Pronunciamento de José Sarney em 13/06/2005
Discurso durante a 81ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal
Homenagem pelo transcurso do centésimo aniversário de nascimento de Adáuto Lúcio Cardoso.
- Autor
- José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
- Nome completo: José Sarney
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- Homenagem pelo transcurso do centésimo aniversário de nascimento de Adáuto Lúcio Cardoso.
- Publicação
- Publicação no DSF de 14/06/2005 - Página 19443
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- REGISTRO, HISTORIA, GOVERNO, GETULIO VARGAS, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, ELOGIO, MEMBROS, BANCADA, OPOSIÇÃO, GOVERNO FEDERAL, RESPEITO, DIFERENÇA, NATUREZA POLITICA.
- HOMENAGEM, CENTENARIO, ANIVERSARIO DE NASCIMENTO, ADAUTO LUCIO CARDOSO, EX-DEPUTADO, EX MINISTRO, SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF), ELOGIO, HISTORIA, VIDA PUBLICA, DEFESA, INTERESSE NACIONAL.
O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, talvez as minhas palavras sejam destoantes deste momento que vive a política brasileira e da paixão com que os oradores freqüentam nossas tribunas.
Há, no nosso cenário, uma garoa cobrindo a vida política brasileira. Poderia até lembrar-me de Mário de Andrade quando, na “Paulicéia Desvairada”, fala da garoa do meu São Paulo. Ele termina dizendo assim: “Garoa, sai dos meus olhos”.
As minhas palavras são destoantes, porque elas se destinam a falar de um tempo passado, de um Parlamento passado, do Parlamento que eu vivi. Penso que quem não olha a História e não olha para o passado pode correr um grande risco de não avaliar bem o presente e de não decifrar os tempos futuros.
Eu me sinto, de certo modo, nesta Casa, obrigado a ser o guardião da memória dos homens do meu tempo. Este ano temos o centenário de algumas figuras imensas da política brasileira, que passam quase que silenciosamente, como se estivessem condenadas apenas àquele silêncio tumular dos Anais da Casa.
Já falei nesta tribuna de Aliomar Baleeiro, que completou cem anos de nascimento. Hoje, quero relembrar uma outra grande expressão da política brasileira que, no dia 24 de dezembro, completou cem anos de nascimento. Refiro-me a Adauto Lúcio Cardoso, um dos homens mais brilhantes que conheci em minha vida, com um caráter que era, sem dúvida, uma fortaleza. Era um homem que dificilmente aceitava composições, que não tergiversava em suas decisões. Era duro, um lançador de dardos que atingiam o coração de seus adversários.
Eu, muito jovem, chegava ao Rio de Janeiro, à Câmara dos Deputados. O Rio de Janeiro daquele tempo era ainda uma cidade que vivia os estertores da belle époque. Era uma cidade que brilhava. E no centro de todas as atenções do Rio estava a Câmara dos Deputados, no Palácio Tiradentes. Era um tempo em que a história brasileira se contorcia. Vínhamos do suicídio de Vargas; vínhamos da luta pela ascensão ao poder de Juscelino Kubitschek; vínhamos da doença do Café Filho, vínhamos da deposição do Presidente Carlos Luz, e o Congresso refletia esse tempo.
Fundada na luta contra Vargas, a União Democrática Nacional era um conjunto de tendências e de partidos que compunha um leque que ia desde João Mangabeira, da esquerda democrática socialista, até todas as correntes de direita e radicais, forças que se uniam ainda para combater, como tinham combatido a ditadura Vargas, que foi, sem dúvida, uma ditadura das mais cruéis já vividas neste País. A sua polícia política liquidou, matou todos os adversários do regime e quem mais sofreu na sua carne foram, sem dúvida, os partidos ideológicos, o maior de todos o Partido Comunista do Brasil. Getúlio tinha, inclusive, anulado por um decreto uma sentença do Supremo Tribunal Federal. Assim, o País não tinha segurança, não tinha instituições, não tinha justiça, nem a quem recorrer, porque o Presidente podia modificar as decisões judiciais.
Mas depois, em 1955, quando cheguei ao Rio de Janeiro, fiquei absolutamente preso de um encantamento extraordinário, porque via que eram de carne e osso as figuras da minha admiração, da minha veneração. E olhava desfilar no plenário do Palácio Tiradentes Otávio Mangabeira, Prado Kelly, depois vi Milton Campos, Aliomar Baleeiro, Adauto Lúcio Cardoso, Carlos Lacerda, Lúcio Bittencourt, Vieira de Melo, Mário Martins, pai do nosso jornalista Franklin Martins, Arthur Virgílio, pai do Arthur Virgílio, Raimundo Padilha, Afonso Arinos, Capanema, Agripino e tantos mais.
Era uma Casa em que a luta política tinha à frente o talento daqueles que a enfrentavam. Os valores morais eram presentes de tal modo que o respeito mútuo entre o Governo e a Oposição se estabelecia pela conduta de cada um a se comportar dentro da Câmara dos Deputados. Era a Câmara de meu tempo, em que comecei minha vida pública no Rio de Janeiro.
O grande líder que tinha costurado a UDN era Virgílio de Melo Franco, que depois foi até assassinado. Esse assassinato ocorreu de maneira sombria e até hoje é motivo de algumas perplexidades e dúvidas. A seu lado estava seu irmão Afonso Arinos de Melo Franco, o grande Afonso Arinos, que também este ano vai completar seu centenário de nascimento. Afonso Arinos, homem a que algumas vezes ainda assisti nesta tribuna - veio para Brasília e foi Senador -, visitou todos os campos do conhecimento. Mais de cem livros escreveu, cem obras publicou, no Direito Civil, Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Tributário. Grande historiador, escreveu sobre a influência dos índios brasileiros na Revolução Francesa, escreveu tratados de Direito Constitucional, aquela história do Banco do Brasil - que não é uma história do Banco do Brasil, mas uma história da economia brasileira -, depois a Formação Econômica do Brasil. Todos livros clássicos. Afonso, nas suas memórias - A alma do tempo -, teve a oportunidade não só de escrever fatos pessoais, mas de escrever a história do seu tempo.
Dentro desse quadro estava um homem extraordinário, que se chamava Adauto Lúcio Cardoso. Posso dizer, com a memória decantada pelo tempo: ninguém, dos homens que conheci, muitos brilhantes e de talento, o excedeu na coragem e na bravura cívica. Adauto era aquela impávida fortaleza moral que a Casa respeitava, quase um temerário, e os exemplos de sua vida assim mostraram.
Por exemplo, quando...
(O Sr. Presidente faz soar a campainha.)
O SR. PRESIDENTE (Tião Viana. Bloco/PT - AC) - V. Exª dispõe de mais seis minutos.
O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Quando, em 1961, da renúncia de Jânio Quadros, Adauto Cardoso era um bravo lutador dentro da Casa, ele era um inimigo sem quartel do Jango Goulart, de toda aquela situação. Adauto era um combatente que não deixava um só dia de vergastar, com a sua luta, com a sua palavra, com a sua bravura, aquela situação política.
Vem a renúncia. Os Ministros militares impedem a posse de João Goulart. Naquela Casa, cheia, em um dia de comoção, como aquele que eu presenciei e vivi, vem um homem de cabelos brancos, aquele mesmo lutador que, dia e noite, não perdoava o Jango de nada, entra com um papel na mão, atravessa aquele corredor e diz: “Sr Presidente, este papel pede a V. Exª mandar prender os três Ministros militares”. A sua consciência moral era muito maior do que a sua consciência política. Eram assim os homens daquele tempo!
Adauto, então, tornou-se Vice-Líder da UDN. Ele fora vereador no Rio de Janeiro. Quando o Senado diminuiu as funções da Câmara de Vereadores, Adauto renunciou ao seu mandato, que era sua maneira de protesto.
Depois vem para a Câmara, era Deputado, líder, meu líder, meu amigo. Na Câmara, ele exerce essa mesma posição de bravura, essa mesma coragem que marcou a sua personalidade. Em um desses momentos, no Rio de Janeiro, quando a União Nacional dos Estudantes promovia um protesto contra o aumento das tarifas dos bondes, Adauto sai, em companhia de Mário Martins, enfrenta os policiais e, à frente dos estudantes, é espancado e preso. Mas ele volta com a mesma coragem, com a mesma luta. Essas coisas mostram a sua personalidade.
Vamos citar outro exemplo de Adauto Lúcio Cardoso. Vêm os anos de 64. Adauto acreditava que o Brasil precisava mudar. Ele acreditava que a revolução tinha vindo para realmente purificar os costumes políticos e restaurar a democracia na sua plenitude. Ele não negava os valores democráticos, ele pregava sobre a realização imperfeita desses valores.
Pois bem, Adauto, em 1964, é eleito Presidente da Câmara. Ele vai ao Presidente Castelo Branco e diz: “Aceito assumir a Presidência da Câmara, mas quero que o senhor assuma o compromisso de não haver cassações, porque eu não aceitarei cassações como Presidente da Câmara”. Adauto era um homem conhecido como quem apoiava os ideais que levariam a revolução ao poder. O Presidente resolveu cassar quatro deputados. Adauto estava no Rio de Janeiro, voltou à Presidência da Câmara e disse aos Deputados que, enquanto ele ali estivesse, não seriam vítimas de qualquer restrição ao uso de seus direitos. Não reconheceu a cassação.
Em seguida, a Comissão de Constituição e Justiça, em relação aos companheiros daqueles homens que eram cassados, curvou a cabeça e aceitou que esse ato fosse legitimado pelos atos institucionais. Adauto não curvou a cabeça. Veio à Presidência e disse: “Eu defendi os mandatos dos Deputados, mas se eles, seus amigos e a Comissão de Constituição e Justiça reconhecem essa violência, renuncio à Presidência da Câmara dos Deputados”. E renunciou à Presidência da Câmara dos Deputados.
Depois, Adauto também não permitiu que os Deputados saíssem da Casa. Permaneceu ali, garantindo a presença de todos eles. E forças embaladas invadiram o Congresso. Naquela escada que dá acesso do segundo andar ao plenário da Câmara dos Deputados, ele estava de pé. Quando o comandante da tropa chegou, ele enfrentou: “Aqui estou como representante do poder civil”. E o militar contestou: “Aqui estou como representante do poder militar”. Adauto replicou: “Então, pela força, entre no Congresso, mas jamais com a minha complacência ou o meu reconhecimento”. E renuncia à Presidência do Congresso.
Esse era o Adauto Lúcio Cardoso.
Façamos justiça a um homem como o Presidente Castelo Branco, que pensava que a revolução vinha para que fosse a democracia restaurada imediatamente. Se não fosse ele, naquele momento, a revolução teria desbancado para uma grande quartelada.
Adauto fez tudo isso, e, quando surgiu uma vaga no Supremo Tribunal Federal, o então Presidente Castelo Branco o convidou para ser Ministro do STF. Ele foi, então, para o Supremo Tribunal Federal. Naquela Corte, ele era o mesmo homem que conhecemos nesta Casa. Ele lá não tergiversou, ignorando os seus ideais, a sua conduta e os valores que ele acreditava serem da Democracia, para se submeter. Foi ele quem deu habeas corpus ao líder estudantil Vladimir Palmeira. Foi ele quem deu vários habeas corpus a perseguidos políticos. Foi ele quem restringiu a interpretação das leis autoritárias.
Finalmente, quando veio o ato adicional estabelecendo a censura prévia para publicação sobre livros e periódicos, o Adauto Cardoso, Ministro da Corte Suprema, também não aceitou. A imprensa toda chamava aquilo de “a lei da mordaça”. E o Procurador-Geral da República aceitou que era um ato revolucionário, não podia ser submetido à Justiça. As editoras queriam a revogação deste Ato.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu que aquilo era um ato do poder discricionário e que eles não tinham nada a fazer. Adauto, sozinho - ele, sozinho - foi voto vencido e disse “Mas eu não permanecerei numa Corte em que eu tenha que me submeter a essa decisão”. Tirou a sua toga, a pôs na cadeira e foi para a sua casa até o dia da sua morte.
Era esse o homem cujos cem anos de nascimento hoje estamos relembrando nesta Casa. Ele passou aqui como um exemplo. Como eu disse - quero repetir -, não conheci ninguém que tivesse a coragem, a bravura, o destemor, a consciência moral acima de qualquer interesse político, de qualquer contingência política, como ele.
Pois eram esses os parlamentares do meu tempo. Portanto, tenho o dever de lembrar, nesta Casa, o centenário de Adauto Lúcio Cardoso já não mais com saudade, porque essas são saudades mortas, mas vendo-o como se ele fosse pedra - não mais o homem -, estátua, aquela que o tempo não destrói e que permanece como exemplo vivo dos grandes homens que passaram pela política brasileira.
A glória parlamentar vive de instantes, de lampejos, às vezes do simples aparte, outras vezes de um discurso, outras vezes do silêncio. Há, na câmara dos comuns, o famoso exemplo de um deputado que fez um único discurso, o primeiro, tão brilhante, que não quis mais falar durante todo o tempo que permaneceu no parlamento, porque ele mesmo dizia que não poderia se superar. Mas entrou para a história parlamentar inglesa com um único discurso.
Pois bem, a política, por outro lado, não tem hierarquia vertical. Somos todos iguais. Ninguém dá ordem de cima para baixo em ninguém, mas há uma hierarquia subjacente que é feita pela compostura, pelo talento. Todos, sendo iguais, ficamos na mesma linha, mas os que se vão distinguindo por esses valores mais altos vão criando um bico de flecha, ocupando a frente. São esses os nossos exemplos, exemplos que lembro da minha juventude, do tempo em que fui jovem deputado no Rio de Janeiro. Aquela coluna que avançava não tinha somente os meus amigos do mesmo Partido, mas de todos os Partidos, com o seu brilho, com a sua seriedade, com a sua dignidade.
Portanto, com esses valores e nesse tempo, evoco a figura singular de Adauto Lúcio Cardoso, santo da minha devoção.