Discurso durante a 85ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Aspectos técnicos do projeto de transposição das águas do Rio São Francisco.

Autor
Teotonio Vilela Filho (PSDB - Partido da Social Democracia Brasileira/AL)
Nome completo: Teotonio Brandão Vilela Filho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA DO MEIO AMBIENTE.:
  • Aspectos técnicos do projeto de transposição das águas do Rio São Francisco.
Publicação
Publicação no DSF de 18/06/2005 - Página 20296
Assunto
Outros > POLITICA DO MEIO AMBIENTE.
Indexação
  • QUESTIONAMENTO, NATUREZA TECNICA, PROJETO, GOVERNO FEDERAL, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO.
  • NECESSIDADE, CONTINUAÇÃO, DIVERSIDADE, PROJETO, IRRIGAÇÃO, PISCICULTURA, CONSTRUÇÃO, CANAL, RECUPERAÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, ANTERIORIDADE, IMPLANTAÇÃO, TRANSPOSIÇÃO, AGUA.
  • QUESTIONAMENTO, DIVERSIDADE, DADOS, REFERENCIA, VOLUME, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO, POSSIBILIDADE, UTILIZAÇÃO, IRRIGAÇÃO, ENERGIA ELETRICA, NAVEGAÇÃO, TRANSPOSIÇÃO, MANUTENÇÃO, ECOSSISTEMA.
  • COMENTARIO, NOCIVIDADE, EFEITO, TRANSPOSIÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO, REDUÇÃO, PRODUÇÃO, ENERGIA ELETRICA, AUMENTO, CUSTO, AGUA, DESTINAÇÃO, POPULAÇÃO.
  • CRITICA, GOVERNO FEDERAL, OMISSÃO, CUSTO, PROJETO, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO, MANIPULAÇÃO, DADOS, ATENDIMENTO, INTERESSE, NATUREZA POLITICA, DESRESPEITO, CONSTITUIÇÃO FEDERAL, COMITE, GESTÃO, BACIA, RIO.

O SR. TEOTONIO VILELA FILHO (PSDB - AL. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, ocupo a tribuna na manhã de hoje, para dar continuidade aos pronunciamentos que venho fazendo sobre a Transposição do Rio São Francisco. Como prometi, hoje abordarei aspectos técnicos para demonstrar equívocos claramente detectáveis no projeto do governo.

Se o que se pretende, com a transposição, é um grande projeto de irrigação, também válido e legítimo, por que não concluir, antes, os projetos do gênero paralisados praticamente na beira do rio, por alegada falta de recursos? Por que esterilizar recursos escassos em obras que apenas começam, jamais terminam e nunca produzem?

Repito que só às margens do Rio pararam as obras de 150 mil hectares de perímetros irrigados, alguns iniciados há mais de dez anos. Pararam as obras do Canal do Sertão, em Alagoas.

Previsto para três etapas, este canal deverá levar água do Rio São Francisco, renda e desenvolvimento para 27 municípios alagoanos da mais pobre de todas as nossas regiões. Com essa obra, vamos garantir a mais de 700 mil alagoanos do semi-árido água tratada para o consumo humano, irrigação em milhares de hectares às margens do canal, produção de alimentos para o consumo regional e para a exportação, viabilização da pecuária e aumento da oferta de alimentos através da introdução da piscicultura. Tão importante é o Canal do Sertão para Alagoas e para o Nordeste que o Governo Fernando Henrique a considerou estratégica para o Brasil. Mas tudo está parado. Tudo foi contingenciado.

Não se trata de achar que Minas, a Bahia ou Pernambuco, por exemplo, tenham mais direito à irrigação que o Ceará ou o Rio Grande do Norte. Mas se trata do bom senso administrativo e da lógica econômica de que, antes de iniciar qualquer investimento, sobretudo um investimento de quase 7 bilhões de reais, é preciso primeiro concluir as obras que já foram iniciadas, algumas muito perto da conclusão.

Quem defende essa lógica irrefutável é o próprio Presidente da República. Em fevereiro desse ano, na cidade de Surubim, interior de Pernambuco, ele jurou que não começaria uma obra nova sem antes concluir os projetos paralisados. Disse o presidente, textualmente, criticando antecessores: "no Brasil se criou a cultura de que é preciso deixar a cara do governante na obra. E isso faz com que, muitas vezes, a gente tenha lido na imprensa brasileira o cemitério de obras paralisadas no nosso país". Mais adiante, insiste o presidente Lula: "o que eu disse ao companheiro Ciro Gomes, eu disse ao companheiro Humberto Costa, quando assumiu a Saúde: eu não quero um hospital novo, sem antes a gente estar fazendo funcionar todos aqueles que já existem no país". O que mudou de fevereiro até aqui, senão o calendário, que está mais apertado, aproximando o presidente do juízo final das eleições do próximo ano?

O que mudou? Mudou a lógica administrativa ou mudou, antes, a necessidade eleitoral do Governo, que precisa, urgentemente, de uma bandeira, pelo menos, para se apresentar ao Nordeste rural no pleito do ano que vem? O que mudou? o bom-senso de aplicação racional do minguado recurso público ou a constatação tardia do governo de que precisa, ao menos, de um discurso para compensar o fato real de que nada, rigorosamente nada fez no semi-árido nordestino?

Mas sempre se poderá dizer: se a obra do canal está pronta, ao invés de uma vazão mínima de 26,4 metros cúbicos/segundo, por que não transpor a vazão máxima de 127 metros? Ou até mais, se a obra física já está pronta? Entra aqui um dos pontos mais polêmicos do projeto. O São Francisco tem mesmo água para isso?

Quem conhece o rio, quem conhece o tema garante que não. Garante com números atuais e com dados históricos. Em seu primeiro plano diretor, a recém-surgida Codevasf observava, há 30 anos, que o Vale do São Francisco oferecia 3 milhões de hectares irrigáveis, dentro da tecnologia disponível naquela época. Mas o Plano só previa a irrigação de 450 mil hectares por falta d´água. Hoje o potencial irrigável é estimado em 8 milhões de hectares, mas o Vale tem apenas cerca de 340 mil hectares efetivamente em produção. Faltam investimentos, mas sobretudo falta água. Mas falta mesmo? Como admitir essa escassez, se a gente sabe que o rio despeja no mar, a cada segundo, quase 2 mil metros cúbicos? Essa percepção enseja mais engodos.

O São Francisco desce com uma vazão regularizada de 1.850 metros cúbicos por segundo. Mas o próprio Ibama considerou o volume de 1.300 metros cúbicos/segundo como vazão mínima para garantir os ecossistemas da foz do rio, a pesca e a navegação. Depois de considerar outros usos e perdas, há um consenso entre os técnicos de que o São Francisco tem hoje uma vazão alocável de apenas 360 metros cúbicos/segundo.

O mais grave é que 93% de toda essa água já foi disponibilizada por instâncias do próprio governo para os fins mais diversos: são exatos 335 metros cúbicos outorgados, o que, ao final, representa uma disponibilidade de meros 25 metros cúbicos/segundo. Esse volume é inferior à vazão mínima pretendida pelo projeto, que é de 26,4 metros cúbicos/segundo.

Haverá quem possa dizer, e com razão, que esse volume outorgado não é inteiramente utilizado, mas é verdade, também, que muitos grandes projetos de irrigação já foram ou estão em fase de implantação com canais e bombas instaladas para transportar o volume outorgado.

Haverá quem defenda, e com razão, uma imediata revisão dos processos de outorga. É verdade, é possível e é preciso revisá-los. É possível que a revisão recomende seu cancelamento. É uma hipótese, mas somente uma hipótese. É absurdo que o Governo monte um projeto de 7 bilhões de reais baseado numa hipótese e numa suposição. Ou será que o Governo pretende simplesmente cancelar tudo o que fez, deixando de repente sem água todos os projetos industriais, agrícolas e de abastecimento já autorizados ao longo dos anos? Será?

Os números conhecidos e aceitos sobre a vazão alocável do São Francisco compõem um cenário inquietador. O consumo de água pra irrigação, no próprio Vale, vem crescendo, nos últimos dez anos, a uma taxa anual de 4%, o que, em 20 anos, já representará o dobro do consumo. Não é preciso ser vidente para afirmar que haverá conflitos inevitáveis entre os usuários nos próximos anos. O projeto de transposição só irá agravá-los.

Ninguém está falando, até aqui, na geração de energia, que tem sido, hoje, a principal destinação estratégica das águas do São Francisco. O Brasil investiu 13 bilhões de dólares para explorar o potencial total de geração de 10.484 MW, que hoje correspondem a 85% de toda a energia consumida no Nordeste inteiro.

Os dados sobre o consumo regional registram um crescimento de demanda de energia de 2 pontos percentuais acima da variação do PIB regional. No ano passado, o consumo cresceu 6% e vem crescendo, nos últimos anos, em patamares próximos a esse. Qualquer técnico advertirá para o inevitável: nos próximos 12 anos, é preciso dobrar a oferta de energia no Nordeste, apenas para manter os níveis atuais de crescimento. E registre-se que os níveis de desenvolvimento do Nordeste estão longe de reduzir as diferenças regionais com o sudeste e o sul, e mal permitem evitar a absoluta estagnação econômica da região.

No momento em que se vislumbra a necessidade de dobrar a oferta regional de energia, o projeto de transposição acena com a retirada do mercado de 400 MW, pouco menos de 4% da produção do São Francisco. De fato, a transposição significa gerar 200 MW a menos e consumir 200 MW a mais para o transporte da água por 720 quilômetros e recalques de até 304 metros.

Quanto custará essa água só Deus sabe, porque tudo sabe. Os estudos oficiais não fazem qualquer referência detalhada aos custos de transporte e bombeamento da água. Mas os técnicos do Governo e de instituições privadas arriscam uma estimativa: a água transposta vai custar pelo menos cinco vezes mais que a água atualmente posta à disposição dos nordestinos. Essa constatação leva a duas perguntas inevitáveis: os custos serão inteiramente repassados aos usuários ou haverá subsídios públicos? Nesse caso, quem os pagará, os Estados que mal conseguem bancar suas folhas de pessoal, ou o governo federal?

Se a conta for para os usuários, me permito uma outra dúvida: quem conseguirá irrigar com competitividade utilizando água cinco vezes mais cara? Ou serão os usuários urbanos que pagarão a fatura das roças de melão e dos viveiros de camarão? O projeto não registra uma só linha sobre o custo da água, menos ainda sobre quem o pagará.

O Brasil corre o risco de investir R$ 7 bilhões para transpor uma água que não vai chegar ao fim da linha e irrigar produtos inviabilizados por seu custo. O Brasil terá desperdiçado R$ 7 bilhões, mas como no bordão de um antigo programa humorístico da televisão, o presidente da república terá feito seu comercial...

Não há como fugir de uma grave constatação adicional. Os números do projeto de transposição mudam de documento a documento. São uns no Estudo de Impacto Ambiental, já diferem no Relatório de Impacto Ambiental. De um documento do Ministério da Integração para um discurso do presidente da República a população supostamente beneficiada já cresce em 2 milhões de habitantes. O próprio Ministro da Integração muda de discurso e, sobretudo, muda de enfoque de acordo com o auditório. 

Quando acham pouco a vazão mínima de 26,4 metros cúbicos/segundo, os defensores da transposição trabalham com a vazão máxima sonhada, de 127 metros cúbicos/segundo, mesmo omitindo que essa vazão máxima só acontecerá quando a barragem de Sobradinho estiver cheia, em apenas quatro a cada dez anos.

Se o auditório questiona o volume d'água retirado do rio, aí se trabalha com a vazão mínima. Um só item permanece rigorosamente o mesmo em todas as declarações do Ministro da Integração: o governo federal só construirá o canal central. Tudo o mais será responsabilidade dos Estados. 

Mas me permito de novo questionar: com que recursos, se esses mesmos governos não têm como sequer distribuir a água já acumulada em seus estados? Com que dinheiro vão fazer adutoras, sistemas de distribuição de água para a água transposta, se em muitos casos não conseguem sequer atender aos municípios vizinhos a seus grandes açudes?

Há uma inegável sensação de que o governo federal quer uma bandeira eleitoral, não importa se transfere para os estados o pesado ônus econômico de fazer obras sem lastro orçamentário. Responda quem puder: o que o governo federal está investindo em abastecimento d'água no semi-árido nordestino? Atrevo-me a estender a pergunta: o que o governo lula está investindo em água mesmo nas grandes cidades nordestinas?

O que se vê é o mesmo quadro, de Minas à Paraíba, de Alagoas ao Ceará: todo o investimento em água e saneamento básico feito hoje no Nordeste é de responsabilidade dos próprios estados, que tomaram dinheiro emprestado na Caixa Econômica, pagando juros, correção monetária e tudo o mais a que só os bancos têm direito.

Em Alagoas, por exemplo, pararam as obras das adutoras do sertão e do agreste, que tiravam água do São Francisco para abastecer municípios ribeirinhos. Parou por completo o projeto de revitalização do Rio São Francisco, por falta de recursos - e a revitalização é essencial para garantir água e trabalho para dezenas de municípios ribeirinhos dos sertões. 

Todos os projetos de exploração econômica do baixo São Francisco estão paralisados e prejudicados. O projeto de piscicultura baseado em Penedo, por exemplo, tem um potencial de produção de 200 mil toneladas de pescado a cada ano. Lá produzimos a melhor tilápia do mundo. Chegamos a produzir 15 toneladas, mas quando o projeto estava para deslanchar, parou tudo: a produção já caiu para 4 toneladas no ano passado. Só Deus sabe quanto se poderá produzir este ano...

Faça-se um registro de justiça ao Governo Lula: não há, no caso, qualquer discriminação em relação à água. O governo parou tudo. Com exceção única das obras do aeroporto, custeadas pela superavitária Infraero, todas, rigorosamente todas as obras federais em Alagoas foram paralisadas pelo Governo Lula. O Governo Federal não as toca, o Estado não tem como reiniciá-las. Desgraçadamente, o investimento feito está se perdendo.

Faltam recursos, diz o mesmo Governo que pretende, agora, iniciar um investimento de R$7 bilhões para fazer o que hoje já não está conseguindo por falta de dinheiro: distribuir água a quem tem sede, permitir a irrigação a quem quer plantar. Lamento que faltem mais que recursos, faltam compromissos.

Nesta casa mesmo, questionei o vice-Presidente José Alencar, que por muito tempo coordenou o projeto de transposição, sobre o sentido de começar essa obra quando o baixo Vale do São Francisco estava penalizado com a paralisação de todos os seus projetos. Está nos anais do Senado a garantia do vice-presidente da República de que a transposição só seria iniciada quando os projetos do Baixo São Francisco estivessem concluídos. O vice-Presidente Alencar também foi enganado. Nessa questão, como na questão dos juros que não param de subir, o Vice José Alencar é voto vencido e voz desprezada. Para sofrimento do Brasil.

Faltam compromissos, mas falta também respeito. O Governo desrespeita o Comitê da Bacia, que desaprovou a transposição para outro uso que não o abastecimento humano e animal. O governo desrespeita normas institucionais, quando abre concorrências sem sequer ter, ainda, a aprovação dos órgãos de defesa do meio-ambiente. O governo semeia a confusão institucional, quando decide unilateralmente questões obviamente multilaterais, como a destinação das águas de um rio que banha cinco estados brasileiros.

Nesse caos institucional criado, que dirá o Governo Federal se um Estado como Minas resolver gerir por conta própria seus rios e riachos caudatários do São Francisco, por exemplo? E se amanhã Minas ou Bahia resolverem barrar os afluentes do São Francisco, comprometendo sua vazão, sua navegabilidade e os projetos a jusante?

Todos dirão que, para decidir e normatizar questões como essas, existe um Comitê de Gestão da Bacia, criado por uma legislação que representou um inegável e aplaudido avanço institucional em nossa política de recursos hídricos. Mas eu lhes pergunto: que conselho, se o próprio governo federal o atropela hoje para impor seu capricho? Que conselho, que lei, que harmonia institucional sobreviverá se tudo está sendo atropelado pelo próprio Governo que deveria preservá-los?

A transposição, como está posta, não passa, infelizmente, de um projeto eleitoreiro, porque não atende a urgências nem prioridades, porque violenta o bom senso administrativo e a lógica econômica, porque desperdiça recursos, porque mistifica e engana o País inteiro. Poucas vezes, ao longo de nossa história, um governo se dispôs, com igual cinismo, a manipular tão descaradamente a emoção do País e, pior ainda, instrumentalizar de forma tão inescrupulosa a sede e a miséria de milhões de sertanejos.

Só a história poderá dimensionar o prejuízo que essa aventura orçamentária trará para o Nordeste e os nordestinos. Sabe o Governo, sabe o seu partido que estão enganando o Brasil quando afirmam, pela televisão, que esse projeto vai acabar com a sede e com a miséria do Nordeste. E quando já no próximo verão e na próxima seca, de novo o Nordeste se levantar pedindo carros-pipas e assistência emergencial? O que dirá o Brasil, a não ser que a região é inviável e um poço sem fundo de investimentos sem retorno? Quem pagará por esse crime de lesa-Nordeste?

Volto ao ponto de partida desse pronunciamento. Ninguém poderá ser contra levar uma cuia d'água a quem tem sede. Quem o ousaria? Ninguém poderá ser contra a pretensão absolutamente legítima do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco de se desenvolverem, criando oportunidades de trabalho e de renda para seus agricultores. Ninguém poderá criticar o anseio de todos estados pelo desenvolvimento econômico e social de sua zona rural. Mais que simples pretensão, este é um direito legítimo e absolutamente inquestionável.

Respeito e defendo, igualmente, que o Governo, qualquer governo, eleja suas bandeiras eleitorais. Mas se o Governo Lula pretende mesmo levar água ao semi-árido, se ele quer mudar o destino dessa região, que faça o que é lógico: tome os R$700 milhões destinados à transposição, este ano, e faça, de fato, a interligação entre açudes, a distribuição da água acumulada nos reservatórios do semi-árido nordestino, construa adutoras, cisternas, sistemas simplificados, poços, chafarizes, pontos de abastecimento para a população difusa.

Ele entrará para a história como o presidente que mudou, radicalmente, não apenas a face do semi-árido, mas o destino do Nordeste. A transposição, ao contrário, só o marcará como protagonista da teimosia mais cara e da aventura mais custosa de toda a nossa história.

Por mais que se tenha dito, jamais será bastante repetir, até para que o governo o ouça e assimile: o que falta no Nordeste não é água, presidente. O que falta é política de água. A chuva do início do ano passado fez daquele o mais chuvoso dos últimos 90 janeiros. As águas destruíram cidades, estradas, pontes, casas e plantações. A água escoou, desceu pelos rios, entrou pelos mares, drenando esperanças, deixando rastros de destruição.

Poucos meses depois, já era verão, já era seca, exigindo carro-pipa para levar aos sertões a água que não soubemos captar.

Apesar de tudo, água temos, em milhares de pequenos e grandes açudes, alguns quase oceânicos, como o Castanhão e o Orós, o Armando Ribeiro Gonçalves e o Coremas mãe-d’água, para citar apenas os que acumulam mais de 1 bilhão de metros cúbicos. Água temos. Mas como não temos política de água, temos cidades com sede bem à margem dos grandes açudes. Lavouras apenas de sequeiro à beira de verdadeiros oceanos de água doce e quase nas barrancas do próprio São Francisco. Faltam a todos recursos para distribuir a água, levando-a às torneiras das casas ou aos pivôs de irrigação.

Por que, então, não complementar essas obras que já estão prontas? Por que iniciar outra que nem se sabe se dará para terminar? Mas com certeza se sabe que não dará pra funcionar? Por que? Por mais que me pergunte, por mais que os questione, não consigo responder: por que?

Mesmo nascido na zona da mata de Alagoas, onde o verde pinta o horizonte o ano inteiro, aprendi com o sofrimento do sertanejo que a água tem para nós um sentido absolutamente especial e mágico. Não é à toa que as casas das fazendas nordestinas são todas voltadas para o rio ou o açude, pois nenhuma paisagem será mais cara ao sertanejo que a da água acumulada.

Só quem nasceu nos sertões, só quem viveu ou testemunhou a saga da lata d'água disputada com animais em barreiros lamacentos, só quem já bebeu lama mais que água, poderá sentir em sua alma o significado de uma chuva, de um rio cheio ou de um açude transbordando. Para qualquer brasileiro, será apenas mais uma cena da natureza. Para o nordestino, será mais um milagre da vida.

Lamento, e como lamento, ter que mostrar a esta Casa que o Nordeste corre o risco de desperdiçar um investimento de R$7 bilhões, que jamais teve, esterilizando tantos recursos em uma obra economicamente inviável, tecnicamente questionável e socialmente discutível. Lamento, e como lamento, que na hora em que o Nordeste tem a chance de conseguir um investimento que poderia mudar sua face e seu destino, corra antes o risco de tudo perder. Pior ainda, de atrair para si a descrença e o desencanto mais absoluto por parte do resto do País.

Espero, e como espero, que Lula, o Presidente-retirante, reveja esse projeto e destine os recursos que reservou para a transposição, para fazer o que o Nordeste espera e exige: distribuir a água que já tem. Recurso público, presidente, não se desperdiça. E com água não se brinca. E se querem desperdiçar orçamentos e recursos, respeitem ao menos nossos símbolos. Respeitem nossa água.

Era o que tinha a dizer!

Muito obrigado, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 18/06/2005 - Página 20296