Discurso durante a 128ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Análise sobre os motivos e erros do Partido dos Trabalhadores e do Governo, que desencadearam a crise política atualmente vivida no País.

Autor
Cristovam Buarque (PT - Partido dos Trabalhadores/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.:
  • Análise sobre os motivos e erros do Partido dos Trabalhadores e do Governo, que desencadearam a crise política atualmente vivida no País.
Aparteantes
Rodolpho Tourinho.
Publicação
Publicação no DSF de 09/08/2005 - Página 26834
Assunto
Outros > GOVERNO FEDERAL, ATUAÇÃO.
Indexação
  • ANALISE, DEPOIMENTO, JOSE DIRCEU, DEPUTADO FEDERAL, COMISSÃO DE ETICA, CAMARA DOS DEPUTADOS, TENTATIVA, ESCLARECIMENTOS, JUVENTUDE, PROBLEMA, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), EXERCICIO, PODER, ISOLAMENTO, GRUPO, DESVALORIZAÇÃO, LIBERDADE, DEMOCRACIA, INCAPACIDADE, REALIZAÇÃO, PROJETO, FALTA, IDEOLOGIA, TRANSFORMAÇÃO.
  • CRITICA, CAMPANHA, GOVERNO, REELEIÇÃO, COMPROVAÇÃO, PREJUIZO, EXERCICIO, PODER.
  • ANALISE, ERRO, GOVERNO, COLIGAÇÃO PARTIDARIA, BUSCA, APOIO, PERDA, CARACTERISTICA, PARTIDO POLITICO, PARTIDO DOS TRABALHADORES (PT), FALTA, CRIATIVIDADE, POLITICA SOCIO ECONOMICA, OMISSÃO, DESENVOLVIMENTO EDUCACIONAL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, Embaixador Manuel Estuardo Barillas, da nobre República da Guatemala, que nos visita, nas últimas semanas evitei subir a esta tribuna. Evitei aqui vir falar porque não via como defender o Governo do meu Partido. Também não queria vir aqui para repetir as acusações sistemáticas que começam a irritar a população brasileira. Entretanto, depois que assisti ao depoimento do Deputado José Dirceu, na Comissão de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, senti que precisava falar.

É preciso lembrar que, mesmo antes desse fato, fui nesta tribuna um crítico ao comportamento político do então Ministro José Dirceu. Mas devo dizer que, assistindo ao seu comportamento na Comissão de Ética, senti como se minha geração, toda minha geração, estivesse sentada àquela mesa, à qual ele compareceu como testemunha, mas que foi visto pela opinião pública como se fosse o réu. E eu senti como se eu, que fui jovem como ele em 68 lutando nas ruas pela democracia, também estivesse ali. Achei que tinha a obrigação de vir aqui falar aos meus colegas Senadores, às colegas Senadoras, aos brasileiros e, sobretudo, aos jovens falar, tentando responder por que isto está acontecendo, por que essa geração que, naquela época, nem de longe sonhava chegar ao poder porque parecia impossível, conseguiu chegar lá e, depois de poucos meses, colocou o Brasil na situação em que estamos.

Depois de tentar refletir sobre como foi possível que a história nos reservasse ainda em nossas vidas duas surpresas tão inesperadas - chegar ao poder e perder-se no poder -, vim compartilhar meus sentimentos não apenas com as Srªs e os Srs. Senadores, mas especialmente com os jovens da União Nacional dos Estudantes, dos centros acadêmicos, dos grêmios estudantis, dos sindicatos e do campo que sonham com um Brasil diferente e se preparam para envidar esforços na luta para mudar o nosso País, como o Deputado José Dirceu e eu fizemos 30, 40 anos atrás.

Creio que os primeiros erros foram de comportamento, Senador Mão Santa: em primeiro lugar, a arrogância com que se comportaram no Governo, arrogância que denunciei desta tribuna num discurso chamado “Liberte a esperança, companheiro Presidente Lula!”, arrogância que isolou essa equipe no poder, sem diálogo, sem conversa e, portanto, sem perceber seus erros.

Outro problema de comportamento é o irmão siamês da arrogância, ou seja, o deslumbramento no cargo. Grande parte desses companheiros se deslumbraram com o poder em vez de lutarem para realizar projetos. A arrogância junto ao deslumbramento são dois comportamentos que provocaram essa situação.

Quando eu e minha equipe, em um discurso feito no Ministério da Educação, alertamos para os três riscos daqueles que queriam mudar o País, que era o deslumbramento, o burocratismo e a perda da capacidade de indignação, recebi, no Palácio do Planalto, um puxão de orelha do próprio Ministro José Dirceu, que na época me ligou achando que eu estava querendo criticar o Planalto, quando eu estava querendo alertar os meus colaboradores para que não caíssemos na indiferença diante dos acontecimentos nem nas malhas da burocracia.

O terceiro problema de comportamento foi essa perda da capacidade de indignar-se. Quando chegamos ao Governo, e eu fui Governador, eu fui Reitor, eu fui Ministro, encontramos tanta dificuldade para empreender mudanças que pensamos que não vamos conseguir; e nos acostumamos a ver meninos de rua, a ver a escola não funcionar direito como se aquilo não tivesse a ver conosco; é tão difícil mudar que nos acostumamos e perdemos a capacidade de indignação. E isso nos leva a nos acostumar com a miséria da ética, já que nos acostumamos com a miséria social. Fatos que teriam gravidade passam a ser tolerados, como parte do jogo, como pedaço da realidade, a realidade que prometemos mudar; nós nos acostumamos com ela e perdemos a capacidade de nos indignar com ela.

Estes foram os três erros de comportamento: a arrogância, o deslumbramento e a perda da capacidade de indignar-se.

Mas nós tivemos também três erros políticos. O primeiro erro político foi a reeleição. Pode-se dizer que a reeleição não é um erro político porque é uma marca constitucional. Mas nós esquecemos que a lei permite a reeleição, e nós nos comportamos como se fosse uma obrigação ir para a reeleição. E o que acontece? É que a reeleição transforma o Presidente em candidato. No primeiro dia de nosso Governo, o Presidente Lula já não era mais Presidente, já era outra vez candidato. E quando isso acontece, perde-se a perspectiva porque se imagina que ao invés de quatro são oito anos de mandato e não é preciso ter pressa.

Lembro que eu próprio fui um dia criticado profundamente pelo Presidente, que de público disse que quem come apressado come cru. Sua Excelência queria dizer que eu estava muito apressado em querer abolir o analfabetismo em quatro anos. E Sua Excelência tinha oito. Esse é um marco de que a reeleição degenera o exercício do poder. Podem dizer que nos Estados Unidos funciona. Aqui, a reeleição não está funcionando. O Presidente Fernando Henrique teve a sorte de a reeleição ser aprovada somente no terceiro ano. Durante dois anos, ele foi Presidente.

Além do que, ao ser candidato, o Presidente diminui o seu tamanho e iguala-se aos outros candidatos. A reeleição e a maneira como nos comportamos foi um grave equívoco. Eu fui Governador crítico da reeleição. Eu disse ao Presidente Fernando Henrique que a reeleição, que era para permitir, parecia obrigar. E, de fato, aconteceu. Eu como Governador terminei sendo obrigado a ser candidato à reeleição, porque criou-se um vazio ao redor. Exigi que houvesse um plebiscito no PT do Distrito Federal para saber se aceitava ou não a reeleição, porque havíamos sido contra e não é bom ser contra e depois utilizar. Só aceitei ser candidato com uma prévia interna dentro do PT, à qual me submeti, disputando com o saudoso Senador Lauro Campos. Dizia ao Presidente Fernando Henrique que isso não daria certo e não deu para ele; o seu segundo mandato não foi igual ao primeiro. E não está dando certo, sobretudo no nosso caso.

Sr. Presidente, outro erro político grave foi tratar os partidos aliados como se fossem tendências de um partido só, que era o partido do Governo. O Presidente Lula e o companheiro José Dirceu não souberam entender que uma coisa são as tendências do PT, disputas dentro do meu Partido, e outra coisa são alianças com partidos diferentes. Nós quebramos a espinha dorsal das idéias do PT ao fazer do PT uma tendência do Governo, em vez de ter cada partido com a sua personalidade, disputando inclusive, e o Lula, como eixo central, tentando fazer com que os partidos fossem tendências do Governo; descaracterizamos o PT e tivemos que usar instrumentos - pelo menos é o que está se tentando apurar - negativos para trazer outros partidos para dentro do Governo quando eles podiam, sem ser partido do Governo, fazer parte de uma aliança. Esse foi um erro em que, precisamos reconhecer, os Líderes do Governo, especialmente o Presidente Lula e o Ministro José Dirceu, tiveram responsabilidade direta.

Sr. Presidente, a principal causa desse fracasso não foi o comportamento nem a política; foi a ideologia, foi o marco conceitual do Governo. A principal causa desta crise que vivemos foi a falta de uma bandeira transformadora, responsavelmente revolucionária, que não tínhamos.

O PT foi criado em 1980 e baseado em sindicatos. Em 2003, quando chegamos ao poder, o mundo havia se transformado completamente. Pouco de 2003 tinha a ver com a realidade de 1980, no plano da economia. Lula, José Dirceu e o PT quase inteiro tiveram a grandeza de entender isso e de se adaptar à nova realidade econômica, mas não tiveram a capacidade de formular uma diferença que nos identificasse. Eles não tiveram medo de se parecer com o Governo anterior naquilo que era preciso, mas não souberam apresentar uma diferença. Era preciso maturidade para se adaptar, mas era preciso também criatividade para manter acesa a diferença porque o Brasil continuava com todos os problemas que nos propusemos corrigir.

Fomos criados ainda na polarização da Guerra Fria, no tempo da economia fechada, com estatização controladora, com a visão de uma dialética que opunha capital e trabalho. Chegamos ao poder num mundo novo, de uma potência única, sem Guerra Fria, com economias abertas e privatizadas, em que a dialética, a polarização social opõe muito menos capital e trabalho do que incluídos e excluídos; um mundo no qual a contradição fundamental não é mais entre capital e trabalho, mas entre quem tem e quem não tem acesso ao conhecimento. Isso é o que faz a desigualdade. Entendemos que não havia outra economia possível, mas não entendemos que havia outra sociedade a ser construída usando a economia possível.

O PT chegou ao poder sem o marco conceitual, sem uma ideologia ao mesmo tempo adaptada aos novos tempos da economia, mas ainda indignada com a velha estrutura arcaica de uma sociedade vergonhosamente desigual e cuja desigualdade a cada dia se transforma em apartação social. Nosso papel era usar os recursos da economia para abolir essa apartação. E Lula não entendeu, nem seus auxiliares, nem o conjunto do PT - e todos nós somos responsável por isso -, o papel fundamental da educação como instrumento libertário. Não perceberam que a verdadeira causa da desigualdade e da injustiça social está na desigualdade do acesso ao conhecimento e não na desigualdade entre Capital e Trabalho. Não entenderam que o berço da desigualdade está na desigualdade do berço e que é possível mudar isso.

Lula não viu, por exemplo, que Mandela que fez uma revolução sem precisar mexer na política econômica, ao garantir que brancos e negros pudessem andar na mesma calçada. Lula não entendeu que seu papel seria fazer no Brasil a revolução que garantisse que pobres e brancos pudessem freqüentar escola com a mesma qualidade. É claro que isso na África do Sul era simples, bastava um conjunto de leis; no Brasil, era preciso muito mais. Era preciso um conjunto de políticas sociais que assegurassem a todos aquilo que faz com que os excluídos saltem para o lado dos incluídos. Lula não entendeu. Por isso deixou de ser Mandela para ser Lech Walessa.

Esta para mim é a verdadeira causa do fracasso de minha geração, de esquerda, que chegou ao poder com o mais importante líder de nossa juventude, José Dirceu, e três anos depois o vê explicando-se na Comissão de Ética e Decoro Parlamentar, com o Governo paralisado.

Sr. Presidente, a causa é a falta de uma causa para o Governo. Tivéssemos uma causa maior, não teriam ocorrido os desvios éticos. Quando a ética faz parte dos objetivos do poder, o poder não pode ser exercido sem ética. Quando os meios fazem parte dos fins, os fins não justificam os meios. No entanto, ficamos sem os fins e apenas com os meios. Nesse caso, foi muito fácil, juntamente com o erro de comportamento de política, nós nos perdermos.

Sr. Presidente, já estou concluindo.

O Sr. Rodolpho Tourinho (PFL - BA) - Senador Cristovam Buarque, concede-me V. Exª um aparte?

O SR. PRESIDENTE (Mão Santa. PMDB - PI) - Senador Cristovam Buarque, como há Senadores pedindo aparte, V. Exª fique tranqüilo, porque prorroguei por cinco minutos o tempo de V. Exª.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Muito obrigado, Sr. Presidente.

Com o maior prazer, concedo um aparte ao Senador Rodolpho Tourinho.

O Sr. Rodolpho Tourinho (PFL - BA) - Senador Cristovam Buarque, eu não queria interromper a sua brilhante exposição, mas diria que foi a melhor reflexão a que assisti nesta Casa sobre a crise terrível que se abate sobre o País e também a mais completa e a mais lúcida sobre tudo isso. Essa questão da arrogância, do deslumbramento, da capacidade ou incapacidade de se indignar estende-se a outras áreas, e não apenas às áreas sociais. Se V. Exª verificar, são necessários investimentos em infra-estrutura em todas as áreas. Há muitos problemas, como os da área de energia. Esses acontecimentos estão presentes em tudo. Não quero alongar-me neste aparte. Apenas cumprimento V. Exª, salientando que entendo perfeitamente a sua frustração, porque a minha - de eleitor apenas -, nessa eleição, foi muito grande, Senador. Imagino a de V. Exª, que envolve uma vida inteira de lutas e de dedicação.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (Bloco/PT - DF) - Obrigado, Senador.

Concluindo, Sr. Presidente, todos lembram aqui que fui um crítico do Ministro José Dirceu. Tive embates com ele quando eu era Ministro e, depois, como Senador. Mas quero dizer que, ao vê-lo passando por essa situação, sinto como se minha geração estivesse - toda ela - sendo julgada. Vejo ainda nele o maior líder jovem da minha geração.

Mantenho, porém, Sr. Presidente, o meu otimismo. Um país que faz jovens como aqueles fará outros jovens igualmente líderes, que, certamente, aprenderão a lição de que, ao chegar ao poder, não podemos perder a capacidade de indignação com o que antes havia de errado; que ao chegar ao poder, os meios não justifiquem os fins; que ao chegar ao poder, devemos ver-nos como servidores e não como deslumbrados; ao chegar ao poder, devemos entender que, na democracia, é fundamental a aliança, sem a qual - eu mesmo dizia - corremos o risco de um regime autoritário do meu Partido. Eu dizia: temo que um dia o PT chegue ao poder sozinho, porque a tentação autoritária é muito grande dos que têm a maioria forte. Quero aliança, mas aliança não significa cooptação, não significa incorporação. Espero que os próximos jovens entendam que não podem sentar um dia na cadeira de Presidente como se já fossem, outra vez, candidatos à eleição seguinte.

Sr. Presidente, eu só temo hoje que nós não estejamos dando aos jovens o incentivo que eles deveriam ter. Muitos deles estão perdidos na desilusão, ou no corporativismo, para não falar no oportunismo e até mesmo no cinismo, e sobretudo no egoísmo. Mesmo assim nossa esperança está na juventude. É para ela que eu passo estas reflexões sobre as causas de nossos erros, para que ela não os repita quando chegar a vez dela.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 09/08/2005 - Página 26834