Discurso durante a 26ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

A questão do acesso à justiça.

Autor
Augusto Botelho (PDT - Partido Democrático Trabalhista/RR)
Nome completo: Augusto Affonso Botelho Neto
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
JUDICIARIO.:
  • A questão do acesso à justiça.
Publicação
Publicação no DSF de 24/03/2005 - Página 6285
Assunto
Outros > JUDICIARIO.
Indexação
  • ANALISE, DIFICULDADE, ACESSO, POPULAÇÃO CARENTE, JUSTIÇA, BRASIL.
  • ESCLARECIMENTOS, DIVERSIDADE, MOTIVO, IMPEDIMENTO, EFETIVAÇÃO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, LEGISLAÇÃO PENAL, REFERENCIA, DIREITOS, CIDADÃO, GRATUIDADE, JUSTIÇA.

O SR. AUGUSTO BOTELHO (PDT - RR. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, há direitos que são fundamentais sem os quais não se podem exercer alguns outros que têm especial importância para a efetivação do conceito de cidadania, como a conhecemos nos dias atuais.

            Não basta ter direitos gravados na Constituição Nacional, se não forem oferecidas as condições que assegurem o seu exercício.

Todos devem ter acesso à justiça, por exemplo, mas ela tem um custo com os quais muitos cidadãos não conseguem arcar. Fala-se tanto que ao Estado cabe assegurar que não prevaleça a “lei do mais forte”, mas, se não se possibilitar aos desafortunados o acesso ao sistema estatal de justiça, de certa forma, estará havendo um desequilíbrio no conceito de eqüidade, que deve nortear a atuação do Poder Judiciário naquilo que diz respeito à proteção igualitária dos direitos de todos os cidadãos.

Araken Assis explica muito adequadamente essa situação, afirmando que “ao proibir os cidadãos de resolverem por si suas contendas, o Estado avocou o poder de resolver os conflitos de interesse, inerentes à vida social, e, correlativamente, adquiriu o dever de prestar certo serviço público, que é a jurisdição. Aos interessados nessa atividade, o Estado reconhece o direito de provocá-la, preventiva ou repressivamente”.

Esse direito está explicitamente colocado na Constituição de 1988, que, no inciso XXXV do artigo 5º, estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

O artigo 5º assegura, também, em seu inciso LXXIV, que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”.

E, para garantir direitos que, reconhecidamente, não podem ser desvinculadas do indivíduo, a Constituição traz estampado, no inciso LXXVII do mesmo artigo, que “são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania”.

Porém não é suficiente a gratuidade do processo, pois também está escrito na Carta Magna, artigo 133, que “o advogado é indispensável à administração da justiça”.

Ora, se os desprovidos não podem defender-se por si mesmos - aliás, sequer dispõem do embasamento jurídico para tal, ainda que quisessem fazê-lo - e não podem custear o trabalho de um defensor privado, não existe alternativa que a de o Estado fornecer um defensor, como única forma de os necessitados terem acesso aos serviços judiciais.

Assim é que a Lei Maior estabeleceu, no art. 134, a Defensoria Pública como “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados”. Aliás, é vedado aos defensores públicos o exercício da advocacia fora das atribuições institucionais, o que se mostra fundamental para que eles realmente estejam disponíveis para atender àqueles que, sem essa instituição, não conseguiriam ter acesso ao órgão judicante.

Não será por falta de amparo legal, portanto, que os desafortunados se verão privados da análise judicial quando isso se fizer necessário.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o conceito de justiça, apesar da definição mais utilizada pelos operadores e mestres do Direito, segundo os quais “justiça é dar a cada um aquilo que é seu”, vem passando por transformações, conforme a evolução da sociedade. Se, na Antigüidade, Aristóteles ensinava que a justiça era uma virtude moral, responsável pelo desenvolvimento das relações entre os homens na sociedade, na Idade Média, Santo Tomás de Aquino, há mais de sete séculos, concebeu a justiça com o caráter distributivo conhecido ainda hoje, por meio da qual a sociedade confere a cada indivíduo aquilo que lhe caberia por seus méritos. Porém, para uma nova corrente contemporânea que vem ganhando muito terreno, a justiça é percebida num sentido ético-político, de modo que a organização da sociedade possibilite a cada cidadão encontrar as condições necessárias para a realização da própria felicidade, considerando-se que a mola mestra para a consecução de tal fim é a solidariedade.

É necessário salientar, porém, que não basta ter um arcabouço legal abrangente, que assegure o acesso aos serviços que o Estado presta visando à solução de conflitos. Atualmente, o que todo indivíduo busca conseguir é o exercício pleno da cidadania, sentimento que cresceu com o fim do regime militar no Brasil e a elaboração da nova Carta Magna, que recebeu do próprio Presidente da Assembléia Nacional Constituinte, o grande Deputado Ulisses Guimarães, a alcunha de “Constituição Cidadã”.

Por isso, o acesso à justiça tem de ser considerado uma questão de cidadania. Entretanto, muitas são as dificuldades impostas à sua efetivação.

Kazuo Watanabe menciona, como elementos essenciais para a efetividade do acesso à justiça, três pré-requisitos: a igualdade na forma de nivelamento cultural, para viabilizar o conhecimento acerca do direito pleiteado; a paridade de armas na disputa em juízo; e o estudo crítico da legitimidade do ordenamento jurídico.

Por sua vez, Mauro Capeletti menciona barreiras econômicas, sociais e culturais, para apresentar sua idéia de justiça em três ondas. A primeira, da assistência judiciária aos pobres, representa a necessidade de garantir meios aos hipossuficientes, para que possam obter a justiça, pois a situação de hipossuficiência impede que os conflitos cheguem ao conhecimento do Poder Judiciário; esta é a barreira econômica, responsável pela elitização da justiça. A segunda onda é a da representação dos interesses difusos em juízo, já que o Poder Judiciário está estruturado para assegurar a tutela jurisdicional de conflitos individuais, mas não a de novos direitos: os transindividuais. A terceira onda se apresenta como uma nova forma de acesso à justiça, face à deslegitimação do Judiciário por não atender a todos indistintamente, em nosso país, por motivos vários, como a insuficiência do aparelhamento estatal, a enorme extensão territorial e as desigualdades regionais.

A terceira onda a que se refere Capeletti pode efetivar-se com a criação de mecanismos judiciais e extrajudiciais de acesso à justiça, para descentralizá-la, e com a adoção de novas técnicas procedimentais que simplifiquem o processo, de modo a tornar satisfatória a função jurisdicional. Evita-se, assim, a negação da justiça motivada pela complexidade e pela formalidade dos procedimentos, que, tornando excessivamente moroso o processo, redundam na denegação da própria justiça.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, como podem ver a questão do acesso pleno à justiça ainda promete muita discussão teórica, além das dificuldades de ordem prática, que transformam os hipossuficientes em vítimas do sistema. À justiça cabe assegurar a igualdade de direitos, mas os obstáculos colocados para o acesso a ela continuam constituindo um fator preponderante de desigualdade.

Sr. Presidente, não constitui novidade, no Brasil, a preocupação com a barreira econômica que dificulta o acesso à justiça. Nas Ordenações Filipinas, editadas na metrópole no tempo do Brasil-Colônia, havia um dispositivo que garantia a representação gratuita em juízo. Assim constava do Livro III, Título 84, parágrafo décimo: “Em sendo o agravante tão pobre que jure não ter bens móveis, nem de raiz, nem por onde pague o agravo, e dizendo na audiência uma vez o Pater Noster pela alma Del Rey Dom Diniz, ser-lhe-á havido, como que pagasse os novecentos réis, contanto que tire de tudo certidão dentro do tempo, em que havia de pagar o agravo.”

Como direito previsto constitucionalmente, a justiça gratuita não fazia parte das duas primeiras Cartas, de 1824 e de 1891. Esse direito foi aparecer pela primeira vez na Constituição de 1934, que estabelecia para a União e para os Estados a obrigação de conceder assistência judiciária aos necessitados. Impunha, ainda, ao poder público a criação de órgãos especiais para essa finalidade e assegurava a isenção de emolumentos, custas, taxas e selos.

Quanto às normas infraconstitucionais, a primeira previsão de justiça gratuita na legislação brasileira está na Lei n° 261, de 3 de dezembro de 1841. Já a assistência judiciária, apesar de constituir um ônus voluntariamente assumido pelos advogados desde os primórdios, foi instituída como obrigação pública pelo Decreto n° 1.030, de 14 de novembro de 1890.

Depois, tivemos a reafirmação da justiça gratuita pelo Código de Processo Civil de 1939. E a Lei n° 1.060, de 1950, regulamentou esse benefício e a concessão da assistência judiciária pelo Juízo, sem abranger outras entidades que a prestam, como os escritórios-modelo das faculdades públicas de Direito e os serviços de assistência judiciária das faculdades particulares.

A Lei n° 1.060, de 1950, sofreu várias alterações, mas o seu objetivo básico, ainda nos dias atuais, continua sendo atingido por meio do Ministério Público e da Procuradoria do Estado e de advogados dativos onde não foi implantada.

Por sua vez, causa espécie o fato de já se terem passado mais de 16 anos da promulgação da Carta de 1988 e, mesmo assim, a Defensoria Pública não estar instalada em todos os Estados.

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, apesar dos obstáculos já apontados, pode-se afirmar que houve uma evolução positiva em nossa trajetória para a distribuição dos serviços judiciários com eqüidade. Tem-se, primeiramente, a justiça gratuita, que significa a isenção de emolumentos, custas e taxas do processo; depois, a obrigação de assistência judiciária a cargo do Juízo; e a previsão, pela Carta Magna de 1988, da Defensoria Pública, efetivada pela Lei Complementar n° 80, de 12 de janeiro de 1994. Essa Lei organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização nos Estados.

            A Lei Complementar estabeleceu prazo de seis meses para a instalação das defensorias estaduais, mas, seis anos depois, em 2000, ainda faltava um terço dos Estados instalarem esse órgão. Hoje, a instalação do órgão já se concretizou na quase totalidade dos Estados. Em São Paulo, ainda perdura o serviço por meio da Procuradoria de Assistência Judiciária da Procuradoria-Geral do Estado, conforme o que mostra o estudo diagnóstico elaborado pelo Ministério da Justiça em dezembro de 2004, com o título Defensoria Pública no Brasil.

            É bom lembrar que o texto atual da Constituição prevê “assistência jurídica integral e gratuita”. Deve ser entendido que, além da justiça gratuita e da assistência judiciária, os necessitados devem receber, ainda, orientação e consultoria extrajudicial. Algumas situações ilustram bem a necessidade dessa orientação: esclarecimentos sobre usucapião, acompanhamento de inquérito policial, negociação de verbas trabalhistas e outras em que, geralmente, os necessitados enfrentam o que pode ser considerado situação de desigualdade.

Mas vai uma longa distância entre o que a lei estabelece e a realidade. Além disso, é impossível exercer um direito que se desconhece. O cidadão tem direito à educação de qualidade e à informação generalizada sobre o mundo em que vive. É necessário avaliar até que ponto isso se concretiza no Brasil de hoje.

Sem que o cidadão conheça seus direitos, de que adianta a instituição da assistência jurídica integral e gratuita, como consta em nossa Lei Maior?

Sr. Presidente, primeiro e antes de tudo, é necessário integrar os excluídos, disponibilizando-lhes os benefícios que o Estado tem obrigação de oferecer, que constituem a razão de ser do Estado, concedendo a todos, dessa forma, a cidadania plena.

É uma utopia?

Pode ser, mas é possível avançar nessa direção, pois, como disse o poeta Antonio Machado, “se hace camino al andar”. Assim, cada passo dado diminui a distância que nos separa do ideal de justiça.

Era o que eu tinha a dizer.

Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/03/2005 - Página 6285