Discurso durante a 52ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Vinte anos de fundação do Ministério da Reforma Agrária. Análise histórica da situação fundiária brasileira.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. POLITICA FUNDIARIA.:
  • Vinte anos de fundação do Ministério da Reforma Agrária. Análise histórica da situação fundiária brasileira.
Aparteantes
Cristovam Buarque, Mozarildo Cavalcanti.
Publicação
Publicação no DSF de 30/04/2005 - Página 12855
Assunto
Outros > HOMENAGEM. POLITICA FUNDIARIA.
Indexação
  • REGISTRO, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, MINISTERIO DA REFORMA E DO DESENVOLVIMENTO AGRARIO (MIRAD), PERIODO, GESTÃO, ORADOR, PRESIDENCIA DA REPUBLICA, IMPORTANCIA, INICIATIVA, DESENVOLVIMENTO AGRARIO, PAIS.
  • HISTORIA, EVOLUÇÃO, SISTEMA FUNDIARIO, REFORMA AGRARIA, BRASIL.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Senador Paim, sabe V. Exª da admiração que lhe tenho e como fico sensibilizado pelas suas palavras.

Hoje vim a esta sessão para relembrar ao País que há 20 anos criávamos o Ministério da Reforma Agrária.

O problema agrário no Brasil sempre despertou grande controvérsia. Não é recente, vem dos primórdios de nossa descoberta, das primeiras lutas por terras entre os habitantes nativos e os colonizadores, da ocupação do território e do sentimento da posse como se fosse a propriedade. Depois então tivemos a tentativa de legalização dessas posses, com sesmarias, leis em cima de leis. Na verdade, esse problema que aflorou no século passado vem de muitos e muitos anos.

Quando assumi a Presidência da República, há 20 anos, uma das questões colocadas era a criação de um ministério destinado a tratar do problema fundiário brasileiro. Encontrei, na reforma proposta pelos assessores do Presidente Tancredo Neves, a criação de um Ministério Extraordinário para Assuntos Fundiários. Achei que devíamos dar o nome direto de Ministério da Reforma Agrária.

O termo reforma agrária era maldito. Ao falar reforma agrária, a pessoa era tida logo como radical, alguém que não tinha uma visão exata dos fatos e que era contra a propriedade. Tivemos muitas lutas sobre isso.

No tempo do Presidente João Goulart a campanha pela reforma agrária era feita de maneira muito violenta, com vários conflitos, e que surgiu o lema “na lei ou na marra”. O Presidente Castelo Branco, encontrando esse problema latente -- do que naquele tempo era chamado “reformas de base” --, mandou ao Congresso o Estatuto da Terra. Era uma lei básica tão boa que atravessou todos esses 40 anos. Mas nada disso conseguiu resolver o problema da terra.

Presenciei várias etapas do problema fundiário no Brasil. Na primeira etapa tínhamos algo de extrema injustiça. A terra começou a ser valorizada, e aquelas famílias e comunidades de posseiros e meeiros -- muitas delas centenárias --,que plantavam e viviam da terra, passaram a ser expulsas de maneira cruel pelos proprietários. Sobretudo no Nordeste, esse foi um problema chocante, violento. Em Pernambuco - está ali o Senador Cristovam Buarque, que deve lembrar-se muito bem -, havia o problema dos engenhos como grandes latifúndios. Aluísio Medeiros chamava isso de “latifúndio devorante”.

Depois tivemos uma segunda fase, em que nós precisávamos regularizar a situação das pessoas que habitavam essas terras e que necessitavam trabalhar. Dava-se acesso à terra para que as pessoas aproveitassem dela em benefício do País. Finalmente tivemos a entrada de novas tecnologias e a mecanização da lavoura, do trabalho da terra, hoje numa fase muito avançada com os desenvolvimentos científicos, a biotecnologia.

O problema tomou uma conotação muito mais complexa do que nós tínhamos aquele tempo, mas nem por isso deixou de ser um problema a necessitar uma solução, um desafio aos homens públicos, porque no seu núcleo está a questão da justiça social.

Então, naquela época, como Presidente, eu disse: não, nós vamos colocar o nome de Ministério da Reforma Agrária, vamos desmitificar esse problema, vamos criar o ministério como ele deve ser criado. E demos o nome de Ministério da Reforma Agrária. Institucionalizamos o enfoque do problema como fundamental, como um problema de Estado.

Infelizmente, até hoje não se pôde resolver completamente o problema. Vemos em todo o Brasil o que ocorre no setor da terra: um problema quase insolúvel. É difícil porque se choca com uma instituição fundamental da sociedade humana, que é a propriedade.

Muitas vezes condenamos a propriedade. Mas a propriedade, ao longo da história da humanidade, foi destinada a evitar um conflito entre os homens, porque, se não houvesse a noção do que é meu e do que é seu, haveria as brigas como nas sociedades primitivas, tribais; aquela coisa do tacape, um atacando o outro. Era a guerra da sobrevivência. Dela nasceu isto que, pouco a pouco, foi se consolidando e que se transformou no instituto da propriedade, que tem um sentido de paz entre os homens. Mas não podemos achar que a propriedade é absoluta de tal modo que possa ser utilizada contra os interesses sociais.

O problema básico da reforma agrária é justamente este: temos que utilizar a propriedade em benefício da sociedade e não só em benefício individual. As restrições ao conceito de propriedade são um conceito moderno -- e quando digo moderno não é que seja de hoje, mas que vem se estruturando ao longo dos dois últimos séculos. Temos que respeitar a propriedade. Mas ela, que é um dos fundamentos da sociedade moderna, é um instrumento de paz social e tem de ser compatibilizada com os interesses sociais.

O problema da reforma agrária é, portanto, um problema que subsiste. Hoje há esse aspecto tecnológico, não podemos só entregar a terra para o homem, temos que dar condições para que possa lavrá-la, mecanizá-la, temos que dar acesso aos instrumentos tecnológicos, propiciar produtividade para que a agricultura possa ser competitiva. Se não tivermos produção competitiva, evidentemente se torna muito mais fácil importar alimentos e tudo o que a terra produz de outros países muito mais avançados, cujas tecnologias são capazes de fazer produções baratas. É o que ocorre com os grandes países ricos, onde os subsídios são de tal natureza que lutamos para que caiam. Nos Estados Unidos e na Europa os subsídios à agricultura são extraordinários, sua produção deles é vendida muito barata; invadem o mundo inteiro com alimentos. Nossa luta tem sido justamente tentar romper essa barreira dos subsídios.

Mas o que eu queria dizer hoje, aqui, é que há 20 anos foi criado o Ministério da Reforma Agrária; marcar esta data, lembrá-la e dizer que este é um problema grave, que permanece, um problema de justiça social. São reparos que devemos à mais sofrida de todas as nossas classes, aquela que vive no campo, que sempre esteve desamparada, vivendo e sobrevivendo à custa do seu trabalho, do seu suor e do seu sacrifício.

O Sr. Cristovam Buarque (Bloco/PT - DF) - Peço um aparte.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Concedo um aparte a V. Exª.

O Sr. Cristovam Buarque (Bloco/PT - DF) - Talvez tenhamos que criar no Regimento o conceito de adendo.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Infelizmente, não estava vendo V. Exª, mas fico muito honrado de no meu discurso contar com um aparte do Professor Cristovam Buarque, homem que tem uma tradição no Brasil por tudo o que fez pela educação brasileira. Tenho a felicidade de, quando fui Presidente da República, tê-lo escolhido para reitor da Universidade de Brasília.

Muito obrigado, a V.Exª.

Senador Cristovam Buarque, V. Exª tem o aparte.

O Sr. Cristovam Buarque (Bloco/PT - DF) - Presidente José Sarney, primeiro, quero apenas testemunhar. Estive muito presente quando V. Exª criou o Ministério da Reforma Agrária. Por pouco, não fui chefe de gabinete do Ministro Marcos Freire. Eu era reitor e não ia abandonar o meu mandato. S. Exª chegou a me procurar para conversar. Segundo, quero felicitá-lo por ter criado esse Ministério, o que foi um ato de coragem. Ao mesmo tempo, ter mantido o nome Reforma Agrária, em vez dos eufemismos que em geral já usam para falar de reforma agrária; foi uma grande coisa. Quero parabenizá-lo por ser desses estadistas que dizem: fiz isso, mas lamento não termos podido fazer mais ao longo desses 20 anos, não só durante o seu mandato, mas também nos períodos seguintes. É uma pena que 500 anos depois ainda estejamos falando de uma questão que já devia estar resolvida. Quero dizer que estou de acordo com V. Exª, quando afirma que a propriedade é uma instituição fundamental para o bom funcionamento da sociedade. Porém, às vezes, a propriedade de um bem impede que outrem use a sua propriedade. Os trabalhadores rurais têm como única propriedade os braços, as pernas e o cérebro. E os donos de terras improdutivas impedem que o trabalhador use a sua propriedade, que são seus braços. Nesse caso, a propriedade se torna ilegítima. É claro que precisamos ter o cuidado para evitar que, em nome de liberar a propriedade ao trabalhador, desarticulemos propriedades eficientes, que estão funcionando, como vemos em muitos países em que, de repente, em nome de uma reforma agrária, se faz uma desestruturação agrária. Então, Senador José Sarney, quero dizer da minha satisfação de ter acompanhado muito de perto a criação do Ministério da Reforma Agrária, em virtude da amizade que eu tinha com as pessoas que faziam parte do seu Governo, tendo sido nomeado por V. Exª reitor da UnB. É uma pena que não tenhamos podido, ainda, complementar a reforma agrária, mas, pelo menos, V. Exª pode dizer que deu a sua contribuição, o passo que era preciso no meu momento.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado a V. Exª pelo aparte, tão esclarecedor e tão sábio e que me dá oportunidade de relembrar e prestar uma homenagem a Marcos Freire, homem extraordinário, que honrou esta Casa com tantas idéias, com tanto talento e que - pode-se dizer - foi um mártir da reforma agrária. Marcos Freire sacrificou o seu talento e o seu futuro, quando, como Ministro da Reforma Agrária, viajando pelo Brasil inteiro, foi vítima do acidente que roubou a sua vida em meio a uma carreira brilhante. Deu-me grande e extraordinário ajuda. No momento em que soube do falecimento do Marcos Freire, tive um choque profundo, ao ver, como diziam os romanos, aquela coluna partida quando se levantava tão brilhante e tão bela.

Dá-me também oportunidade de agradecer a Nelson Ribeiro, que, comigo, implantou o Ministério da Reforma Agrária, e a José Gomes da Silva, que também era conhecedor profundo do assunto, um apaixonado.

Naquela época, ao criarmos o Ministério da Reforma Agrária, estabelecemos alguns princípios que se tornaram definitivos e que têm ajudado muito a encarar o problema da reforma agrária. Fizemos, naquela oportunidade, a subdivisão do Plano Nacional de Reforma Agrária em planos regionais, a definição das áreas prioritárias, considerando as regiões de conflito social e a origem dos agricultores.

O Sr. Mozarildo Cavalcanti (Bloco/PTB - RR) - Senador José Sarney, solicito a V. Exª um aparte quando puder.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Em seguida, concederei o aparte a V. Exª.

Também fazia parte dos planos regionais a primazia da obtenção das terras em áreas onde havia grande concentração de acampamentos de sem-terras. Fizemos uma ação na Fazenda Anoni, no Rio Grande. Logo nos primeiros dias, tivemos de resolver aquele problema grave do seu Estado, Presidente Paulo Paim.

O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Eu estive na região na época.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Lembro, ainda, a reforma de todo o aparato jurídico e o fortalecimento que demos ao Incra para que pudesse exercer sua função. Houve o envolvimento dos movimentos sociais. Naquele tempo, incorporamos à visão do problema agrário a participação dos movimentos sociais. Contamos com a presença da sociedade para a solução dos problemas. Por isso, digo sempre que naqueles anos começamos a construir uma sociedade democrática, uma sociedade que não é somente um instrumento passivo das decisões superiores, mas é, também, participante dos seus problemas.

Cito, ainda, a valorização do cooperativismo, do associativismo, e a recuperação dos assentamentos antigos, que foi a primeira providência que tomamos - e posso dizer que resolvemos, em grande parte, os problemas desses assentamentos, tanto que os problemas que vemos hoje são recentes e de outras áreas.

Assim, ao criar o Ministério da Reforma Agrária, não passamos em branco aqueles anos, mas tentamos reestruturá-lo a fim de que pudesse cumprir a finalidade que tem.

O Sr. Mozarildo Cavalcanti (Bloco/PTB - RR) - Permite-me V. Exª um aparte?

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Ouço V. Exª com prazer.

O Sr. Mozarildo Cavalcanti (Bloco/PTB - RR) - Senador José Sarney, lamentavelmente, na época do seu Governo, ainda não havia o instituto da reeleição e o Brasil não pôde, portanto, contar com um segundo Governo de V. Exª. Em meio ao clima psicológico daquele momento, V. Exª assumiu o mandato destinado ao Presidente Tancredo Neves, que era de seis anos e foi diminuído para cinco. Não havia o instituto da reeleição. Tenho a certeza de que o Brasil teria ganho muito com mais um mandato de V. Exª à frente da Presidência da República. Tenho certeza de que V. Exª continua contribuindo - e muito - seja na Presidência do Senado, que exerceu com competência fora do comum, seja aqui, como Senador, dando essas explicações e essas aulas para todo o Brasil. Espero que V. Exª ainda volte a presidir este País. Muito obrigado.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Agradeço a V. Exª, sobretudo, a sua generosidade. Os excessos do seu aparte são, sem dúvida, fruto de uma amizade que data de muitos anos.

Devo agradecer, primeiro, o fato de esse instituto não existir quando eu era Presidente da República, porque eu jamais me aventuraria a uma reeleição. Não tive a oportunidade legal, mas Deus deu-me o bom senso de nunca ter sido seduzido pela mosca azul e tentar concorrer de novo à Presidência. Ao contrário, a minha idéia é a de que, quando temos a oportunidade extraordinária de presidir o Brasil, que eu tive - agradeço ao povo brasileiro e a Deus o meu destino -, devemos dar como cumprida essa missão.

Uma nova etapa de nossa vida se incorpora. Depois de ter sido Presidente, tive a felicidade de voltar a ser cidadão, cidadão comum, sendo o mesmo homem que sempre fui, vendo o poder passar sem me atingir e sem mudar minha maneira de ser. Voltei a ser cidadão comum com a vantagem de poder concorrer a uma eleição, desfrutar, como todos, os caminhos do voto, em Estados pequenos, vivendo os nossos problemas. Tenho hoje a satisfação de estar aqui com os meus Colegas que honram esta Casa e receber provas de generosidade, como recebi do Presidente, como recebi de V. Ex.ª e como recebi do Senador Cristovam Buarque.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 30/04/2005 - Página 12855