Discurso durante a 135ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Referências ao assassinato de Euclides da Cunha e à morte de Miguel Arraes, ocorridas em agosto.

Autor
Valmir Amaral (PP - Progressistas/DF)
Nome completo: Valmir Antônio Amaral
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Referências ao assassinato de Euclides da Cunha e à morte de Miguel Arraes, ocorridas em agosto.
Publicação
Publicação no DSF de 17/08/2005 - Página 27978
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • COMENTARIO, FATO, HISTORIA, POLITICA NACIONAL, ESPECIFICAÇÃO, SUICIDIO, RENUNCIA, GETULIO VARGAS, JANIO QUADROS, EX PRESIDENTE DA REPUBLICA, HOMICIDIO, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, ENGENHEIRO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), MORTE, MIGUEL ARRAES, EX GOVERNADOR, EX-DEPUTADO, ESTADO DE PERNAMBUCO (PE).
  • ELOGIO, OBRA LITERARIA, AUTORIA, EUCLIDES DA CUNHA (BA), ESCRITOR, RECONHECIMENTO, AMBITO INTERNACIONAL, CONTRIBUIÇÃO, ANALISE, SITUAÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, MISERIA, POBREZA, FALTA, JUSTIÇA SOCIAL, BRASIL, REGISTRO, BIOGRAFIA.
  • LEITURA, TRECHO, MUSICA, GRUPO, CARNAVAL, HOMENAGEM, HISTORIA, POPULAÇÃO, MORTE, CONFLITO, ESTADO DA BAHIA (BA).

O SR. VALMIR AMARAL (PMDB -- DF. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, o mês de agosto, de tão marcado por eventos funestos em nossa História, é tradicionalmente associado, pela crença popular, à má sorte. Na política nacional do período do pós-guerra, tivemos, por exemplo, a crise de 1954, que levou o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, e a renúncia inesperada do presidente Jânio Quadros, em 1961.

Este agosto de 2005, como a confirmar a triste pecha do mês, vê o País às voltas com as denúncias de corrupção na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos, de compra de votos de parlamentares pelo Palácio do Planalto e de financiamento oculto de campanhas eleitorais. Por todos os cantos que visito, da parte de toda gente, percebo um ânimo amargo de decepção, quando não de raiva.

Menciono fatos da atualidade, e esse estado de espírito que percebo nos brasileiros nestes dias, porque tais fatos se assemelham, guardadas as proporções e ressalvadas as diferenças de circunstância histórica, ao que se passava na consciência da grande figura nacional que desejo relembrar neste pronunciamento.

O mês de agosto, de fato, também assistiu a uma das maiores tragédias ocorrida a uma personagem de nosso mundo intelectual, de nossas letras. Refiro-me ao assassinato, a 15 de agosto de 1909, do engenheiro e escritor fluminense Euclides da Cunha, o notável autor do monumento histórico, sociológico e literário que é o livro Os Sertões.

Quando digo monumental, não faço mais que repetir um juízo generalizado da crítica nacional e estrangeira. De fato, quem verificar os verbetes sobre literatura brasileira em enciclopédias como a Britannica, constatará que Os Sertões são referidos como “o livro mais grandioso do Brasil”, ou outro comentário de teor semelhante. Para alguns analistas estrangeiros, Os Sertões seriam, talvez, a única obra da literatura brasileira para a qual o homem culto de qualquer país, de qualquer língua, deve tirar algum tempo para ler, e abrir espaço em sua estante.

Para dar uma medida mais recente do conceito de Os Sertões no mundo, é suficiente relatar o fato de que, na página da livraria on-line Amazon Books, na Internet, o livro, na tradução americana, recebeu cerca de dez resenhas, todas lhe atribuindo a cotação máxima, de cinco estrelas, correspondente à recomendação de leitura obrigatória. Uma dessas resenhas, aliás, não deixa por menos: declara o livro “a obra de um gênio”.

E tudo isso, Srªs e Srs. Senadores, passado mais de um século de sua publicação, que se deu em 1902!

Para entendermos o significado, para Euclides, do trauma de ver de perto os acontecimentos de Canudos, cabe lembrar que o escritor fora um jovem republicano exaltado, expulso em 1886 da Escola Militar da Praia Vermelha, no Rio de Janeiro, onde estudava engenharia, por haver feito um protesto contra a visita do Ministro da Guerra do Império; e lembrar também que, discípulo de Benjamin Constant, fora um adepto ardoroso da ideologia positivista de Auguste Comte.

Lembremos ainda que, à chegada das primeiras notícias sobre o suposto levante restaurador e monarquista de Canudos, Euclides comparou o movimento à insurreição camponesa na França da virada do século XVIII para o XIX, na região da Vendéia, de caráter ultra-religioso e anti-republicano. Quer dizer, Euclides ainda estava preso aos preconceitos dos brasileiros urbanos, ricos e cosmopolitas contra o Brasil profundo, rural, místico e pobre que Canudos representava.

Depois, tendo ido ver, in loco, o que acontecia, compreendeu o que se passava. Entendeu que a campanha do Estado contra aquela gente foi um crime, resultado da completa incomunicabilidade entre duas culturas, dois mundos que conviviam no mesmo país. Por isso, ao retornar ao Centro-Sul do País, prometeu a diversos de seus amigos -- fato registrado repetidas vezes em sua correspondência -- que dedicaria sua vida a vingar a memória daqueles infelizes e a acusar nossas pretensas elites com o livro que planejava escrever, e que viria a ser Os Sertões.

Estava tomado pela raiva. Desiludido da doutrina positivista, e desencantado com a República, que se tornara mais tirânica e ilegítima, para ele, que a Monarquia que substituíra, Euclides se entregou ao trabalho de redação do livro no tempo livre que lhe permitia a atividade de engenheiro, que era seu ganha-pão. Em São José do Rio Pardo, interior do Estado de São Paulo, chefiou a reconstrução de uma ponte que havia caído alguns anos antes. Rio Pardo, aliás, é um dos principais repositórios, hoje, da memória euclidiana.

No atual momento de turbulência política, em que tantos se chocam e se desiludem com as revelações dos bastidores de uma administração que se propunha a mudar o modo de fazer política no Brasil, estamos, por certo, em situação privilegiada para sentir algo como o que sentia Euclides naqueles anos. Por isso, é de todo conveniente buscar nos trabalhos analíticos de Euclides da Cunha as bases para uma compreensão dos contrastes que ainda perduram no Brasil.

O sertão de hoje mudou em muitos aspectos, mas continua o mesmo no essencial. Muitas obras foram feitas, há barragens, energia elétrica, agronegócio exportador. Ao mesmo tempo, ainda há injustiça social e miséria tanto quanto ao tempo em que Euclides lá esteve. E há também a exploração da situação pelo crime organizado, que se aproveita da falta de perspectivas da população para o cultivo de maconha em larga escala. O sertão ainda é e será um problema para a construção de uma nacionalidade sadia para nosso País.

Os Sertões são um marco de nossa cultura, um grito de dor que ainda produz eco, dentro e fora do Brasil. Um dos maiores romances da literatura hispano-americana das últimas décadas é A Guerra do Fim do Mundo, do peruano Mario Vargas Llosa, admirador confesso de Euclides da Cunha. E não podemos deixar de lembrar o samba-enredo da Escola de Samba Em Cima da Hora, anos atrás, que cantava:

Foi no século passado

No interior da Bahia

O homem revoltado com a sorte

Do mundo em que vivia

Ocultou-se nos sertões

Espalhando a rebeldia

Se revoltando contra a lei

Que a sociedade oferecia

E os jagunços lutaram

Até o final

Defendendo Canudos

Naquela guerra fatal

Euclides foi morto por Dilermando de Assis, militar com quem Anna Emília, esposa de Euclides, iniciara um caso em 1904, quando o escritor viajara para a Amazônia a tratar de questões de demarcação de fronteiras. Naquele ano de 1909, Anna havia saído de casa para morar com Dilermando. Perturbado, o escritor foi à casa do amante de sua esposa, armado, para tomar satisfações.

Euclides da Cunha foi membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de São Paulo; um dos maiores intelectuais e homens de ação de nossa História, que uniu o saber acadêmico ao conhecimento concreto das coisas, que cruzou o País de ponta a ponta para estudá-lo e compreendê-lo; um exemplo para todas as gerações, de ontem, de hoje e do futuro.

E, infelizmente, seguindo a sina de mês problemático, falece neste mês o inesquecível e definitivamente imortalizado na história da luta democrática deste País, Miguel Arraes. É um lamento sentido que faço aqui neste Plenário, por reconhecer que a vida deste ícone político brasileiro deveria servir de base para que os atuais rumos inclinassem no sentido de procurar uma solução, o mais breve possível, para a grave crise por que passamos. O exemplo de Arraes deve ser seguido a qualquer preço. Os meus pêsames vão para todos nós, pois afinal, pelo amor que dedicou à vida pública acredito que os órfãos somos nós.

Era o que eu tinha dizer, Sr. Presidente.

Muito obrigado.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 17/08/2005 - Página 27978