Pronunciamento de Romeu Tuma em 04/05/2005
Discurso durante a 55ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Apelo pela revisão da legislação criminal, principalmente da Lei de Execução Penal, com vistas a democratização do acesso à justiça.
- Autor
- Romeu Tuma (PFL - Partido da Frente Liberal/SP)
- Nome completo: Romeu Tuma
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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SEGURANÇA PUBLICA.
MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), REQUERIMENTO DE INFORMAÇÕES.:
- Apelo pela revisão da legislação criminal, principalmente da Lei de Execução Penal, com vistas a democratização do acesso à justiça.
- Publicação
- Publicação no DSF de 05/05/2005 - Página 13352
- Assunto
- Outros > SEGURANÇA PUBLICA. MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), REQUERIMENTO DE INFORMAÇÕES.
- Indexação
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- CONCLAMAÇÃO, CONGRESSISTA, ESFORÇO, MELHORIA, JUSTIÇA, BRASIL, LEGISLAÇÃO PENAL, COMBATE, IMPUNIDADE, CRIME.
- GRAVIDADE, SITUAÇÃO, ATUALIDADE, INJUSTIÇA, AUMENTO, VIOLENCIA, CRIME, ALEGAÇÕES, DESIGUALDADE SOCIAL, CRITICA, LEI DE EXECUÇÃO PENAL, EXCESSO, CONCESSÃO, INDULTO, CONDENADO, ANULAÇÃO, DIREITOS, AGRESSÃO, SEGURANÇA PUBLICA, IMPUNIDADE, INCENTIVO, REINCIDENCIA.
- APRESENTAÇÃO, REQUERIMENTO DE INFORMAÇÕES, MINISTERIO DA JUSTIÇA (MJ), SOLICITAÇÃO, DADOS, BENEFICIARIO, INDULTO.
- QUESTIONAMENTO, LEGISLAÇÃO, EXTINÇÃO, EXAME, AVALIAÇÃO, PERICULOSIDADE, CRIMINOSO, AMEAÇA, SEGURANÇA, POPULAÇÃO, COMPENSAÇÃO, EXCESSO, LOTAÇÃO, PRESIDIO.
- DEFESA, LEGISLAÇÃO, CRIME HEDIONDO, DENUNCIA, ATUAÇÃO, ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL (ONG), AMBITO INTERNACIONAL, GOVERNO BRASILEIRO, EXCESSO, REGALIA, CRIMINOSO, FAVORECIMENTO, CRIME ORGANIZADO.
O SR. ROMEU TUMA (PFL - SP. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs, Senadores, venho à tribuna para dirigir um apelo a todos os integrantes do Congresso Nacional em prol da justiça. Quero endereçar-lhes um apelo para que todos nós, senadores e deputados, juntemos esforços acima de diferenças políticas e possamos dar ao cidadão brasileiro a certeza de que, em nosso País, se faz justiça.
Dia 8 de abril último, proferi palestra aos alunos de Direito da Universidade Braz Cubas, da cidade de Mogi das Cruzes, em meu Estado e, através do tema A Segurança da Injustiça, pude enveredar pelo campo em que me sinto mais à vontade, depois de nele atuar profissionalmente por mais de 50 anos, isto é, a área criminal do Direito. Ao sentir a angústia dos jovens acadêmicos e seus mestres, vi robustecer-se a minha certeza de que o Estado brasileiro, embora se diga democrático e moderno, é claudicante no ato primordial de fazer justiça.
No campo criminal, fazer justiça implica algo muito mais abrangente do que a simples aplicação da lei, embora a esta devam estar subordinados todos os procedimentos que levem à descoberta e condenação do autor ou dos autores de um delito. Começa com o nascimento, no Congresso Nacional, da própria lei penal que será aplicada pelos membros das honrosas carreiras jurídicas.
Aqui, meus nobres Pares, surgem as normas capazes de, posteriormente, proporcionar às vítimas e à sociedade a sensação de que alcançaram justiça. É evidente que qualquer falha na formulação, discussão, aprovação e sanção dessas normas repercutirá negativamente na administração da justiça, até o momento em que se possa reformulá-las sem ferir a Constituição da República.
De nada adianta diagnosticar o óbvio, isto é, o acelerado crescimento da criminalidade violenta, se esquecermos que compete a nós, exclusivamente, determinar na legislação tudo o que norteará os procedimentos policiais e judiciais, desde o momento em que não se conseguiu evitar, pela prevenção, a ocorrência do ilícito penal tipificado em lei e comunicado por notitia criminis ou queixa. O que aqui decidimos alcança todo o processo judicial decorrente das apurações de polícia judiciária e da denúncia apresentada pelo Ministério Público ao juiz. Abrange o julgamento e estende-se à execução das penas aplicadas. E essas fases são capitais para que se possa fazer justiça. Se houver lacuna em qualquer uma delas, seja na letra da lei, seja na sua aplicação, sempre existirá quem se veja injustiçado.
Podemos comparar cada um desses procedimentos ao elo de uma corrente cujo vigor, como em todas as demais, corresponde à robustez de sua ligação mais fraca. Se este elo continuar a debilitar-se até quebrar, a força dos outros torna-se irrelevante para concretizar o objetivo maior da lei penal e da segurança pública, isto é, proteger os direitos do ofendido, sem descurar do ofensor, e garantir a vida, a integridade física e moral dos cidadãos, assim como o seu patrimônio.
Fazer funcionar com perfeição todo aquele encadeamento de ações legais tem que ser um dos objetivos primordiais do Estado democrático de direito. Mas, infelizmente, isso não vem acontecendo há pelo menos duas décadas, ou porque tais princípios elementares foram ignorados e atropelados por privilégios introduzidos a mancheias na legislação penal para minimizar e quase elidir o caráter punitivo da pena, ou porque, ao invés de estimular e aguardar a reforma de leis inquinadas de imperfeitas, há quem prefira praticar o julgamento “contra legem”. E isto significa negar o Estado democrático de direito. Pode ser visto como uma ameaça à democracia. Subverte os valores democráticos lastreados no respeito às leis, porque é legítimo interpretá-las na esfera competente, mas afrontá-las constitui atitude insana e indesculpável.
Como conseqüência, as penas perdem o caráter punitivo e não mais intimidam os malfeitores. O resultado de tal absurdo manifesta-se nas ruas, nas casas, nos edifícios, nas páginas e nos programas de noticiário policial. Mede-se o seu alcance pelas vidas ceifadas, pelos patrimônios destruídos, pelas famílias arrasadas, pelo clima de guerra insuflado em grandes cidades, pela desmoralização da segurança pública, pela injustiça de cada vez mais se privilegiar réus e condenados que escarnecem do direito das vítimas, em meio a um crescendo de impunidade e, portanto, de incentivo à violência.
Só falta agora inculpar as vítimas do infortúnio que lhes sucedeu, pois a sociedade já recebeu a culpa há muito tempo, quando a criminalidade violenta passou a ser rotulada de simples reação às mazelas e distorções sociais. Nem de longe se pode considerar isso como ministrar justiça a quem trabalha para prover o próprio sustento e dos dependentes. Nem por hipótese se pode dizer que isso é fazer justiça a quem paga os mais pesados impostos do mundo para dispor de um sistema capaz de, ao final, transformá-lo em mais um entre milhares de injustiçados.
Há três anos, o desembargador Álvaro Lazarini, do Judiciário paulista, apontava em artigo no jornal O Estado de S. Paulo que “o banditismo mudou seu perfil e formou uma nova classe social” lastreada na destruição dos valores sociais, familiares e morais operada nas duas décadas anteriores. Surgiu, assim, o conceito de “terceira vertente” da criminalidade, que “não se restringe mais aos malformados da teoria de Lombroso nem às vítimas do modelo econômico, os desvalidos, que aliás continuam a aumentar. (...) Trata-se agora de uma terceira categoria: os deformados morais que acreditam ter o ‘direito’ de atacar os demais cidadãos, roubando-lhes os bens e tirando-lhes a vida, como bem entenderem. Eles se baseiam no que a mídia lhes ensinou. Já que ninguém presta, todos em tese são bandidos.”
No dizer do ilustre desembargador, a Lei de Execução Penal (Lei n.º 7.210, de 11 de julho de 1984) tornou-se “tão benevolente que beira a irresponsabilidade”. Acrescento a isso o fato de que, diante das possibilidades de indulto, o diminuto caráter intimidador das penas praticamente desaparece. Surgiram indultos de todo tipo e para todos os gostos. Juntam-se aos perdões concedidos tradicionalmente pela Presidência da República na época natalina. Ampliam-se a cada ano. Já se transformaram em rotina e, como tal, agridem o bom senso.
Por exemplo, dia 2 de dezembro último, o Excelentíssimo Presidente Luiz Inácio Lula da Silva baixou o Decreto n.º 5.296 e voltou a conceder indulto condicional e comutação a condenados por ampla gama de crimes, inclusive aqueles passíveis de pena privativa de liberdade superior a 6 (seis) anos. Isto alcança o roubo, delito que está alarmando a população devido também, não raro, a se desdobrar em seqüestro e latrocínio.
A partir de 1995, desde o governo do Excelentíssimo Sr. Fernando Henrique Cardoso, os presidentes invocam o art. 84, inciso XII, da Constituição, para conceder o benefício com apoio em “manifestação do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária” acolhida pelo Ministro da Justiça. Alegam ser “tradição” conceder, por ocasião do Natal, “perdão ao condenado em condições de merecê-lo, proporcionando-lhe condições para a harmônica integração social, objetivo maior da sanção penal.” Portanto, é de se imaginar que o Ministério da Justiça possua os dados necessários para avaliar o acerto em indultar perigosos condenados periódica e rotineiramente.
Desde 1996, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária deixou evidente a intenção de ir ampliando, ano a ano, o alcance dos indultos e comutações subseqüentes. Beneficiam agora condenados por crimes de elevado poder ofensivo, sem que se tenha notícia da cessação de sua periculosidade e ressocialização, fim último da Lei de Execução Penal. Antes de se referir à ressocialização, essa lei diz no artigo 1.º que o seu objetivo fundamental é o de “efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal”.
Portanto, os indultos e comutações sucessivos e rotineiros conflitam com o pressuposto primordial daquela lei. Extrapolam o sentido de tradição para assumir ares de direito adquirido. Paulatinamente, ganham aparência de norma usurpada do Poder Legislativo, da mesma forma que acontece com certas Medidas Provisórias despidas de relevância e urgência. Além do mais, escapam à excepcionalidade da indulgentia herdada do Direito Romano. A periodicidade e o paulatino aumento da abrangência dos indultos levam à interpretação angustiante de que são baixados para anular o cumprimento das leis e decisões judiais.
À luz da Constituição, tal habitualidade pode configurar não um benefício de alto valor humanístico, mas sim vantagem concedida a alguém com exclusão de outrem e, portanto, contrária ao direito comum. Tratar-se-ia de privilégio agressor de um direito garantido pelo artigo 144 da Constituição a todas as pessoas que se encontrem no País, isto é, a segurança pública. Isto porque os crescentes índices de violência relacionam-se àquelas periódicas libertações de milhares de apenados, parte dos quais volta a delinqüir imediatamente.
O disposto naquele artigo constitucional torna a todos responsáveis pela segurança pública, por ele qualificada como dever do Estado. Compete assim ao Presidente da República, acima de todos, o dever de preservá-la. Não basta valer-se dos órgãos executores da segurança para preservar a ordem pública e a incolumidade das pessoas e do patrimônio, ou escorar-se em propostas do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária. Tais órgãos são competentes para ações específicas. Mas, sua existência não elide a responsabilidade de quem, como primeiro mandatário da Nação, está obrigado a zelar pela segurança do contribuinte e pelo menos dar o bom exemplo.
Assim pensando, apresentei requerimento de informações n.º 218/2005 que o Senado Federal endereçou ao Ministro da Justiça com algumas questões decisivas para a concessão desses benefícios rotineiros. São elas:
I - Quantos apenados se beneficiaram dos indultos e comutações concedidos pelos Decretos n.º 1.645, de 26/09/1995; 1.860, de 11/04/1996; 2.002, de 09/09/1996; 2.365, de 05/11/1997; 2.838, de 06/11/1998; 3.226, de 29/10/1999; 3.667, de 21/11/2000; 4.011, de 13/11/2001; 4.495, de 04/12/2002; e 4.904, de 01/12/2003?
II - Desses beneficiários, quantos voltaram a delinqüir?
III - Voltando a delinqüir, quantos se tornaram reincidentes específicos e em quais crimes?
IV - Quantos apenados o governo está beneficiando com o Decreto n.º 5.296, de 02/12/2004?
O problema dos indultos periódicos, entre eles os concedidos pela Presidência da República, figura na base do sentimento social de impunidade. Além do mais, pode representar potente fonte de corrupção, possibilidade que se depreende do fato de muitos apenados recuperarem a liberdade embora fosse facilmente previsível sua reincidência em crimes de alto poder ofensivo, como o roubo, ou o cometimento de outros ainda mais graves, como o seqüestro e o latrocínio.
Temos no recente seqüestro da Sra. Inês Fidélis Régis, mãe do jogador Rogério, que atua no Sporting, de Portugal, uma demonstração emblemática disso. Ela foi levada de Campinas (Interior de São Paulo) para Caraguatatuba (litoral paulista) pela quadrilha de André Luiz Ramos, alcunhado “Barba”, tido como integrante da organização criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital).
Agindo em conjunto, policiais de ambas as cidades localizaram o cativeiro, libertaram a refém e identificaram os seqüestradores. O chefe do bando conseguiu romper o cerco policial a tiros. Sua ficha criminal registra condenação a 43 anos de reclusão. Foi preso duas vezes por roubo e homicídio cometidos em Campinas. Na primeira, em 2002, ganhou liberdade provisória sete meses depois de ser capturado pela Polícia.
Em 2003, estava novamente na prisão. Mas, por ser portador do vírus da AIDS, conseguiu um indulto humanitário na Justiça e enveredou para a prática de seqüestros, tendo como alvos preferidos idosas e crianças. Entre outros crimes, “Barba” chefiou o seqüestro de uma menina de 7 anos em Holambra, região de Campinas, pouco depois de ser indultado humanitariamente.
Mas, esse tipo de indulto é apenas uma das diversas maneiras de deixar os presídios para delinqüir, sem as complicações da fuga. A Lei de Execução Penal permite no mínimo cinco saídas temporárias sem escolta, em épocas como do Dia das Mães e Natal. Por exemplo, na última Páscoa, a liberdade provisória abrangeu cinco dias, de quinta à segunda-feira. Apenas no Estado de São Paulo, saíram 10.937 condenados e não retornaram 851, numa porcentagem de 7,78%. No ano passado, dos 10.483 liberados temporariamente na Páscoa, 7,28% não retornaram, isto é, 763.
Durante o ano de 2004, ainda só em meu Estado, mais de quatro mil condenados não voltaram aos estabelecimentos prisionais ao longo daquelas saídas temporárias. Na última Páscoa, de nada adiantou o promotor público Antônio Baldin ter pedido à Justiça que não soltasse 85% da população carcerária do Instituto Penal Agrícola (IPA) de São José do Rio Preto, ou seja, 609 dos 720 presos ali recolhidos. O juiz Zurich Oliva Costa denegou, sob alegação de que os condenados poderiam rebelar-se. A saída dos apenados aconteceu no momento em que a Polícia procedia à reconstituição do homicídio praticado contra um empresário, em 2004, por presos daquele instituto no gozo do benefício.
Por pouco, pelo menos num dos crimes violentos de que se tem notícia com envolvimento de liberados na Páscoa, a saída deste ano também não se transformou em tragédia. José Dias Gomes, de 35 anos, um dos que deixaram o Instituto Penal Agrícola de São José do Rio Preto, havia arquitetado o seqüestro de dois funcionários de uma empresa promotora de festas na Zona Leste de São Paulo. Ele cumpre 18 anos de prisão no instituto e, ao sair, chefiou a quadrilha de seqüestradores que exigiu, como resgate, a entrega de todos os equipamentos de som daquela firma. Mas, graças a uma denúncia anônima, as vítimas foram localizadas e salvas pela Polícia. Estavam no cativeiro montado numa favela em que policiais-militares capturaram três dos seqüestradores, entre eles o chefe.
O panorama de insegurança e impunidade agravou-se ainda mais a partir de 1.º de dezembro de 2003, com a Lei n.º 10.792 que extinguiu o exame criminológico destinado a aferir a periculosidade residual dos presos. O exame era feito por uma junta de especialistas (psicólogo, psiquiatra e integrantes da direção do presídio), mas passou a ser substituído por um atestado de bom comportamento carcerário expedido pelo diretor do estabelecimento penal.
Houve manifestação favorável de respeitáveis criminalistas, entre eles o Dr. Alberto Zacharias Toron, que disse ser o fim do exame criminológico bem-vindo “porque dinamiza a execução penal”. Mas, para outros de igual renome, como o professor Luiz Flávio Gomes, “a extinção do exame é lamentável porque ele orientava muito o juiz e ajudava a decidir".
O então Procurador-Geral de Justiça de São Paulo, Luiz Antônio Guimarães Marrey, considerou em nome do Ministério Público o fato como “pernicioso porque permitirá que sentenciados passem de um regime de cumprimento de pena mais severo para um mais brando ou mesmo que consigam o livramento condicional sem se submeter a um exame que vai verificar se ele é perigoso ou não.”
Sábias palavras as do Dr. Marrey. Pouco tempo depois, um polêmico recurso submetido pelo Ministério Público de Minas Gerais ao Tribunal de Justiça mineiro veio demonstrar o seu acerto.
Em 1992, em Belo Horizonte, Wellington Gontijo Ferreira e o irmão, William, seqüestraram e mataram a menina Miriam Brandão, de 5 anos de idade, para exigir resgate. Mataram a refém por asfixia com éter. Esquartejaram e queimaram o seu corpo para dificultar a identificação. Wellington acabou condenado a 21 anos de reclusão e o irmão, a 32 anos. Recentemente, em entrevista à Rádio Itatiaia, William disse que Wellington não queria matar a garotinha: “só usou éter para ela parar de chorar”.
Pois bem, Wellington cumpriu 11 anos da pena e acaba de receber liberdade condicional. Mas, como última tentativa de impedir seu retorno às ruas, o promotor público Carlos Alberto Isoldi pediu que fosse submetido a exame criminológico, de maneira a se saber se ainda constitui uma ameaça. E criou-se a polêmica, pois o promotor entende que, embora a Lei n.º 10.792 tenha suprimido a exigência desse exame, ele continuaria a ser aplicado pelo artigo 83 do Código Penal ao "condenado por crime doloso, cometido com violência ou grave ameaça à pessoa". Todavia, o juiz Renan Chaves Carreira Machado recusou essa argumentação e o Ministério Público impetrou mandado de segurança no Tribunal de Justiça.
Posso relatar inúmeros outros casos em que os únicos a festejar decisões judiciais são os apenados. Seria enfadonho. Mas, um deles, recente em meu Estado, constitui exemplo que sintetiza os demais.
Leomiro Kniphoff da Rosa está condenado a 99 anos, 9 meses e 22 dias de reclusão por ter cometido um latrocínio, dois homicídios e doze roubos qualificados. Obteve absolvição em outros três processos por roubo, furto e receptação. Teve ainda sete processos arquivados.
Conforme consta da Execução Penal n.º 302.223, Leomiro foi capturado em 30/01/1986, aos 28 anos de idade. Em 2003, aos 47 anos, recebeu o indulto natalino. O alvará de soltura foi expedido em 23/07/2004. Mesmo abatendo as remições, restavam a ser cumpridos mais de 81 anos de pena. Entretanto, apesar de todas as condenações e processos, consta que ele é primário. Daí porque bastou cumprir quinze anos ininterruptamente de pena para ser beneficiado pelo indulto natalino concedido pelo decreto presidencial n.º 4.904 de 2003.
O representante do Ministério Público recorreu da decisão, porém, mesmo assim o preso foi posto em liberdade, porque, nos termos da Lei de Execução Penal, o recurso de Agravo não tem efeito suspensivo. Se esse apenado não praticar crime dentro de dois anos, o restante da pena será julgado extinto.
Há quem afirme que a extinção do exame criminológico ocorreu por influência do Excelentíssimo Ministro Márcio Thomaz Bastos, da Justiça. Mas, seria temerário responsabilizá-lo pelo sucedido, uma vez que diversas outras autoridades, como o secretário Nagashi Furukawa, da Administração Penitenciária (SAP) paulista, também pugnaram abertamente a favor da Lei 10.792.
Como todos os privilégios introduzidos na Lei de Execução Penal, a dispensa do exame criminológico veio favorecer uma aberração aritmética praticada no sistema prisional brasileiro. Ou seja: não há vagas para todos os condenados; mas, ao invés de construir presídios em número, condições de habitabilidade e de segurança coerentes com nossa trágica e emergencial realidade, prefere-se desafogar os estabelecimentos existentes, pondo nas ruas quem voltará ao crime. É a aritmética de libertar tantos apenados para que tantos outros possam ocupar essas vagas e, além disso, evitar rebeliões por superlotação. Aliás, tal raciocínio assemelha-se ao do juiz que, temendo uma rebelião, soltou 85% da população carcerária do IPA de São José do Rio Preto para comemorar a Páscoa.
A mesma linha de pensamento deixa à beira da extinção, por derradeiro, outro importante freio penal. Trata-se da Lei dos Crimes Hediondos, cuja derrocada se busca desde setembro último, através do mesmo esquema demolidor do exame criminológico. Vislumbra-se nisso o golpe de misericórdia em nossa segurança pública e no que resta do conceito de fazer justiça.
A Lei dos Crimes Hediondos tem o n.º 8.072. Entrou em vigor a 25 de julho de 1990, como resultado de amplo esforço deste Poder Legislativo para aplicar o disposto no artigo 5.º, inciso XLII, da Constituição. Configura tentativa de recuperar o caráter intimidador das penas reservadas aos piores tipos de criminosos e livrar a sociedade da ameaça direta desses monstros durante o maior tempo legalmente possível.
Por ela são considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Código Penal (Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940), consumados ou tentados:
homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, I, II, III, IV e V);
latrocínio (art. 157, § 3o, in fine);
extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o);
extorsão mediante seqüestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ 1o, 2o e 3o);
estupro (art. 213 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
atentado violento ao pudor (art. 214 e sua combinação com o art. 223, caput e parágrafo único);
epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o).
falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998).
Esse diploma legal estendeu o conceito de hediondo ao crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, tentado ou consumado. Todos esses delitos, acrescidos da prática de tortura, do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e do terrorismo, passaram a ser insuscetíveis de anistia, graça e indulto; fiança e liberdade provisória.
Mas, esses aspectos da Lei dos Crimes Hediondos não interessam aos que lutam para derrubá-la. A questão determinante da hostilidade reside na afirmação de que, em tais casos, a pena “será cumprida integralmente em regime fechado.” Configura, portanto, um obstáculo à aritmética de liberar tantos condenados para colocar outros tantos em seu lugar, ao invés de construir estabelecimentos “de segurança máxima, destinados ao cumprimento de penas impostas a condenados de alta periculosidade, cuja permanência em presídios estaduais ponha em risco a ordem ou incolumidade pública”, como determina a própria Lei dos Crimes Hediondos. Essa obrigação explícita ficou reservada ao Governo Federal, que nada fez até agora apesar de a lei já ter quase 15 anos. Haja vista para o caso do traficante “Fernandinho Beira Mar”, mantido atrás das grades graças ao apoio dado pelo governo paulista à União e ao Judiciário do Rio de Janeiro e de Minas Gerais.
Derrogar uma lei como a dos Crimes Hediondos, com o suposto objetivo de conter despesas ou para agradar facínoras e evitar que se rebelem na cadeia, agravará o contexto de vantagens já existentes, como indultos periódicos, "reclusão aberta", abolição do exame criminológico, encontros íntimos nas cadeias, teto de 30 anos para cumprimento do total das penas e assim por diante. É nesse contexto permissivo que uma traficante internacional pode atrever-se a posar em trajes sumários, na própria cela, para fotos eróticas destinadas a uma conhecida revista do ramo, como se viu no início desta semana pela televisão.
Uma vigorosa e fundamentada defesa da Lei dos Crimes Hediondos surgiu na Vara de Execuções Criminais e Presídios da capital paulista, através das palavras do juiz-corregedor Miguel Marques e Silva, responsável pelo cumprimento de penas na Capital e no presídio de Presidente Bernardes, onde estão confinados os principais integrantes do crime organizado no Estado de São Paulo. Informou o magistrado à imprensa que praticamente todos esses bandidos já cumpriram 1/6 da pena. Se a Lei de Crimes Hediondos for revogada, mesmo parcialmente, podem pedir à Justiça progressão para o regime semi-aberto com a única condição de obter da direção do presídio um atestado de bom comportamento carcerário. Ressaltou que “o fim da lei faria com que presos muito perigosos voltassem às ruas. Sem dúvida, seria uma ameaça à sociedade." Entre esses prováveis beneficiários encontra-se o traficante “Fernandinho Beira-Mar”.
"Quase todos esses chefes do crime ficam em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), um sistema mais rigoroso, em que praticamente não há como ter mau comportamento", acrescentou o juiz auxiliar da Vara de Execuções, Paulo Sorci.
Também o juiz Ivan Sartori, do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, disse aos jornais que o fim do exame dificultou muito a avaliação do magistrado. "Já vi um juiz dar sursis (suspensão condicional da pena antes de ser executada) para um roubo duplamente qualificado."
Na mesma linha de análise seguiu o presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), criminalista Luiz Flávio Borges D'Urso, ao afirmar: "Os efeitos da revogação seriam bombásticos e imprevisíveis. O ministro declarou que a revogação abriria vagas no sistema prisional. Mas que tipo de gente iria para as ruas só para abrir vagas nas penitenciárias?"
Desde 1989, funciona no Brasil o Instituto Latino Americano das Nações Unidas Para a Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (ILANUD), uma ONG que firmou Acordo de Cooperação com o governo brasileiro no "campo da prevenção do crime, do tratamento do delinqüente e da administração da justiça penal." Coincidentemente, se incrementou a partir daí a concessão de regalias aos criminosos presos. Ao mesmo tempo, começou a derrocada do sistema prisional e a escalada dos crimes violentos no País.
Agora, o ILANUD está assessorando o Governo Federal na investida contra a Lei dos Crimes Hediondos. Um dos argumentos da ONG, repetidos pelo Ministro da Justiça, baseia-se na taxa de encarceramento no Brasil que seria no ano passado de 164 presos por 100 mil habitantes, contra 74 presos em 1992. Haveria, por isso, demanda de 3,5 mil novas prisões por mês para suprimir um déficit de 100 mil vagas no sistema penitenciário brasileiro. Daí a necessidade de soltar mais e mais bandidos a toda hora.
Na verdade, essa deficiência de vagas é uma das conseqüências da inércia governamental desde 1992, quando o ILANUD já orientava boa parte da política prisional brasileira. Somente 13 anos depois, com o caos já instalado, seus especialistas descobriram a necessidade de 100 mil vagas e indicam agora o caminho para o precipício? O caso de "Fernandinho Beira-Mar", que ficou perambulando pelo território nacional até ser encontrada uma vaga numa penitenciária de segurança máxima em São Paulo, é o maior exemplo do padrão da “eficiência” produzido por aquela política criminal.
Nossa taxa de encarceramento é bem inferior à dos Estados Unidos, onde existem dois milhões de presos. O Brasil mantém cerca de 310 mil condenados nas prisões. Cerca de 1/3 cumpre pena em São Paulo. Desta fração, 1/4 cometeu crime hediondo, segundo estatísticas da Secretaria de Administração Penitenciária.
Nossa taxa perde também para as de outros países, como Portugal, Reino Unido e Chile. Em comparação com o Chile, por exemplo, o Brasil apresenta taxa de encarceramento 5% menor e índices de criminalidade seis vezes maiores.
Mas, de qualquer forma, as comparações em tal campo são duvidosas e perigosas devido à confusão de números criada por várias ONGs internacionais dedicadas ao assunto. Lutam até entre si para contrapor os resultados de suas pesquisas aos índices apresentados oficialmente pelos governos. Quase sempre pendem a favor dos criminosos, até contra as mais elementares evidências, para mostrar serviço e justificar os milhões de dólares arrecadados pelo mundo afora. Realmente representam uma indústria muito lucrativa.
Aceite-se ou não os argumentos que acabo de expor, investir contra a Lei dos Crimes Hediondos significa defender a libertação de assassinos, seqüestradores, estupradores, traficantes e torturadores ao término do cumprimento de 1/6 da pena. Poderão ganhar o regime semi-aberto que lhes permitirá movimentar-se à vontade para ameaçar testemunhas, vítimas e parentes de vítimas. Ou para delinqüir com crescente violência, como se tem visto com relação a bandidos sentenciados por crimes violentos não enquadrados como hediondos.
Os autores de delitos hediondos poderão favorecer-se ainda da chamada "execução provisória", já existente, pela qual o criminoso iniciou o cumprimento da pena no dia em que foi preso. Especialistas, como o Procurador de Justiça Rubens Rodrigues, afirmam ser bastante provável que esse tipo de criminoso impetre recurso e, devido à morosidade judicial, alcance o regime semi-aberto antes mesmo de estar definitivamente condenado. O procurador lembra que, "tendo o preso direito de trabalhar e remir a pena, ele pode, por exemplo, resgatar 1/6 da pena de latrocínio (é de 30 anos) e obter o regime semi-aberto em menos de cinco anos."
Outro aspecto reprovável do combate à Lei dos Crimes Hediondos é o de que se contrapõe frontalmente aos esforços dos governos estaduais, como o chefiado pelo Excelentíssimo Governador Geraldo Alckmin, para frear a criminalidade. O governador chegou a aconselhar os delegados de Polícia e os procuradores do Ministério Público a enquadrar os seqüestros-relâmpagos como extorsão mediante seqüestro, isto é, crime hediondo, para arrefecer o ímpeto dos seqüestradores, em crescimento alarmante desde que seus delitos passaram a ser tratados com roubo qualificado. A campanha do Governo Federal contra a Lei dos Crimes Hediondos anula no mínimo o efeito psicológico dessa medida.
Enquanto isso, um policial é morto no Brasil a cada período de dezessete horas. Só no primeiro semestre do ano passado, 281 policiais militares e civis aqui tombaram. Em igual período, nos Estados Unidos morreram 34; na Colômbia, em clima de guerra civil, 65; e no Reino Unido apenas um.
Como indicam a prática e o bom senso, quem resolve delinqüir com violência passa a respeitar só uma coisa: alguma força maior que a dele. Mas, infelizmente, chegamos a um estágio de tolerância irresponsável que faz do Brasil um país “onde empresário é tratado como bandido; bandido é tratado como trabalhador; trabalhador é tratado como vítima; vítima é tratada como lixo; e lixo não é tratado”, como lamenta o Sr. Jorge Damús, pai do jovem universitário Rodrigo, morto por assaltantes, entre eles um menor, que o atacaram ao parar num farol de trânsito da Avenida Giovanni Gronchi, no Morumbi, em São Paulo.
Sr. Presidente, Sras. e Srs. Senadores, o panorama de insegurança é dantesco, com tendência de piorar até que se resolva enfrentá-lo de frente, antes que corroa de vez o princípio da autoridade e possa ferir de morte o Estado democrático de direito.
Impedir essa tragédia está em nossas mãos, já que depende deste Congresso a reforma das leis em bases realistas. É este o meu apelo a todos os legisladores com assento no Senado Federal e na Câmara dos Deputados. Unamo-nos em autêntico mutirão para dar prioridade máxima a uma revisão da legislação criminal, principalmente da Lei de Execução Penal, de maneira a suprimir as falhas que, amanhã, transformarão o Brasil num país onde só a injustiça pode proliferar em segurança. Façamos justiça, enquanto é tempo.
Obrigado.