Discurso durante a 35ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexões sobre o aborto no Brasil.

Autor
Heloísa Helena (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/AL)
Nome completo: Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SAUDE. CODIGO CIVIL.:
  • Reflexões sobre o aborto no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 08/04/2005 - Página 8070
Assunto
Outros > SAUDE. CODIGO CIVIL.
Indexação
  • ELOGIO, DISCURSO, TIÃO VIANA, SENADOR, DEBATE, DIA INTERNACIONAL, SAUDE, SAUDAÇÃO, SANÇÃO, LEGISLAÇÃO, MELHORIA, PARTO, SISTEMA UNICO DE SAUDE (SUS).
  • IMPORTANCIA, DEBATE, POLEMICA, ABORTO, COMENTARIO, PESQUISA, UNIVERSIDADE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, MULHER, BAIXA RENDA, FALTA, ATENDIMENTO, CONDIÇÕES SANITARIAS, AUSENCIA, ALTERNATIVA, CONTROLE DA NATALIDADE, DEFESA, DISCRIMINAÇÃO, CRITICA, MORAL, CLASSE POLITICA.
  • CRITICA, PROPOSTA, GOVERNO, ALTERNATIVA, ABORTO, DEFESA, PRIORIDADE, PLANEJAMENTO FAMILIAR.
  • ANUNCIO, PROXIMIDADE, VOTAÇÃO, PROPOSIÇÃO, AUTORIA, ORADOR, OBRIGATORIEDADE, ESTADO, GASTOS PUBLICOS, CRECHE, EDUCAÇÃO PRE-ESCOLAR.

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, primeiro, quero cumprimentar V. Exª, Senador Tião, pelo pronunciamento que fez. Apesar das gigantescas divergências ideológicas e programáticas que temos, reconheço em V. Exª um dos mais preparados especialistas na área de saúde. Sem dúvida, teve oportunidade de compartilhar com esta Casa idéias sobre o dia de hoje, em que se comemora o Dia Mundial da Saúde. Sabemos todos nós que as frias estatísticas oficiais escondem histórias de dor, humilhação e vidas que estão sendo destruídas pelo Brasil.

Hoje, vimos sancionado o projeto da Senadora Ideli, projeto extremamente importante. Espero que a base do Governo na próxima semana possa votar o nosso projeto de creche, Senador Tião Viana, do qual V. Exª é o Relator, até porque comemoramos o nascimento e temos obrigação de comemorar o que vai acontecer com as crianças após nascerem.

No entanto, deixarei para falar sobre esse tema na próxima semana, quando espero estará aqui sendo votada a minha proposta de emenda à Constituição.

Tratarei hoje de um assunto extremamente polêmico. Tenho muito respeito por companheiras minhas que, como eu, são do movimento feminista, pessoas por quem tenho a maior consideração. Falarei sobre o tema do aborto.

Trata-se de uma matéria muito polêmica, mas me sinto na obrigação de falar a respeito, até para ter minha consciência tranqüila de que sempre estive aqui expressando aquilo que penso, as minhas convicções, concepções, sem, em nenhum momento, mover os meus passos por pesquisa de opinião, por jornais ou por matérias, de qualquer forma que seja.

Quero falar sobre a questão do aborto.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, sei que muitas pessoas não têm autoridade moral para sequer tratar do tema. Não têm realmente autoridade moral, porque são pessoas que, às vezes, até estão na primeira fila das igrejas, dos templos, das sinagogas; são pessoas que fazem o discurso de falso moralismo contra o aborto, mas muitas delas, para manterem os seus casamentos de fachada e de mentira, pagam o aborto da sua amante, pagam o aborto quando o seu filhinho de papai engravida a pobre da empregada, muitas delas crianças e adolescentes.

Então, eu sei que é um tema extremamente polêmico.

Tive a oportunidade, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, quando ainda estava na Universidade - para onde voltarei daqui a pouco tempo -, de fazer uma pesquisa com mulheres que fizeram abortos. Não estou falando das mulheres ricas e das mulheres de classe média, que conseguem fazer aborto em clínica particular porque têm dinheiro para fazê-lo e sabem o endereço das clínicas particulares cujos médicos e profissionais da saúde fazem abortos a torto e a direito. Falo das mulheres, muitas das quais entrevistei, que, muitas vezes, Senador Tião Viana, fizeram aborto com o açougueiro da esquina. Sim, porque há o açougueiro rico, aquele que faz o aborto com todo o rigor da anti-sepsia, e há o açougueiro que faz o serviço para a pobre mulher pobre, utilizando agulha de crochê, agulha de tricô e as mais diversas formas para fazer com que aquela mulher perca a vida que traz dentro de si.

Muitas dessas mulheres acabavam indo para a maternidade pública depois, porque o serviço era tão mal feito, que elas precisavam ir para a maternidade pública completar com uma curetagem aquilo que havia sido feito. Quando elas chegavam lá, muitos profissionais as agrediam, dirigiam-se a elas com palavras de baixo calão e não as socorriam na hora da dor, porque queriam que elas sofressem mais, pois sabiam, pela visualização do colo do útero, que elas tinham ido para um açougueiro de esquina promover um aborto. Era uma situação de completa humilhação. Além da dor que sentiam, eram humilhadas, massacradas de todas as formas - isso, para não mencionar a questão da religiosidade, porque muitas delas já ficavam sentindo aquele peso na consciência em relação ao que haviam feito.

Não sou eu quem vai perdoar a mulher que praticou o aborto, porque quem perdoa é Deus, mas não tenho dúvida de que Deus já a perdoou. Não tenho dúvida de que Deus perdoa gestos como esse, porque Deus acolhe as suas filhas pobres, muito especialmente.

Chamo atenção para o falso moralismo, o moralismo farisaico da canalha que diz na sua igreja que é contra o aborto, mas paga o aborto para os seus filhos e para as suas amantes. Chamo atenção para o fato de que não se trata de criminalizar as mulheres que se submetem a um aborto, as mulheres pobres que não podem ser mais criminalizadas do que já foram pela vida. O que mais me impressiona, porém, Senador Tião Viana, é ver que, em 2005, seja apresentada a curetagem de uma vida como mecanismo inovador para uma mulher não ter filho. Acho impressionante que, no ano de 2005, isso aconteça.

Não há nada mais primitivo do que o aborto, principalmente quando se tem em vista a alta tecnologia que já se desenvolveu no que diz respeito a anticoncepcionais ao longo da história. Tanto já se desenvolveu em relação ao conhecimento reprodutivo e à saúde reprodutiva! Causa-me espanto, portanto, ver apresentarem, inclusive no atual Governo, a curetagem de uma vida como algo inovador e como panacéia para resolver os males da saúde pública feminina em nosso País.

É um problema de saúde pública gravíssimo? É, porque muitas das mulheres que ocupam leitos nas maternidades públicas não estão ali por causa do filho que terão ou tiveram: muitas delas estão ali porque fizeram aborto. É inaceitável, portanto, que, em vez de se trabalhar o tema que realmente é necessário trabalhar, o planejamento familiar e a saúde reprodutiva, promovendo a democratização no que diz respeito ao acesso das mulheres a toda tecnologia de que se dispõe na área, fala-se de aborto.

E V. Exª sabe o que é um aborto - desculpe-me a expressão -: é introduzir um espéculo no canal vaginal de uma mulher e curetar uma vida. E alguém apresenta isso como se fosse inovador? Alguém apresenta isso como se fosse extraordinário? Alguém apresenta isso como se fosse avançado?

Infelizmente, não posso compartilhar desse pensamento. É claro que tenho motivos espirituais para fazê-lo, mas, do ponto de vista da saúde pública e de tudo o que já foi produzido em termos de conhecimento e tecnologia para impedir uma gravidez, é inadmissível que o Governo e muitos parlamentares apresentem o aborto como a única alternativa, como a principal alternativa, como se inovador fosse o que efetivamente não é.

Há outro aspecto que discuto com as minhas queridas companheiras mulheres do movimento feminista, do qual faço parte. Falamos a respeito da autodeterminação com relação ao nosso corpo, da autonomia de fazermos com o nosso corpo o que quisermos. No entanto, há limites para isso. Se estou grávida, possuo autonomia para retirar o feto. Sim, mas é só com relação ao feto de até um mês de gestação? Vão retirar o feto com seis meses? Defende-se o aborto com o argumento da autodeterminação do corpo, com o argumento de que a mulher deve ter autonomia para fazer o que quiser com o próprio corpo. Mas quero saber se alguém vai ter a coragem de dizer publicamente que vai abortar uma criança com seis ou sete meses de gestação. Não vai, porque sempre fica a imagem que se pode visualizar: a estrutura anatomofisiológica um pouco maior significa vida; a outra, um pouco menor, não significa vida alguma.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, esse debate ainda vai ser ampliado nesta Casa, mas volto a repetir: o que me traz aqui não são meus motivos espirituais. Condeno com veemência o moralismo farisaico, o falso moralismo de muitos políticos safados que pagam aborto para as suas amantes e para os seus filhinhos e depois vão sentar na primeira fileira de uma igreja para fazer discurso contra o aborto. Não se trata de condenar esse moralismo farisaico ou sequer das minhas questões espirituais. Trata-se, efetivamente, de ressaltar que é inadmissível que, com tanto conhecimento acumulado e tanta tecnologia produzida, o Governo ou alguns parlamentares apresentem o aborto, a curetagem de uma vida, como a única e mais importante alternativa para impedir que uma mulher tenha um filho. Espero que possamos fazer esse debate no âmbito da saúde reprodutiva.

É comum, Senador, ao se fazer uma pesquisa, a seguinte pergunta: “Você é contra ou a favor do aborto?” Colocada assim a pergunta, muita gente vai dizer que é a favor, mas caso fosse perguntado “Você é a favor do planejamento familiar ou do aborto?”, duvido que as pessoas não respondessem que são favoráveis ao planejamento familiar. Segundo a última pesquisa feita no Brasil, mais de 60% das pessoas são favoráveis ao aborto. Isso é resultado da tragédia que é a vida de muitas pessoas.

Por tudo isso, Senador Tião Viana, espero que, na próxima semana, votem aqui o meu projeto relativo às creches. É tão cínico esse debate... Dizem que você pode interromper uma vida, curetar uma vida para impedir que uma pessoa tenha um filho. Mas será que o Governo não pode estabelecer que creches, que educação infantil pública e gratuita, que o cuidado para todas as crianças de zero a seis anos são obrigações do Estado?

Por uma questão de consciência, não poderia deixar de falar hoje sobre esse problema gravíssimo de saúde pública. Não é incomum ver mulheres pobres em mesas frias de necrotérios em função de um aborto mal feito. Muitas outras mulheres passam por constrangimentos gigantescos em função de o Poder Público colocar isso como única alternativa para ela. Isso é escandaloso! Com tanto conhecimento e tecnologia produzida, como é que o Poder Público diz que a única alternativa para uma mulher não ter um filho - alternativa supostamente inovadora, o que é mentiroso - é curetar uma vida?

Sr. Presidente, vou entrar nesse debate com todo o respeito que tenho por muitas pessoas queridas que sei terem posição contrária. Espero, porém, que esta Casa possa fazer um debate sério sobre a atenção à mulher, sobre a atenção à saúde da mulher e sobre os mecanismos que o Estado tem de disponibilizar, inclusive para as suas crianças. Muitas mulheres cometem o aborto não porque querem simplesmente: é porque elas sabem que, se engravidarem, perdem o emprego; elas sabem que, se engravidarem, serão demitidas; elas sabem que, se engravidarem, não terão acesso a creche ou a escola para deixar seu filho. É por isso.

Espero que possamos fazer esse debate, vinculado-o ao debate da saúde reprodutiva, sem o moralismo farisaico, sem o falso moralismo, mas tratando a questão de forma séria. O ano é de 2005, e estabelecer que a curetagem de uma vida é a grande fórmula mágica e inovadora para impedir que uma mulher tenha um filho, além de uma fraude supostamente feminista - porque isso é uma fraude -, é uma farsa técnica inimaginável, inadmissível.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/04/2005 - Página 8070