Discurso durante a 33ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre o pontificado do Papa João Paulo II.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Considerações sobre o pontificado do Papa João Paulo II.
Publicação
Publicação no DSF de 06/04/2005 - Página 7406
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, JOÃO PAULO II, PAPA, IGREJA CATOLICA, ELOGIO, ATUAÇÃO, DEFESA, PAZ, LIDERANÇA, AMBITO INTERNACIONAL.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, tenho o dever de consciência de prestar minha homenagem à memória do Papa João Paulo II, que morreu na sexta-feira.

Por quatro vezes, estive com o Papa. Por ele fui recebido como Presidente da República e dele recebi uma acolhida carinhosa que jamais poderei esquecer. Convidou-me, inclusive, para assistir a uma missa que celebrou na sua capela privada, à qual compareci com a minha mulher. Conversou sobre o Brasil. Disse-me do amor que tinha por este País e das recepções carinhosas com que os católicos do Brasil sempre o receberam.

Um dos mais impressionantes aspectos da personalidade de João Paulo II foi, sem dúvida, sua capacidade de compreender, de assumir por completo, de se identificar com os povos e com os fiéis de todo o mundo. Fazia isso com a mesma naturalidade com que falava muitas línguas, numa expressão de sua vocação de apóstolo.

Quando, em 1978, o mundo descobriu a extraordinária figura de Karol Wojtyla, ninguém esperava que o novo Papa tivesse tantas facetas de uma personalidade fascinante e descobriu nele o teólogo, com a regência moral e espiritual com que exerceu seu Pontificado, o homem simples que era, o esportista, o homem que amava o teatro, que fazia poesia. Ele também era um místico, um evangelizador, um comunicador que ocupou um terço do século XX com sua presença de líder da humanidade. João Paulo II trouxe para o mundo, no sentido profundo na etimologia da palavra “entusiasmo”, seu chamado “fôlego de Deus”.

De família humilde, filho de um alfaiate e soldado, convive, desde a sua infância, com perdas fundamentais: primeiro, a morte de sua mãe, quando tinha nove anos; depois, a morte do único irmão, quando tinha 12 anos; e, aos 21 anos, a do morte do pai, ficando isolado, sem as suas referências de primeiro grau. Ainda na escola, começam as suas duas paixões: primeiro, a devoção à Virgem Maria, que manteve até o fim de sua vida; segundo, a vocação do teatro, que mantinha durante o tempo de sua juventude. Começa a estudar Filosofia e conhece, então, duas faces das mais terríveis que a humanidade já teve: a do nazismo, quando os alemães fecharam a Universidade de Cracóvia e, depois, a do comunismo totalitário, quando foi perseguido.

Na clandestinidade, estuda, faz teatro, cursa o seminário. Trabalha numa pedreira, numa indústria química. Entre o refúgio da sua residência na arquidiocese e a liderança estudantil, prepara-se para a vida missionária, estudando para o sacerdócio.

Intelectual, sua tese, preparada em Roma, é sobre São João da Cruz. É o contato com os místicos, com Santa Teresa d’Ávila, com o universo da contemplação, do contato direto com Deus.

Pastor, trabalha com operários poloneses na França, na Bélgica e na Holanda antes de voltar para o trabalho paroquial em Cracóvia.

Professor, sua tese para a Universidade de Lublin é sobre a ética católica. É a reafirmação de sua vocação filosófica, a grande fusão entre teologia, moral e ética social.

Bispo aos 38 anos, sua carreira fulminante está vinculada a seu desempenho quando, no Concílio Vaticano II, participou decisivamente da Constituição Gaudium et Spes. O grande artífice do Concílio, que, à época, era o Cardeal Montini, torna-se o Papa Paulo VI. Em 1964 o faz Arcebispo de Cracóvia, e, em 1967, ele já é Cardeal.

O Papa João Paulo foi a soma de todos aqueles aspectos de Karol Wojtyla. Ele trouxe para a Igreja uma vitalidade de que a aparência midiática não pode dar mais que uma vaga idéia.

Não foram suas 104 viagens apostólicas, os 17 milhões de peregrinos que recebeu nas audiências gerais, o fato de ter sido a pessoa mais vista de todos os tempos que o tornaram próximo de cada fiel, de cada homem de boa vontade através do mundo: foi sua identidade com cada homem, com cada um que sofre, com cada um que tem esperança.

No contato pessoal com João Paulo II, todas as vezes, senti aquele traço de humanidade, aquela força poderosa de sua energia carismática e de sua liderança.

Não foi sua grande obra doutrinária, suas 14 encíclicas, suas cartas, exortações e constituições apostólicas que o fizeram o líder inconteste de uma Igreja que mantém sua força à frente dos grandes desafios do nosso tempo: foram sem dúvida sua fé profunda e autêntica, e sua vocação para o que chamou, falando da Beata Teresa de Calcutá, de “itinerário de amor e de serviço” - qualidades que também foram suas. Foi a visibilidade da verdade de sua confissão de que todas as suas orações e todas as suas ações “foram animadas por um único desejo: testemunhar que Cristo, Bom Pastor, está presente e age na sua Igreja”.

O Papa João Paulo II chegou num momento em que a Guerra Fria parecia levar ao confronto inevitável comunismo e capitalismo, com desfecho nas armas nucleares. Negando as duas faces do materialismo, o do estado concentracionário, que colocava o Estado como uma religião, e o do estado liberal, como seu culto pelo lucro e pelo sucesso, Sua Santidade também se movimentou politicamente, tendo um papel decisivo nos fatos que levaram à liberdade sua Polônia e à queda do Muro de Berlim, símbolo da divisão física e da divisão virtual.

Contou-me Dom Mauro Morelli que, numa audiência que teve com ele, foi felicitá-lo pelo trabalho que ele tinha feito em favor da queda do Muro de Berlim, para evitar que o mundo se confrontasse com as duas ideologias, que certamente terminariam na guerra nuclear. E o Papa, humildemente, respondeu: “Não. O responsável foi o Mikhail Gorbachev”. E parou e disse: “Mas eu dei um empurrãozinho”.

Tive a honra e o privilégio, como disse, de ser recebido por ele quatro vezes. Sua Santidade teve a generosidade de abençoar-me pessoalmente e de estender suas mãos e suas palavras sobre minha família.

A generosidade foi uma marca de vida de João Paulo II. Ainda Arcebispo de Cracóvia, promoveu a troca de mensagens entre os bispos poloneses e alemães, o “perdoar e ser perdoado”. Ele tinha vivido o drama de sua pátria - a Polônia - ser esmagada primeiro pelas botas dos exércitos alemães, depois pelas dos exércitos russos. Essa forma de reconciliação, depois, foi por ele estendida a todos os que, com maior ou menor razão, tinham diferenças com a Igreja Católica - entre estes, o grande reconhecimento de Galileu.

A convivência entre as religiões, promulgada pelo Concílio Vaticano II, foi colocada em prática pelo Papa com esse sinal de humildade e generosidade. Da ONU às mais distantes sociedades e povos, ele apresentou o Ocidente sob o manto do Cristianismo. Não calou em nenhum momento em busca da Paz, em sua denúncia da mais trágica das realidades humanas, que é a guerra. Não aceitou e não nos deixou aceitar a teoria e a idéia da guerra justa que basearam a invasão do Iraque.

Na fraqueza e no momento da doença, foi com coragem que deu ao mundo um exemplo de aceitação e de esperança, o sentimento profundo do dever.

Deus nos fez viver um tempo em que entregou a Sua Igreja a um homem tão rico de virtudes, expressão daquilo que São João disse: que Cristo amou os homens até o fim. João Paulo II marcou seu tempo pela força da sua fé, transformada em energia apostólica e, também como São João disse a respeito de Cristo, amou os homens até o fim.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/04/2005 - Página 7406