Discurso durante a 80ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração do Dia Mundial pela Erradicação do Trabalho Infantil.

Autor
Heloísa Helena (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/AL)
Nome completo: Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. LEGISLAÇÃO TRABALHISTA.:
  • Comemoração do Dia Mundial pela Erradicação do Trabalho Infantil.
Publicação
Publicação no DSF de 11/06/2005 - Página 19351
Assunto
Outros > HOMENAGEM. LEGISLAÇÃO TRABALHISTA.
Indexação
  • HOMENAGEM, DIA INTERNACIONAL, ERRADICAÇÃO, TRABALHO, INFANCIA.
  • APREENSÃO, NOCIVIDADE, EFEITO, CONDIÇÕES DE TRABALHO, CRIANÇA, CARVOEIRO, JORNALEIRO, EMPREGADO DOMESTICO, TRABALHADOR, FABRICA, TIJOLO, EMPRESA DE FUMO, LIXO, FLORESTA, SISAL.

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Primeiro, quero saudar o Senador Cristovam Buarque pela iniciativa, abraçar e saudar a presença de todas as autoridades, dos representantes das forças vivas da sociedade que conosco partilham este momento tão especial no Senado da República. Claro que a conjuntura nacional tem sido muito vinculada ao combate à corrupção, algo que é extremamente importante de se fazer porque quando os delinqüentes de luxo, ao parasitar o espaço público, saqueiam os cofres públicos, eles saqueiam também os recursos destinados a minimizar a dor, o sofrimento e a tortura implacável de milhares de crianças e pais de famílias do nosso País.

Eu conversava com o Senador Cristovam Buarque, com o Senador Paulo Paim e com a Senadora Lúcia Vânia e dizia que, todas as vezes em que olho para este cartaz, que mostra os pezinhos de várias crianças submetidas ao trabalho e pergunta “Para onde caminham estes pés?”, sempre fico tentada a responder que caminham na direção do que elas trazem nas mãos. Se elas trazem nas mãos o lápis e o livro, eles têm um destino; se elas trazem nas mãos a enxada, o crack, a arma, eles têm outro destino, completamente diferente.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, uma frase formuladora para dizer qual é a saída talvez fosse: emprego para os pais e escola para os filhos. Talvez fossem todas as ações concretas e eficazes, toda a disputa orçamentária que não é apenas colocar recursos no Orçamento, mas brigar, de forma implacável, para que a liberação de recursos não seja um verdadeiro balcão de negócios sujos para agradar uma ou outra personalidade política, mas tudo isso que faz parte do Congresso Nacional. Por quê? Porque as frias estatísticas oficiais apresentam histórias de vidas que estão sendo destruídas, histórias de vidas destruídas das nossas crianças brasileiras.

Nesse sentido, fiz questão, com o que eu me lembrava e com o que vivenciei, de trazer um pouco da experiência, assim como a Senadora Lúcia Vânia fez, em relação ao ambiente onde essas crianças estão.

Quem já foi a uma carvoaria sabe o que é: é o barraco de lona, é o ambiente sufocante, é aquela rotina de enche forno, tira forno; carregam imensos balaios de carvão para ensacar, é aquele gancho, aquele garfo enorme de ferro que, muitas vezes, é muito maior do que todas as crianças que estão lá separando as pedras de carvão. São crianças jogadas dentro de um imenso buraco negro que mais parece a cratera de um vulcão.

No canavial, no canavial também da minha querida Alagoas, são as menininhas e os menininhos que acordam às quatro horas da manhã, na madrugada, quando os nossos filhos estão dormindo, aquecidos. E eles vão para a caldeira: é a pele inchada, é o calor de 60º, é o corpo todo marcado de queimaduras, é o menino cambiteiro na poeira, na palha cortante, no calor, na pressão, pés descalços, roupa velha, os meninos e meninas da cana-de-açúcar, que de doce tem apenas o nome e a riqueza dos usineiros. As crianças com seus acidentes mutiladores, com a foice, com o facão, com a enxada.

As crianças do serviço doméstico, as menininhas que servem quase que de brinquedo, como o brinquedo que elas não têm. E fazem todo o trabalho exaustivo, repetitivo, as menininhas trabalhadoras domésticas, que são usadas para iniciação sexual dos filhos dos donos da casa. E é por isso que uma das coisas, Senador Paulo Paim - a Polícia Federal está fazendo uma operação em Alagoas para prender alguns ratos de terno e gravata que roubam merenda escolar - pelas quais eu mais estou brigando, e pressionando, é para prenderem os outros. Porque, infelizmente, aqueles prefeitos ou amigos de prefeitos que, no meu Estado, roubaram merenda escolar, os que patrocinam pedofilia, Senador Tião, estão soltos, porque têm padrinhos políticos mais fortes e mais poderosos. Então, é essencial prendê-los, porque, além de roubar a merenda das crianças, além de roubar a sua dignidade, a sua sexualidade, ainda permanecem soltos. Isso é absolutamente desprezível e deplorável.

As crianças que estão nas plantações, mãos infantis marcadas pelo ácido da laranja, crianças que, muitas vezes, bem pequenininhas, de um ano, dois anos, estão lá se rastejando nas plantações porque a mãe não tem onde deixar o filho, não tem a creche, não tem a escola para deixar o filho. São essas mesmas crianças que estão aplicando veneno, colhendo folhas para o chá, colhendo frutas, semeando e plantando o que elas nunca vão poder comer. Às vezes, quando elas conseguem se desviar rapidamente do olho do gerente que esta lá na plantação, elas limpam na sua roupinha pobre, suja, aquele veneno branco que fica ao redor do tomate e comem apressadamente, porque elas não têm nem o direito de comer. Elas estão lá. Chegam cedo, enchem o máximo de caixas. É uma dor nas costas tão grande que, quando chegam em casa, nem paciência, nem tolerância, nem saúde para fazer algo relacionado à escola elas têm mais.

As meninas e os meninos que trabalham nas louças e porcelanas, com suas mãozinhas delicadas, fazem aquelas louças tão bonitas, que, certamente, na sua casa, jamais uma delas entrará. Quando se entra no ambiente de fabricação das louças, vê-se aquele pozinho fino e branco, aparentemente delicado. Como sabe V. Exª, Senador Tião Viana, esse é o pó da sílica, que depois estará petrificando os alvéolos pulmonares, cortando a respiração de quem os inala. E quando, de tal forma, corta a respiração, jeito já mais não há para superar a doença.

As meninas e os meninos das olarias, produzindo as cerâmicas, estão lá alimentando o moinho de argila, sobrepondo os tijolos na esteira, mantendo a lenha no forno, carregando cimento e pedrisco na betoneira, levando, em pesados carrinhos de mão, os blocos para secar; estão lá britando pedras, talhando paralelepípedos, vendo os cartuchos de pólvora para fragmentar a pedra, com tal violência e força, que solta lasca para todos os lados, e elas inalam todo o tempo o pó que, com certeza, as mutilarão para o resto da vida.

As crianças do fumo. O suco do fumo colando na pele. Estão lá, amarrando em manocas, transportando fumo para secar na estufa, contaminando-se com agrotóxico, colhendo, com dor implacável, aquelas folhas de fumo que ficam lá embaixo, nas baixeiras. E, quando elas chegam em casa, a dor é tamanha que elas não conseguem nem sequer dormir direito.

As crianças pelas madrugadas, para distribuir jornal. E aí elas dormem na rua, porque têm que dormir na rua para não perder o ponto de venda. E, muitas delas, quando dormem na rua, o travesseiro é um amontoado de jornal, das informações a que elas nunca vão conseguir ter acesso, conquistar o conhecimento, porque a maioria delas também não consegue aprender a ler.

As crianças dos lixões. Às vezes, disputando o que comer nos lixões, as crianças começam logo a aprender qual é o material que o deposeiro valoriza. Então, a criança já sabe o que é que serve, quanto custa a latinha de cerveja ou de refrigerante, quanto é que custa a garrafa de plástico branca ou colorida.

As crianças que vão correndo atrás dos blocos de Carnaval, quase que desesperadamente, para conseguir juntar um maior número de caixinhas.

As crianças que estão lá no mau cheiro insuportável, na combustão do lixo, entre milhares de moscas, cortando os pés, as mãos, sofrendo quedas, atropelamento dos tratores, humilhações as mais diversas. As meninas que estão lá, sonhando achar uma linda boneca no meio do lixo.

As crianças das florestas da região do Senador Tião Viana, que tantas vezes já disse nesta Casa o quanto se emocionou de ver uma criança de três anos de idade quebrando castanha, com os olhos queimados pelo óleo da castanha. As crianças que estão lá, deslizando nas florestas, são tão rápidas deslizando nas florestas que, dizem alguns, parecem até os duendes da floresta, porque elas vão rapidamente, fazem as estrias para fazer o sulco nas florestas, põem lá rapidamente o saco plástico, para que consigam o mais rápido possível fazer a resina escoar. Depois, elas estão com as mãos grudentas de tanta goma e do ácido que é usado para passar nas áreas e fazer a resina descer com mais rapidez. Depois, elas usam óleo diesel para limpar a mão, retirar a resina. E ficam lá, com as mãozinhas marcadas, quase que para sempre, as mãos grudentas da goma.

As meninas e meninos das fábricas de sapato, cheiradores oficiais de cola. No início, sentem dor de cabeça, tontura, uma fraqueza muito grande. Às vezes, euforia no primeiro momento; depois, marcas implacáveis no sistema nervoso e imunológico, que carregarão para sempre. Algumas estão lá fazendo belos pespontos, trançados, lixando, e a mãe diz: “É melhor furarem os dedos, Heloisa, do que ficarem sendo maconheiros nas ruas.” Como se o destino dessa criança pobre fosse sempre esse, ou o quartinho de empregada, ou vender o corpo por um prato de comida ou estar nas ruas sendo tragado pelo narcotráfico.

As crianças do sisal, como bem lembrou a Senadora Lúcia Vânia, sei o que é. O meio do pó asfixiante, aquela coceira insuportável que dá, carregando as folhas de sisal, as folhas que fazem arranhões, muitas vezes para sempre, por causa das folhas cortantes, as fibras descascadas que botamos para estender, para secar. Muitas perdem a mão no motor, o dedinho no motor, porque o botador que opera a máquina nem sempre é um adulto. E elas estão lá, catando buchas, amarrando fibras e faltando o fôlego. Às vezes, falta tanto o fôlego que, no outro dia, elas não conseguem voltar.

Sr. Presidente, Srs. Senadores, algumas pessoas perguntam: como é que essas crianças agüentam? Por ser a sociedade tão desumana, também as pessoas vão se desumanizando. Qual a criança que não gostaria de ter um brinquedo bonito? Qual a criança que não gostaria de manusear as páginas delicadas de gravuras lindíssimas e maravilhosas? Tantas crianças que estão aí produzindo verniz, tinta, tantas outras resinas que estarão ilustrando as gravuras que os nossos filhos poderão ver, e a grande maioria das crianças nunca poderá tocar.

Fórmulas mágicas nem necessárias são. Precisa é do Estado: o Estado brasileiro, as forças vivas da sociedade, as organizações da sociedade para possibilitar isso. Talvez nem necessário fosse nenhuma fórmula mágica, mas existe algo que é absolutamente concreto: quais as alternativas que buscaremos para fazer? Elas já existem, não precisam de nenhuma fórmula mágica, de nenhum projeto faraônico, nada. O que tem de conhecimento acumulado já é o suficiente para que possamos dizer: a saída é simples. Não é fácil porque, muitas vezes, as políticas econômicas dos países preferem encher a pança dos banqueiros, não conter a voracidade do capital financeiro, enquanto promovem dor, miséria, desemprego e sofrimento para a grande maioria dessas crianças.

E, como disse certa vez um grande filósofo, há muito tempo, quando perguntamos por que essas crianças não choram, talvez a resposta esteja lá. O filósofo dizia que a dor moderada solta as lágrimas. A dor grande e profunda as enxuga. Congela. Seca.

            Espero que não precisemos ficar vendo mais lágrimas, dor e sofrimento das nossas crianças submetidas às mais desprezíveis e deploráveis formas de massacre da sua dignidade como criança. Como nós já dissemos várias vezes nesta Casa, a infância roubada não pode ser substituída. Nunca ela vai ser substituída. Em qualquer outra fase da vida, se não conquistamos o que queremos, em outro momento a realidade objetiva pode até possibilitar a conquista. Mas a infância não pode ser restituída em nenhuma outra fase da vida. A infância perdida, a infância roubada jamais poderá ser restituída na alma, no coração e na mente de uma criança. (Palmas.)


Este texto não substitui o publicado no DSF de 11/06/2005 - Página 19351