Discurso durante a 60ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Considerações sobre a postulação do Brasil a ocupar a Diretoria-Geral da Organização Mundial do Comércio - OMC.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA INTERNACIONAL. POLITICA EXTERNA.:
  • Considerações sobre a postulação do Brasil a ocupar a Diretoria-Geral da Organização Mundial do Comércio - OMC.
Publicação
Publicação no DSF de 13/05/2005 - Página 14570
Assunto
Outros > POLITICA INTERNACIONAL. POLITICA EXTERNA.
Indexação
  • ANALISE, HISTORIA, POLITICA INTERNACIONAL, HEGEMONIA, PAIS ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), EXCESSO, INTERFERENCIA, MUNDO, AGRUPAMENTO, INTERESSE, PAIS INDUSTRIALIZADO, PRIMEIRO MUNDO.
  • REGISTRO, EXISTENCIA, QUESTIONAMENTO, GOVERNO ESTRANGEIRO, ESTADOS UNIDOS DA AMERICA (EUA), APROXIMAÇÃO, BRASIL, PAIS ESTRANGEIRO, CHINA, AMEAÇA, CONCORRENCIA, MATERIA-PRIMA, MERCADO.
  • COMENTARIO, HISTORIA, POLITICA EXTERNA, BRASIL, ANALISE, CANDIDATURA, CONSELHO DE SEGURANÇA, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), DIRETORIA GERAL, ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMERCIO (OMC).
  • DETALHAMENTO, LUTA, INTERESSE, ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DO COMERCIO (OMC), TENTATIVA, PRIMEIRO MUNDO, MANUTENÇÃO, DESEQUILIBRIO, PROTECIONISMO, CRITICA, FALTA, TRANSPARENCIA ADMINISTRATIVA, AFASTAMENTO, CANDIDATO, GOVERNO BRASILEIRO.
  • ELOGIO, POLITICA EXTERNA, BRASIL, FIDELIDADE, INTERESSE, MELHORIA, ORDEM, AMBITO INTERNACIONAL.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores,

     Com o fim da Guerra Fria e a decomposição da União Soviética, os Estados Unidos da América tornaram- se a única superpotência. Dotados de um poder econômico, militar e político muitas vezes superior ao das demais unidades do sistema e auto-legitimados pela convicção da superioridade de seus valores morais, políticos e econômicos, os Estados Unidos sentem-se no direito de estabelecer as normas e implementá- las para todo o conjunto do sistema. Como todo império, ainda que no sentido figurado do termo, os EUA confundem sua ordem interna com a ordem internacional: atribuem a seus valores e a suas normas primazia sobre todo o demais e, nesse entendimento, consideram que devem prevalecer acima de qualquer outra consideração.

     Mas os Estados Unidos não estão sozinhos. Representam o ápice de uma estrutura de convergências de interesses fundamentais, da qual participam as grandes potências européias, juntamente com aquelas que aspiram a integrar-se ao sistema europeu; o Japão; o Canadá; a Austrália e a Nova Zelândia; assim como os novos países industrializados da Ásia. Esse agrupamento de nações está dotado de um imenso poder.

     Essa é, em linhas muito gerais, a perspectiva histórica sob a qual se torna possível compreender o funcionamento do atual sistema internacional. Sob essa perspectiva, há dois fatores que são percebidos pelos EUA como ameaças mais diretas a sua estrutura de poder: (1) os fundamentalismos religiosos e nacionalistas; e (2) a ascensão da China, pelo que representa para as grandes nações industriais na competição por matérias primas e mercados.

     Devido às vinculações que está desenvolvendo mais ativamente em diferentes planos com a China e com a Índia, o Brasil passou a despertar certa inquietação.

     Nas instruções a Ruy Barbosa sobre a Conferência de Paz da Haia, Rio Branco estabeleceu a linha que, de uma forma ou de outra, continua a nortear nossa política exterior. Escreveu o Barão: na defesa de nossos direitos devemos atuar com “firmeza, moderação e brilho, atraindo para nosso país as simpatias dos fracos e o respeito dos fortes”. Quão simples e ao mesmo tempo quão profundo o sentido desta admirável sentença de Rio Branco!

     Não tem sido outra a linha seguida pelo Brasil nos grandes momentos de sua participação nos eventos internacionais. Cito, a título de exemplo, a I Guerra Mundial; nossa altiva política na Liga das Nações; nossa participação na II Guerra Mundial; nosso distanciamento (interrompido apenas ocasionalmente) da confrontação ideológica entre os EUA e a URSS; nossa recusa em integrar alinhamentos automáticos; nosso comprometimento profundo com as grandes causas do desenvolvimento econômico e social; nosso ativo envolvimento no debate dos chamados temas globais; nossa atuação no tema da dívida externa; nossa participação nos debates sobre comércio internacional desde os primórdios do GATT. E assim por diante.

     E sob esse pano de fundo que devemos interpretar as grandes linhas da política externa brasileira ora em curso e, em particular, duas iniciativas que tem merecido ampla repercussão: a renovada postulação do Brasil a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU e nossa candidatura ao cargo de Diretor-Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC).

     A pretensão brasileira de assento permanente no Conselho encontra suas origens remotas na atuação do Brasil na Liga da Nações, da qual nos retiramos em 1926 por termos sido pretetícios pela Alemanha (justamente o país que viria a deflagrar a II Guerra Mundial) na reforma do Conselho. Voltamos ao tema por ocasião do estabelecimento da ONU em 1945. Nossas pretensões foram frustradas na Conferência de São Francisco devido à oposição da União Soviética, ao empenho da França (apoiada pelo Reino Unido) de manter seu status de Grande Potência, assim como às reticências dos Estados Unidos.

     Ao longo das décadas que se seguiram, propugnamos pela reforma da Carta para adaptar a ONU às novas realidades que emergiam no mundo. Eu mesmo, em meu último discurso como Presidente do Brasil perante a Assembléia Geral, em 1989, propugnei pela criação de novos assentos de membros permanentes, para que a multipolaridade do mundo que então se desenhava fosse refletida no Conselho de Segurança, habilitando-o a exercer mais adequadamente suas responsabilidades.

     Da mesma forma, o pleito do Brasil de ocupar a Diretoria Geral da OMC reflete nosso interesse permanente na estabilidade e no aprimoramento do sistema multilateral de comércio, assim como nossa determinação de assegurar que os temas do desenvolvimento sejam adequadamente contemplados.

     Desde a criação da OMC, em 1995, estamos convictos da necessidade do cargo ser ocupado por um representante dos países em desenvolvimento, como o Brasil. Nos dois Governos anteriores o Brasil já havia manifestado interesse no cargo de Diretor Geral da Organização. No Governo Itamar Franco, acenamos com a indicação do Embaixador Rubens Ricupero. No Governo Fernando Henrique Cardoso, sondamos a possibilidade de que o então Chanceler Luiz Felipe Lampreia se postulasse ao cargo.

     Ano passado, aberto o processo sucessório na OMC, o Governo lançou a candidatura do nosso Representante em Genebra, o Embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa. Diplomata experiente, Embaixador no México, na Espanha e na Argentina, com duas passagens pela Secretaria Geral do Itamaraty, o embaixador Seixas Corrêa participara das negociações que conduziram ao estabelecimento do Mandato de Doha e fora, juntamente com o Ministro Celso Amorim, um dos principais articuladores do G-20, esta grande coalizão de países em desenvolvimento, liderada pelo Brasil, na companhia de Índia, China e África do Sul.

     É bom lembrar que o G-20 se formou justamente para evitar que, sob pressão do então Presidente do Conselho Geral da OMC e atual candidato do governo do Uruguai ao cargo de DG, tosse concluído, em Cancun, um acordo sobre agricultura negociado a portas fechadas pelos EUA e pela UE, totalmente lesivo aos interesses dos países em desenvolvimento.

     O anúncio da candidatura do Brasil fez com que a UE desistisse de apoiar um intermediário como era o representante uruguaio e que a França lançasse, em nome da LTE e, certamente, com o beneplácito dos EUA, o nome do ex-Comissário de Comércio tia União Européia Pascal Lamy.

     A França é um país amigo e grande parceiro do Brasil, mas, ao mesmo tempo, um dos mais protecionistas e mais resistentes a progressos na negociação agrícola, e o senhor Lamy foi o negociador do acordo, a portas fechadas, com os EUA nas vésperas de Cancun. Recentemente, também, andou insinuando a necessidade de se colocar a Amazônia sob gestão coletiva da comunidade internacional. Por outro lado, antes de anunciar formalmente o nome francês, Bruxelas instigou o anúncio da candidatura do Ministro do Comércio das Ilhas Maurício, país totalmente dependente das preferências da UE e, por sinal, grande adversário do Brasil no pleito que suscitamos na OMC sobre o açúcar. O objetivo do lançamento do candidato de Maurício era claro: afastar a África e o Caribe do candidato brasileiro.

     Mais uma vez, as grandes potências se uniram ao perceber que sua hegemonia, no caso sobre o sistema multilateral de comércio, poderia ser ameaçada pela indicação de representante de um grande país em desenvolvimento, apoiado pela China e pela Índia, imune a pressões e comprometido com as grandes causas do desenvolvimento. Fizeram uso de artimanhas processuais para afastar o candidato brasileiro logo no primeiro turno. Tudo ocorreu como de costume na OMC. Com pouca transparência, mediante uma consulta concebida e interpretada sob uma metodologia dedutiva: havendo-se fixado objetivo de eleger o Senhor Pascal Lamy, porque representa a continuação da hegemonia dos interesses das grandes potências, ajustaram-se aos fins pré-concebidos os métodos de consulta e a avaliação de seus resultados que, de resto, não foram divulgados sequer aos candidatos.

     Como os organismos financeiros internacionais estão em mãos dos representantes dos países desenvolvidos, dado que o Banco Mundial é sempre controlado por um norte-americano e o FMI por um europeu, a se concretizar a eleição do representante francês para a OMC, amplia-se o desequilíbrio de poder. E isto num momento crucial para a implementação dos grandes objetivos que partilhamos de erradicação da pobreza e promoção do desenvolvimento econômico e social em escala planetária. Prevaleceria, mais uma vez, a lógica do poder e da estratificação da macroestrutura internacional.

     Era sabido que, se o candidato brasileiro passasse o primeiro turno, chegaria à final em posição de ganhar a eleição. A imprensa européia, até então reticente quanto às possibilidades do candidato da França, comentou, nos últimos dias, que a eliminação do candidato brasileiro tornou Pascal Lamy favorito. Aqui, no entanto, insiste-se em críticas imediatistas, sem levar conta que, em política, quando se acredita numa causa, quando se defende um ideal, uma aparente derrota é, muitas vezes, o prenúncio de vitórias que não tardarão em chegar.

     O Brasil fez o que deveria ter feito. Testamos, novamente, os limites do sistema e sua permeabilidade para absorver no plano institucional a emergência dos grandes países em desenvolvimento. Fomos fiéis aos nossos interesses, coerentes com a nossa história e consistentes na visão do lugar que o Brasil deve ocupar no mundo. Este foi o nosso êxito.

     A condução de nossa política externa pelo Presidente Lula tem seguido o caminho traçado por Rio Branco. Lula é hoje uma referência tanto diante da opinião pública mundial quanto diante das grandes lideranças internacionais. Ele tem sido a voz das reivindicações por uma nova ordem, da solução do problema da dívida ao encaminhamento da paz.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 13/05/2005 - Página 14570