUSCA, SOLUÇÃO, PROBLEMA.

O SR. AUGUSTO BOTELHO (PDT - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e srs. Senadores, muito mais do que as injunções políticas, as disputas partidárias ou as oscilações da economia, o uso indiscriminado das medidas provisórias, como faz o chefe do Poder Executivo - e como, antes dele, também o fizeram seus antecessores naquele cargo -, vem prejudicando a tão sonhada governabilidade, além de usurpar as funções do Congresso Nacional e de comprometer a independência dos Poderes.

A fúria legiferante do Poder Executivo é de tal ordem que no ano passado, dos 523 projetos aprovados pelo Congresso Nacional, apenas 17 deles, ou seja, 6,7% do total, tiveram como autores os Deputados Federais ou Senadores da República. Essa distorção não se explica por incapacidade ou desídia dos parlamentares, senão pela absoluta impossibilidade de elaborar as normas legais e, ao mesmo tempo, examinar e votar a avalanche de Medidas Provisórias que abarrotam a pauta das Casas Legislativas.

Sr. Presidente, com a promulgação da PEC nº 32, em 2001, julgava-se que o Parlamento brasileiro teria algum alento para retomar suas atividades e reassumir suas prerrogativas, mas o curto tempo decorrido desde então foi suficiente para sepultar as mais modestas expectativas.

Ao inserirem esse instrumento na Carta de 1988, pretenderam os constituintes preservar a prerrogativa de o Poder Executivo legislar em caráter excepcional. O uso das Medidas Provisórias, tal como então se imaginava, não usurparia a autoridade do Parlamento nem viria a ferir o princípio da separação dos Poderes preconizado por diversos teóricos e sistematizado por Montesquieu.

Com efeito, a teoria da tripartição dos Poderes propunha uma divisão de tarefas que contemplava a criação de normas para a vida em sociedade, a administração da comunidade consoante o atendimento dessas normas e a resolução de eventuais conflitos na interpretação ou no cumprimento desses princípios.

Com essa tripartição, pretendia-se impor limites à atuação de cada esfera do poder, evitando-se eventuais abusos, de forma a manter a eqüidade e a preservar as instituições. Em última análise, não existem, no Estado Democrático de Direito, três Poderes distintos, senão três esferas de poder que se complementam e que, sendo autônomas no exercício de suas competências, ao mesmo tempo dependem umas das outras.

No Brasil, o fortalecimento do Poder Executivo em detrimento dos demais Poderes tem uma longa história que remonta à dissolução da Assembléia Constituinte por Dom Pedro I e que passa pela Constituição de 37 e a instauração do Estado Novo, e pelos Atos Institucionais do regime militar, entre outras exorbitâncias.

Com a redemocratização do País, os constituintes de 87/88 devolveram ao Poder Legislativo suas legítimas prerrogativas, embora reservando ao Poder Executivo a faculdade de legislar excepcionalmente, em casos de relevância e urgência, conforme disposto no art. 62 da Carta Magna.

Sob a égide da redemocratização e em meio a discussões sobre o melhor sistema de governo para o País, os constituintes introduziram na nova Carta o instrumento da Medida Provisória, importado ao parlamentarismo italiano. Esta não se confundia com o decreto-lei, que teve origem na Constituição de 1937 e que, anos mais tarde, no governo militar, seria introduzido na Constituição então vigente, de 1946, pelo Ato Institucional nº 2, de 1965, e mantido ainda na Constituição de 1967.

Diferentemente do decreto-lei, que se convertia em lei se não fosse apreciado no decurso de 60 dias, a Medida Provisória pode ser definida como um projeto de lei com força de lei e vigência imediata, mas que, não sendo apreciada em tempo hábil, perde sua eficácia. Esse instrumento, portanto, representava uma categoria normativa até então inédita em nosso País. Embora não tivesse o viés autoritário do decreto-lei, é importante ressaltar que este último mecanismo, conquanto servisse aos governos autoritários, só se aplicava a questões de segurança nacional e finanças públicas, e, mais tarde, também à criação de cargos públicos e à fixação dos vencimentos.

O que se observa, portanto, é que, tendo embora uma inspiração nitidamente democrática, ao contrário do decreto-lei, a Medida Provisória passou a ser empregada de forma distorcida. Por não se terem estabelecido limites ao Poder Executivo quanto à matéria sobre a qual este instrumento pode dispor, desde sua instituição ele vem sendo utilizado de forma abusiva por aquele Poder, que tem ignorado até mesmo os requisitos constitucionais de urgência e relevância.

A partir do momento em que foi instituída, a Medida Provisória tem sido empregada de forma indiscriminada por sucessivos governos. Em artigo sobre esse tema, o professor de Direito Constitucional Fernando Machado Lima lembrava que o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, quando Senador da República, criticava severamente o então Presidente Fernando Collor pelo abuso na edição de Medidas Provisórias: “Ou o Congresso põe ponto final no reiterado desrespeito a si próprio e à Constituição, ou então é melhor reconhecer que no País só existe um Poder de verdade, o do Presidente. E daí por diante, esqueçamos também de falar em democracia”, dizia Fernando Henrique.

Alguns anos mais tarde, o então Senador se tornaria vidraça, ao editar, em seu Governo, a média mensal de 3,24 Medidas Provisórias no período anterior a outubro de 2001; e de 6,8 MPs mensais no período posterior a outubro de 2001, quando entraram em vigor as novas regras, que deveriam reduzir a freqüência de utilização desse mecanismo.

A fúria legiferante do Poder Executivo era de tal monta que as discussões sobre as mais diversas matérias se restringiam às lideranças partidárias, e os parlamentares se sentiam marginalizados no processo legislativo. O próprio Presidente Lula, quando Deputado Federal, alguns anos antes, já se mostrara desiludido com o processo legislativo, segundo relata o jornal Correio Braziliense em sua edição de 9 de fevereiro último.

Eis que Lula chega ao Planalto, e o que ocorre? Passa a governar com base nas Medidas Provisórias, para decepção, entre outros, do Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Roberto Busato. Citado na revista Consultor Jurídico, ele lembra o compromisso do hoje Presidente e então candidato Luiz Inácio Lula da Silva, assumido na sede daquela entidade, de que evitaria o uso de Medidas Provisórias em seu governo.

O abuso na edição das medidas provisórias tem suscitado veementes protestos e manifesta insatisfação. A Emenda Constitucional nº 32, de 2001, que se julgava um mecanismo eficaz para reduzir as MPs, não surtiu, como vimos, os efeitos desejados. A situação, a continuar se agravando, como parece, pode levar a uma situação de efetiva ingovernabilidade. No âmbito do Parlamento, o predomínio absoluto das matérias encaminhadas pelo Executivo tem gerado uma situação de grave descontentamento, conforme afirma o jornal Correio Braziliense, já citado:

“A cada ano, aumenta o poder do Executivo sobre o Legislativo. A pauta de votações é praticamente toda definida pelo governo. Não são raros os deputados que vêem passar o mandato inteiro sem assistir à aprovação de um projeto que tenha apresentado. A prioridade dada às propostas emanadas do Executivo traduz-se no número de Medidas Provisórias que, em diversas ocasiões, trancou a pauta de votações da Câmara e do Senado, jogando para segundo plano a apreciação de matérias de interesse direto dos parlamentares”.

O periódico cita um ex-parlamentar, Evilásio Farias, que após atuar na Câmara por dez anos, tendo conseguido aprovar um único projeto de lei, trocou a atividade legislativa pela Prefeitura de seu Município, Taboão da Serra. “A percepção dessas limitações impostas ao Congresso - destaca o periódico - vem fomentando uma crise de identidade entre os parlamentares”.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, não é por outro motivo que uma comissão mista vem apreciando as medidas que podem ser tomadas para coibir o abuso na edição das MPs; não é por outro motivo, também, que tramitam nesta Casa e na Câmara dos Deputados numerosas Propostas de Emenda Constitucional que alteram - mais uma vez - as regras das Medidas Provisórias ou mesmo suprimem esse mecanismo. O estrangulamento da atividade legislativa não se define apenas pelo sentimento pessoal de frustração dos parlamentares, mas pode ser facilmente medida. Em 80% das sessões deliberativas da Câmara dos Deputados e em 56% das sessões desta Casa, no ano passado, as pautas estiveram trancadas por medidas provisórias que não haviam sido votadas em tempo hábil.

Tal como os políticos, os juristas têm se manifestado, de forma veemente, contra o abuso das MPs. Para o constitucionalista Sacha Calmon, “a interpretação histórica e teleológica da Constituição prima em mostrar a excepcionalidade da medida, e não sua vulgarização”.

Sr. Presidente, essa vulgarização ocorre principalmente porque o chefe do Governo não vem atentando para os requisitos de urgência e relevância estabelecidos na Carta Magna. Comentando esse comportamento, o Dr. José Anselmo de Oliveira, professor da Universidade Tiradentes e Juiz da 3ª Vara Criminal de Aracaju, foi categórico: “A edição de MP somente para implementar políticas de governo é antidemocrática, ditatorial e causa insegurança jurídica com prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação. (...) A falta de um dos requisitos torna a Medida Provisória inválida e ilegítima, passando a ser instrumento de arbítrio e de força contrária à democracia e ao Estado de direito”.

Diz ainda: “Analisando as centenas de Medidas já editadas, não encontramos os requisitos exigidos na maioria delas, pois a gama de temas que foram alcançados por esse meio de legislar supreendentemente não passava de situações normais, onde o processo legislativo atenderia satisfatoriamente. (...) De tudo se tratou. Medidas econômicas, impostos, direito processual, direito material, trem da alegria, direito administrativo, enfim, uma verdadeira panacéia para atender os fins do governo, nem sempre claros e nem sempre de interesse do povo brasileiro”.

É preciso ressaltar que essa pretendida facilidade de governar por meio de MPs, ao longo do tempo, pode prejudicar até mesmo o próprio Executivo, como explica o presidente nacional da OAB, Roberto Busato. “O Governo lança - exemplifica Busato - um projeto de lei a respeito de um assunto de seu interesse, que passa a tramitar no Congresso Nacional. No entanto, esse mesmo Governo entra com uma Medida Provisória em assunto não relevante e seu projeto de lei, que estava tramitando, acaba ficando retido devido à edição de MPs que o próprio Governo apresentou”. “Isso mostra claramente o cipoal que o Governo monta contra si próprio”, conclui.

É importante lembrar que o próprio Presidente Lula já reconheceu que tem exagerado na edição de medidas provisórias. A alguns meios de comunicação, ponderou que “a demora nas votações obriga o Poder Executivo a utilizar esse tipo de instrumento para que não haja uma paralisação nas atividades do Governo”. O que ele não esclareceu foi o círculo vicioso que se cria com esse comportamento, porquanto as MPs têm sido utilizadas indistintamente para trazer à apreciação do Parlamento todo e qualquer tipo de matéria. Além disso, o Poder Executivo tem outros meios para acelerar as votações nos assuntos que requeiram maior celeridade, pois a Constituição Federal prevê, em seu art. 64, parágrafo 1º, que “o Presidente da República poderá solicitar urgência para apreciação de projetos de sua iniciativa”.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ao concluir essas considerações quero encarecer a necessidade de nos empenharmos na busca de uma medida urgente e eficaz para reduzir a verdadeira avalanche que hoje ocorre, na edição das Medidas Provisórias; e apelar ao chefe do Poder Executivo para que, ele próprio, lance mão de outros instrumentos, como o pedido de urgência, quando a matéria encaminhada à apreciação do Congresso Nacional assim o requerer.

Finalmente, quero reafirmar minha convicção de que o uso parcimonioso das Medidas Provisórias não apenas devolve ao Parlamento suas legítimas prerrogativas, mas também restabelece o respeito e o equilíbrio entre os Poderes e contribui para o aprimoramento do Estado Democrático de Direito.

Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/03/2005 - Página 5218