Discurso durante a 56ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Importância da obra "A Paz Perpétua: Um Esforço Filosófico", de Immanuel Kant. Urgência de mobilização internacional para o reforço do multilateralismo e a reforma da ONU.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL.:
  • Importância da obra "A Paz Perpétua: Um Esforço Filosófico", de Immanuel Kant. Urgência de mobilização internacional para o reforço do multilateralismo e a reforma da ONU.
Publicação
Publicação no DSF de 06/05/2005 - Página 13427
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL.
Indexação
  • REGISTRO, IMPORTANCIA, HISTORIA, PENSAMENTO, FILOSOFIA, CONTRIBUIÇÃO, NECESSIDADE, REVISÃO, RELAÇÕES INTERNACIONAIS, PAIS INDUSTRIALIZADO, PAIS EM DESENVOLVIMENTO, ATUALIDADE, DEFESA, REFORMULAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU).

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, registro, nesta intervenção, o transcurso de uma data de fundamental importância para ajudar a compreender o que se passa nestes tempos difíceis. No mês de abril, há 210 anos - mais exatamente no dia 5 de abril de 1795 - o filósofo Immanuel Kant, animado pela assinatura do Tratado de Paz de Basiléia, começava a escrever uma das obras mais lembradas quando se tem a paz por tema: À Paz Perpétua. Um Esforço Filosófico.

A assinatura do Tratado de Basiléia - e o filósofo bem o sabia - estava longe de significar a conquista de uma paz duradoura. Pelo tratado, a Prússia apenas deixava a coalizão formada com a Inglaterra e a Áustria que, por três anos, sustentara uma guerra contra a França revolucionária. Todavia, como filósofo e, portanto, como observador crítico e contumaz da realidade, Kant acompanhava com avidez os acontecimentos daquela Europa convulsionada pela revolução e pela guerra, e a assinatura daquele tratado lhe serviu de alento e também de estímulo para produzir uma reflexão sobre a ordem política, sobre a guerra e sobre a construção da paz. Até hoje, o pequeno opúsculo, escrito de forma que reproduzia a estrutura usual dos tratados de paz de seu tempo, continua sendo o mais lido e talvez o mais citado documento de reflexão filosófica sobre a paz.

Nestes tempos, em que o tema da guerra e da paz voltou a se fazer presente em nosso cotidiano e as incertezas na ordem internacional se afiguram crescentes, é preciso voltar nossos olhos para os fundamentos e para as obras de reflexão que possam iluminar nosso entendimento.

A particularidade dessa obra de Kant, que derivava de suas concepções filosóficas, é que a paz não deveria ser vista como um ideal a ser atingido apenas num futuro tão remoto que nunca se alcançaria, mas também não poderia ser produto do simples desejo de paz. Para Kant, a paz era um processo complexo e difícil e tinha uma dimensão essencialmente moral. Era algo a ser construído por meio de muito trabalho e do lento, mas contínuo, aprimoramento das instituições humanas que pudessem efetivamente assegurar uma ordem cada vez mais justa e pacífica. Escreveu Kant:

O homem quer concórdia; mas a natureza sabe melhor o que é bom para a sua espécie, e quer discórdia. Ele quer viver comodamente e na satisfação; a natureza, porém, quer que ele saia da indolência e da satisfação ociosa, que mergulhe no trabalho e nas contrariedades para, em contrapartida, encontrar também os meios de se livrar com sagacidade daquela situação” (Idéia de uma História Universal com um Propósito Cosmopolita, 1784, Quarta Proposição).

Para Kant, essa é a sina do homem. Se deseja a paz, terá de construí-la com muito esforço e dedicação. Instituições como a ONU, criadas para organizar a convivência entre povos, não são obras acabadas. Os avanços são lentos e a simples existência de um tratado não constitui garantia suficiente de sua eficácia. O homem é imperfeito e é preciso que as instituições sejam completadas e aperfeiçoadas ajudando, dessa forma, a conter muitos de seus impulsos que podem ser até mesmo autodestrutivos.

Também constitui ponto fundamental de À Paz Perpétua outra noção crucial para este nosso tempo: a noção de que há uma estreita relação entre democracia e paz. A chamada cláusula democrática está presente nos principais arranjos internacionais de nosso tempo; está presente na Carta da ONU, nas disposições da OTAN, na constituição da União Européia, nos tratados do Mercosul e na Comunidade de Nações da América do Sul, criada no ano 2000 - em reunião de Cúpula realizada em Brasília, dos chefes de Estado e de Governo dos 12 países da América do Sul sob a coordenação do então Presidente Fernando Henrique Cardoso, da qual tive a oportunidade de participar. Se nos tempos de Kant as convulsões internas de uma nação invariavelmente repercutiam sobre a comunidade internacional, neste nosso mundo de relações globalizadas as questões econômicas, políticas e sociais que se verificam no plano doméstico também se enlaçam de forma muito mais de acordo com o jogo de forças no meio internacional.

Apesar de tudo, em nenhuma das entidades internacionais já estabelecidas está presente o princípio ou o direito de intervenção para assegurar a democracia mas, tal como em Kant, essas entidades reconhecem que a democracia constitui um fundamento da paz e da ordem. Com efeito, se de um lado, entre os artigos preliminares da Paz Perpétua, Kant inclui a cláusula que diz que “nenhum Estado interferirá na constituição e no governo de outro Estado”, também, por outro lado, entre as três disposições que o filósofo chama de “artigos definitivos” para a paz, a primeira delas estabelece que “a constituição civil de todos os Estados deve ser republicana”. A expressão “republicana” no texto de Kant equivale claramente ao sentido que hoje atribuímos ao termo “democrático”. É, portanto, possível dizer que, em parte, essa lição do filósofo deveria ser transferida para a rede de instituições de que hoje o nosso mundo dispõe para regular a convivência internacional, mas também é imprescindível compreender que há muito por se fazer.

Esse otimismo moderado de Kant nos ajuda a olhar com esperança o mundo e as instituições que, com muito esforço, foram moldadas e construídas. É preciso, no entanto, ter em mente que a vitalidade e o aprimoramento da democracia por meio de instituições formalmente constituídas dependem da ação e da dedicação continuada dos cidadãos e, principalmente, de suas lideranças. Entre as lições deixadas pelo filósofo, talvez seja esta uma das mais importantes: se queremos a liberdade, os direitos individuais e a promoção de uma sociedade mais justa temos de fazer por merecê-la, e é preciso que esses valores sejam promovidos como parte integrante da própria sociedade internacional. Com certeza foi essa a razão por que, quando morreu, em 1804, seus contemporâneos julgaram que o que de mais apropriado podiam fazer era lembrar esse profundo sentido de compromisso moral do filósofo.

Atualmente, o sistema internacional tem se modificado e algumas instituições como o GATT, hoje transformado na OMC que se converteu - algo muito positivo - num órgão que busca assegurar regras universais de livre comércio. Todavia outras organizações ainda enfrentam dificuldades para se acomodar a essa realidade cambiante.

É sabido que no meio internacional há dois princípios fundamentais que norteiam - ou se presumem - as relações entre os estados: o da soberania e o do multilateralismo. Ambos se apresentam igualmente importantes para assegurar a existência de valores que entendemos essenciais para a nossa vida em sociedade: a liberdade, os direitos de cidadania e o respeito à diversidade religiosa e cultural. A grande dificuldade é que nem sempre os princípios da soberania e do multilateralismo se apresentam como complementares ou harmônicos. Particularmente quando se trata de questões mais críticas envolvendo diretamente a segurança e outros interesses mais essenciais para as nações, a dificuldade de harmonizar esses dois princípios torna-se maior.

Entende-se por que sentimos a necessidade de buscar em pensadores como Kant alguma luz que oriente nossas escolhas. É dever das nações zelar por sua soberania mas, ao mesmo tempo, em especial em nossos dias, emerge também o dever de procurar um novo multilateralismo mais adequado às necessidades deste mundo de relações globalizadas.

Não é apenas em questões como o das finanças, do comércio, do meio ambiente, ou do desenvolvimento científico e tecnológico que um autêntico processo de globalização deve ensejar políticas comuns. Também em questões preocupantes como o terrorismo, o narcotráfico ou a lavagem de dinheiro uma ação integrada entre as diferentes sociedades constitui uma dimensão inescapável. Enfim, tanto no âmbito da ONU quanto em outras instâncias do sistema internacional é preciso buscar um novo multilateralismo mais condizente com uma comunidade internacional mais solidária.

Nas últimas décadas - fácil é comprovar - não houve redução das desigualdades entre as nações mas é de se reconhecer, esses problemas tornaram-se muito mais pervasivos e, cada vez mais, afetam tanto as nações pobres quanto as mais poderosas evidenciando a necessidade da cooperação internacional como requisito básico para a abordagem eficaz de qualquer problema relevante na esfera internacional. Mesmo dentro das nações mais poderosas como os Estados Unidos muitos pensadores influentes como Joseph Nye tem chamado a atenção para esse fato sendo o título de um de seus livros mais recentes bastante revelador dessa preocupação: O Paradoxo do Poder Americano: Por Que a Única Superpotência do Mundo Não Pode Prosseguir Isolada (2002).

            Assim, entendo que a reforma da ONU ou qualquer iniciativa no âmbito da comunidade internacional deveria levar mais em conta essa nova realidade que demanda novos padrões para a cooperação internacional. A simples modificação na composição deste ou daquele órgão - conquanto necessária - não me parece suficiente. É preciso que o debate sobre reformas das instituições internacionais contemple também aspectos estruturais e de procedimentos. O debate torna-se assim, obviamente, muito mais complexo.

A crise de nossos tempos parece ser maior do que as das gerações que nos precederam, embora o mundo tenha sempre vivido, com maior ou menor intensidade, graves problemas. A história mostra que viver tempos difíceis não é privilégio de nenhuma geração. O descompasso entre os fatos e a nossa compreensão é que nos deixa perplexos e angustiados.

Isso nos faz lembrar o que disse o escritor Charles Dickens em um dos seus mais famosos romances, Uma História de Duas Cidades, cujo pano de fundo é a Revolução Francesa, com uma reflexão sobre as dimensões contraditórias daqueles tempos: “Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos. Era uma idade de sabedoria, era uma idade de estupidez. Era uma época de fé, era uma época de descrença. Era um tempo de luzes, era um tempo de escuridão …”

Creio que as palavras de Dickens se aplicam perfeitamente ao nosso tempo. Quando mais se acreditava que a democracia e a liberdade finalmente poderiam seguir em crescente expansão, os atentados terroristas surgiram como um alerta sombrio, lembrando, mais uma vez, ao mundo que a ordem vigente não é uma unanimidade e, como ensina Kant, a paz é um processo dinâmico com o qual devem estar indelevelmente comprometidas todas as nações e todos os atores sociais e políticos. A tarefa é difícil, mas é necessário que o debate sobre a reforma das instituições internacionais seja posto em outras bases. É preciso rever também a amplitude e o alcance de ações das organizações internacionais e a própria natureza do processo decisório levando-se em conta sempre o delicado equilíbrio entre o princípio da soberania e as demandas de um mundo de relações globalizadas. Esse é, sem dúvida, o maior e também o mais inadiável desafio dos líderes da nossa comunidade internacional.

Os albores do novo século, como geralmente acontece no transcurso de datas paradigmáticas, pareciam anunciar o advento da convivência pacífica entre os povos que se integravam mercê, entre outras conquistas, do desenvolvimento das tecnologias da informação e do conhecimento. Mas a força inspiradora de idéias como as de Kant não encontram grande ressonância nem sensibilizam os atores da cena internacional.

A ONU, criada para ser uma instância ensejadora da paz e da segurança internacionais, perde relevância na solução dos contenciosos em função do recurso de grandes potências à ação unilateral, em flagrante menoscabo aos objetivos fixados no estatuto da própria Organização. Ademais, a Carta de São Francisco, escrita tendo como fundamento a idéia de que as relações internacionais seriam regidas exclusivamente pelos estados nacionais, se vê ultrapassada pelo fato de que, em nossos dias, há entes não-estatais - por exemplo, ONGs, grandes corporações empresariais transnacionais, bem como movimentos terroristas e de narcotraficantes - que ocupam espaço destacado na vida dos povos.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, urge, assim, que os líderes da comunidade internacional se mobilizem no sentido de reforçar o multilateralismo e ao mesmo tempo busquem dar prioridade à reforma da Carta da ONU para torná-la mais compatível com as exigências dos novos tempos. A propósito, lembre-se que o Secretário-Geral da ONU Kofi Annan, em pronunciamento este ano, anunciou um conjunto de medidas destinadas a reforçar a Instituição, dando-lhe mais capacidade operacional, acolhendo, entre outras, sugestões do Clube de Madri, destinado a tratar de questões sobre “Democracia, Terrorismo e Segurança”, constituído por ex-chefes de estado e governo e coordenado pelo ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso.

Enfim, “a paz”, já se disse, “é o equilíbrio em movimento” e só será obtida como resultado de uma tessitura política capaz de solucionar os grandes problemas - abertos ou latentes - que constituem os contenciosos da agenda internacional.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 06/05/2005 - Página 13427