Discurso durante a 103ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre o preconceito generalizado. Manifesto contra o preconceito aos portadores da síndrome de Down.

Autor
Papaléo Paes (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: João Bosco Papaléo Paes
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Reflexão sobre o preconceito generalizado. Manifesto contra o preconceito aos portadores da síndrome de Down.
Publicação
Publicação no DSF de 05/07/2005 - Página 22095
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • ANALISE, DISCRIMINAÇÃO, DIFERENÇA, PESSOAS, ESPECIFICAÇÃO, DEFICIENTE MENTAL, IMPORTANCIA, ALTERAÇÃO, CONSCIENTIZAÇÃO, INCENTIVO, CAPACIDADE, INDEPENDENCIA, PARTICIPAÇÃO, CIDADANIA, ELOGIO, INICIATIVA, BUSCA, INSERÇÃO.

            O SR. PAPALÉO PAES (PMDB - AP. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, poucas coisas são mais odiosas, mais perniciosas, mais nefastas do que o preconceito. Filho dileto da ignorância, o preconceito leva os seres humanos a rotular seus semelhantes, a catalogá-los como “diferentes”, “anormais”, “inferiores”. O passo seguinte é a discriminação, a segregação, a exclusão. A partir disso, os grupamentos sociais ficam divididos entre os “bons” e os “maus”, os “superiores” e os “inferiores”, os que “têm direitos” e aqueles que “nada merecem”, como se fosse possível assim classificar a pessoa humana, enquadrá-la em rígidas e simplistas categorias.

            Essa irracional postura de rejeição ao “outro”, àquele que não compartilha das minhas características pode ser endereçada ao estrangeiro, que não fala a minha língua e tem costumes “bárbaros”; ou àquele que pertence a outra etnia, e, portanto, pressuponho que seja menos dotado, intelectual ou fisicamente; ou, ainda, aos integrantes de determinada categoria profissional, a quem, conjuntamente, atribuo determinado padrão de má-conduta. Pode, até mesmo, ser endereçada aos oriundos de determinada região do País, nos quais penso enxergar, generalizadamente, desvios de caráter.

            E o preconceito pode, também, ser dirigido àqueles que apresentam alguma deficiência, que são portadores de necessidades especiais.

            Nesse caso, parece que regredimos a uma postura infantil, irrealista, de querermos que o mundo corresponda a nossas fantasias de contos de fadas, um lugar onde não exista espaço para a diferença, para qualquer imperfeição, onde todos deveriam ser jovens, belos, possuírem intelecto e condição física privilegiados, e todos os órgãos dos sentidos perfeitamente aguçados. Por que será, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, que nos sentimos tão ameaçados, tão perturbados pela diversidade, ou mesmo pela imperfeição? Será porque ela nos põe em contato com a nossa própria imperfeição, nos lembra de que nós mesmos não nos enquadramos no figurino do conto de fadas?

            Historicamente, os portadores da síndrome de Down têm sido alvo de uma tremenda carga preconceituosa, vistos como absolutamente incapazes, condenados à eterna dependência, às vezes afastados do convívio social pelos próprios pais e parentes, que se envergonhavam de ter um deficiente na família.

            Felizmente, significativas mudanças têm sido observadas nesse quadro de uns anos para cá. Isso, graças aos avanços da ciência, que definiu, com bastante clareza, não se tratar a síndrome de Down de uma doença; graças a uma nova postura de muitos pais, que estimulam os seus filhos e acreditam na sua capacidade, educando-os para a independência e incentivando o desenvolvimento de suas potencialidades; e graças, também, ao esforço dos próprios portadores da síndrome, que, com muita luta, têm mostrado a capacidade de superar seus limites, provando que podem praticar esportes, realizar atividades artísticas, inserir-se no mercado de trabalho, manter relacionamentos afetivos e até casar.

            No final do mês passado, na partida em que se despedia da Seleção Brasileira de futebol, ao comemorar seu último gol pelo escrete “canarinho”, Romário emocionou o País inteiro ao exibir uma camiseta com a frase: “Tenho uma filhinha Down que é uma princesinha”. Ao assumir com orgulho uma filha com deficiência, o atleta teve um gesto digno, bonito e corajoso. Afinal, sabe-se que ainda persiste, entre alguns pais, uma tendência a sentir vergonha, a esconder aquilo que percebem como um “problema”. Na sua posição de figura pública de grande notoriedade, o ídolo do futebol deu, assim, uma importante contribuição à luta contra o preconceito.

            E esse episódio ocorreu num momento em que outros fatos marcantes também estão trazendo à baila a conveniência e a necessidade da plena inserção dos portadores dessa síndrome na nossa sociedade. Também no mês passado, saiu vencedor do Festival do Audiovisual do Recife o documentário Do Luto à Luta, do cineasta Evaldo Mocarzel, ele próprio pai de uma menina de cinco anos que tem a síndrome. No filme, são mostrados jovens com síndrome de Down trabalhando, surfando, filosofando, namorando e casando. Já no dia três deste mês, foi lançada, no Rio de Janeiro, a campanha “Ser Diferente é Normal”, capitaneada pela organização não-governamental Meta-Social, cuja Presidente é a Sra. Helena Werneck.

            Várias figuras de destaque da nossa sociedade que têm filhos ou outros parentes com Down vêm dando, também, uma importante contribuição na luta contra o preconceito. O celebrado fotógrafo Sebastião Salgado tem um filho com a síndrome, enquanto o ex-Presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo Mário Amato tem uma neta. A Princesa Stella de Orleans e Bragança, mãe de Maria Cristina, de 15 anos, luta pelo acesso - garantido, aliás, por disposição legal - dos portadores de Down às escolas regulares. Com muita justeza, pondera a Princesa que “a sociedade é universal. As pessoas precisam entender que a escola inclusiva é melhor para todos, não só para as minorias. A gente aprende com a diversidade.”

            Embora lentamente, a luta pela inclusão começa a se refletir nas políticas de contratação de pessoal de algumas empresas. A cadeia de restaurantes cariocas La Mole contratou, quase dois anos atrás, seu primeiro funcionário com síndrome de Down. Hoje, Thiago Borges Pompeu, de 22 anos, auxiliar de operações com salário de 340 reais mensais, utiliza suas horas vagas para treinar candidatos ao mesmo posto que também têm a síndrome. Outros três já foram contratados. Thiago tem curso de computação e é tetracampeão estadual de natação especial. Ariel Goldenberg, de 24 anos, casado com Rita de Cássia Pokk, de 25, também portadora da síndrome, trabalha como auxiliar de escritório numa corretora de seguros. Ele lê, escreve, usa o computador e toca bateria muito bem.

            Já Lucas Ronconi e Mariana Mattos, ambos de 20 anos, prestarão, em breve, a prova do sindicato da dança do Rio de Janeiro, com vistas a se profissionalizar. Praticantes de dança de salão, versados em tango, bolero, forró, suingue e samba, eles já se apresentaram duas vezes nos Estados Unidos, em congressos internacionais de síndrome de Down, dançaram com Ana Botafogo, primeira-bailarina do Teatro Municipal, e participaram do programa Planeta Xuxa, na Rede Globo de Televisão.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, como mencionamos há pouco, a ciência médica já tem bem estabelecido que a síndrome de Down não é uma doença. Ela representa, isto sim, um padrão genético, caracterizado pela presença de um quadragésimo-sétimo cromossomo - excedente, portanto - por célula. Existem, contudo, diversas complicações médicas associadas à síndrome. Cerca de 40% dos bebês com Down nascem com cardiopatia. Até os dois anos de idade, as infecções respiratórias são mais freqüentes que nas demais crianças. E o portador da síndrome pode, também, nascer com malformações gastrintestinais. Os avanços da medicina, contudo, melhoraram muito os prognósticos para esses bebês. Hoje, uma pessoa com síndrome de Down tem 75% de chance de passar dos 35 anos de idade.

            Os limites que os portadores da síndrome precisam superar não são desprezíveis. Além dos impostos pela deficiência mental, que acarreta aprendizagem mais lenta, e da maior suscetibilidade às doenças já referidas, há outros problemas físicos. As pessoas com Down têm a musculatura mais flácida. Por isso, fazem fisioterapia desde os primeiros meses de vida. Um pouco mais tarde, a partir dos quatro ou cinco anos de idade, a equoterapia traz excelentes resultados. Exercitando-se em um cavalo, os pequenos portadores de Down trabalham a musculatura, o equilíbrio, a coordenação motora. Os efeitos desse tratamento são também muito positivos no que diz respeito à auto-estima. Aprendendo a dominar o cavalo, as crianças Down sentem-se mais seguras e felizes por conseguir fazer algo que outras crianças não conseguem.

            O que não podemos admitir é que, além das inevitáveis dificuldades acarretadas pela síndrome, seus portadores tenham, ainda, de enfrentar o ônus do preconceito. Qualquer forma de preconceito é odiosa. Quando, porém, o preconceito é dirigido às pessoas portadoras de deficiência, ele se torna ainda mais atroz, pois implica um gravame extra para quem já tem obstáculos tão significativos a transpor.

            Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, afirmei, no início desta fala, que o preconceito é filho dileto da ignorância. Felizmente, na medida em que retrocede a ignorância a respeito da síndrome de Down, vai também ruindo o preconceito contra seus portadores.

            É muito animador ver o amadurecimento dessa nova compreensão a respeito desse padrão genético diferenciado. Nosso craque Romário bem expressou essa nova perspectiva ao declarar, em entrevista, que sua filhinha é uma dádiva, um presente; que sua chegada fez dele um homem mais alegre, paciente e tolerante, com melhor entendimento da vida.

            Para concluir, gostaria de reportar as palavras do jovem Ariel Goldenberg, no documentário Do Luto à Luta, já mencionado, referindo-se a ele próprio e à sua esposa. Com simplicidade e tocante humanismo, Ariel afirmou: “Perante a sociedade, nós somos Down. Mas, perante Deus, são todos normais”.

            Creio que essas singelas palavras contêm muita verdade, e constituem um forte libelo contra todas as formas de preconceito. Vamos todos sair da ignorância, e entender que “ser diferente é normal”.

            Era o que eu tinha a dizer.

            Muito obrigado!


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/07/2005 - Página 22095