Discurso durante a 151ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Problema da seca no Nordeste brasileiro: causas e soluções propostas ao longo da História, entre elas a transposição das águas do rio São Francisco.

Autor
José Maranhão (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/PB)
Nome completo: José Targino Maranhão
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ATUAÇÃO PARLAMENTAR. DESENVOLVIMENTO REGIONAL. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.:
  • Problema da seca no Nordeste brasileiro: causas e soluções propostas ao longo da História, entre elas a transposição das águas do rio São Francisco.
Aparteantes
Mão Santa, Ney Suassuna.
Publicação
Publicação no DSF de 03/09/2005 - Página 30067
Assunto
Outros > ATUAÇÃO PARLAMENTAR. DESENVOLVIMENTO REGIONAL. POLITICA DO MEIO AMBIENTE.
Indexação
  • APOIO, DISCURSO, PEDRO SIMON, SENADOR, ELOGIO, CONDUTA, HELOISA HELENA, CONGRESSISTA.
  • ANALISE, SITUAÇÃO, DETALHAMENTO, HISTORIA, OCORRENCIA, SECA, REGIÃO NORDESTE, PERIODO, POSTERIORIDADE, DESCOBERTA, BRASIL, EVOLUÇÃO, IMPERIO, REPUBLICA, ATUALIDADE, REGISTRO, DIVERSIDADE, INICIATIVA, ESTUDO, PESQUISA, BUSCA, SOLUÇÃO, PROBLEMA, INICIO, DISCUSSÃO, POSSIBILIDADE, IMPLANTAÇÃO, PROJETO, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO.
  • COMENTARIO, COMPARAÇÃO, DIVERSIDADE, PROJETO, GOVERNO FEDERAL, REVIGORAÇÃO, INTEGRAÇÃO, BACIA HIDROGRAFICA, ACUMULAÇÃO, DISTRIBUIÇÃO, AGUA, ATIVIDADE, INFRAESTRUTURA, GESTÃO, RECURSOS HIDRICOS, TRANSPOSIÇÃO, RIO SÃO FRANCISCO.
  • COMENTARIO, DIFICULDADE, CONCILIAÇÃO, DIVERGENCIA, OPINIÃO, REFERENCIA, PROJETO, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO.
  • ESCLARECIMENTOS, VANTAGENS, PROJETO, TRANSPOSIÇÃO, AGUA, RIO SÃO FRANCISCO, REDUÇÃO, NOCIVIDADE, EFEITO, AUSENCIA, CHUVA, REGIÃO NORDESTE.

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, fico até em dificuldades para dirigir-me a V. Exª, depois dos justos e merecidos elogios aqui formulados pelo Senador Pedro Simon do alto de sua competência. Por isso, vou dizer simplesmente - o que não considero pouco - que faço minhas todas as palavras aqui proferidas pelo Senador Pedro Simon a respeito da representatividade da sessão de hoje, porque tem V. Exª como Presidente.

A SRª PRESIDENTE (Heloísa Helena. P-SOL - AL) - Obrigada, querido.

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB) - Hoje ocupo esta tribuna para tratar de uma questão fundamental para o desenvolvimento regional brasileiro e, em especial, nordestino. Refiro-me ao mais antigo projeto de infra-estrutura brasileiro, a transposição do rio São Francisco - o que não é um tema muito pacífico para o entendimento da nossa Presidente, paradoxalmente - para o chamado semi-árido setentrional, formado pelos Estados de Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e pelo meu Estado, a Paraíba.

Quero fazer aqui, Srª Presidente, uma retrospectiva histórica desse problema, dessa que é uma questão fundamental para o meu Estado, assim como para os demais que já mencionei aqui.

Pela primeira vez na História, em 1818, o assunto foi objeto de um documento produzido pelo intendente do Crato, no Ceará, e da apresentação de um projeto que permaneceu no papel por 200 anos, período em que a região semi-árida setentrional continuou a conviver principalmente com paliativos destinados a tratar o permanente problema da escassez de água como se este não fosse praticamente a regra daquela região.

O que há de mais curioso nesse problema é que, a despeito de ser um problema nacional, ele tem sido tratado de forma emocional, de forma pouco racional, diferentemente da conduta de outros países do Primeiro Mundo ou do mundo em desenvolvimento, que já fizeram a sua transposição como forma de corrigir deficiências climáticas em regiões mais problemáticas de seus territórios. O exemplo mais frisante disso é a transposição feita na China há mais de dois mil anos.

No Brasil, essa questão, não obstante o projeto em fase de implementação, a questão tem sido tratada como verdadeiro tabu, como algo, para alguns, proibido.

A pesquisa que fizemos mostra o desenvolvimento desse projeto ao longo desses duzentos anos de tentativas e insucessos.

Do Brasil Colônia à República, raríssimas foram as vezes em que se perseguiu de maneira planejada a solução de convivência com o fenômeno climático das secas e da irregular distribuição de chuvas, particularmente severa no semi-árido setentrional.

Embora a constatação da ocorrência da seca como fator ambiental característico do Nordeste brasileiro, com o qual já conviviam os indígenas, integrados ao ambiente encontrado pelos portugueses, tenha se dado desde os primeiros anos após o descobrimento, havendo sido o primeiro registro disponível sobre seca datado de 1552, convém fazer-lhes um breve relato histórico dessas secas e das principais medidas adotadas como supostas políticas públicas voltadas ao enfrentamento desse problema.

A primeira aprovação de verbas com o objetivo de combater as conseqüências das secas deu-se somente após a independência do Brasil, como conseqüência do período de estiagem de 1824 a 1825, cujas conseqüências passariam a ser referência de tragédia, suscitando nos futuros vitimados o medo da recorrência de eventos de severidade semelhante.

O problema da seca era, entretanto, uma realidade inegável, a ponto de fazer brotar analogias ambientais com a aridez dos desertos, redundando em iniciativas estapafúrdias, como a importação de camelos, visando sua integração à vida sertaneja, idéia apresentada em 1799.

Ao longo dos séculos, também recorrente foi a idéia de transpor águas do São Francisco para o coração da seca. O decênio de 1840, marcado pela grande seca de 1845, contribuiu para que, em 1847, o Deputado Provincial e Intendente do Crato, Marco Antônio de Macedo, trouxesse, mais uma vez, a alternativa de transposição do São Francisco como medida necessária à região.

Como tentativa de contornar o desconhecimento marcante em relação ao Nordeste, que, por sinal, não se restringia à perspectiva hídrica, o Imperador D. Pedro II apoiou, em 1859, a estratégia de pesquisa de campo na região através da chamada Comissão Científica de Exploração, formada por estudiosos de diversas áreas de interesse. Naquele mesmo ano e com a presença dos membros da comissão, foram recebidos os tais camelos importados da Argélia no porto de Fortaleza. A aposta na ocorrência de uma coincidência na roleta da adaptabilidade ambiental para os animais, através da qual a semelhança de escassez de água no semi-árido e no deserto seria suficiente para que sua evolução natural e reprodução prosseguisse, sem descarte seletivo no novo ambiente dos sertões do Ceará, como extensão saariana, seria perdida. Dentre as intervenções na forma de obras necessárias, a comissão também apontou a transposição de águas do São Francisco para a bacia do Jaguaribe, no Ceará, como necessária.

São registros históricos, Srª Presidente, e estou me limitando aqui a reproduzi-los neste discurso, cujo objetivo é discutir democraticamente o projeto que agora se apresenta como coisa concreta no Governo da República.

A grande seca de 1877 se explicitaria com maior evidência na forma de miséria e de morte, no Ceará, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, não coincidentemente onde as reservas hídricas naturais perenes não existem.

É bom frisar que esses Estados a que já me referi são os únicos Estados nordestinos que não têm nenhum curso d’água permanente.

(A Srª Presidente faz soar a campainha.)

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB) - Srª Presidente, pergunto a V. Exª se a campainha está soando automaticamente ou se é V. Exª.

A SRª PRESIDENTE (Heloísa Helena. P-Sol - AL) - Mas já dei mais cinco minutos a V. Exª.

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB) - Fico triste, Srª Presidente.

A SRª PRESIDENTE (Heloísa Helena. P-Sol - AL) - Quer mais tempo? Darei. Não há problema algum. Aqui, sou absolutamente democrática. É um perigo me deixar presidir a sessão. V. Exª terá o tempo que entender necessário, Senador José Maranhão. Todos os Senadores aqui estamos para trabalhar. O Senador Cristovam está aguardando pacientemente, assim como o Senador Delcídio e todos que vão falar. Então V. Exª terá o tempo que julgar necessário para a conclusão de seu pronunciamento.

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB) - Agradeço a generosidade de V. Exª.

Diante da hecatombe, a proposta de apoio institucional à migração para a Amazônia e Pará surge como consenso por parte do governo, igrejas, grandes proprietários e comerciantes locais. Aos milhares, cearenses alimentaram esse fluxo migratório no ano seguinte. Data desse episódio de seca a suposta afirmativa de D. Pedro II segundo a qual “empenharia as jóias da coroa para resolver aqueles problemas”. Mas sobre a veracidade da afirmativa há controvérsia entre os historiadores. Parece que o Imperador nunca chegou realmente a proferir essas palavras. Naquela época, já existiam os truques de mídia, que hoje são tão usuais pelos governantes da atualidade.

A estiagem perduraria até 1879, havendo sido, nesse ínterim, entregue o relatório do engenheiro Guilherme Fernando Halfed, que, incumbido pelo Imperador D. Pedro II, realizou importantes levantamentos na região a partir da primeira metade do decênio de 1850, apontando, mais uma vez, para a viabilidade da transposição do São Francisco como medida de combate aos efeitos da seca.

A idéia levada ao debate parlamentar não logrou êxito, permanecendo arquivada pelo espaço de tempo de ressurgimento da próxima seca.

É uma característica da vida pública nacional essa tendência à compulsão nos momentos de dificuldade. É claro que o cenário econômico e social em que as secas se desenvolvem hoje é bastante diferente. O Brasil mudou muito desde aquela época. Tenho memória, por exemplo, da seca de 1958, quando, estapafúrdia e improvisadamente, o Governo brasileiro resolveu, pressionado pelo fenômeno da seca, despender altas somas do Orçamento da República no combate aos efeitos da seca. O resultado foram cenas de corrupção sem precedentes na história administrativa do País, porque o problema da seca não tem sido, primeiro, analisado como problema nacional; segundo, como questão permanente e inerente à própria climatologia do Nordeste.

Não há por que querer ser otimista diante das soluções improvisadas. Elas não produzirão efeitos enquanto efetivamente não ocorrer a transposição do São Francisco, que, já está provado à saciedade, não traz senão benefício a todas as partes e a todos os Estados nordestinos.

Pois bem, como eu dizia há pouco, a estiagem perduraria até 1879, havendo sido, nesse ínterim, entregue o relatório do Engenheiro Guilherme Fernando Halfed, que, incumbido pelo Imperador Dom Pedro II, realizou importantes levantamentos na região a partir da primeira metade do decênio de 1850. Naquela época, já foi apontada a transposição do São Francisco como solução, embora o projeto não tenha caminhado. A idéia levada ao debate parlamentar não prosperou. Nas reuniões mobilizadas pelo Governo Central, além da alusão à transposição do São Francisco, foram reincidentes as propostas de perfuração de poços, de construção de açudes para abastecimento dos núcleos povoados e de abertura de estradas.

As décadas relativamente úmidas que antecederam à seca de 1877 haviam contribuído para o crescimento populacional na onda de prosperidade proporcionada pela ascensão do algodão, que, introduzido no sertão nordestino, encontrou oportunidade histórica de expansão com os problemas enfrentados pelos Estados Unidos, principal consumidor - Guerra da Independência, de 1776 a 1783; e da Secessão, de 1860 a 1865 -, em suprir a indústria têxtil inglesa.

A devastação dessa configuração socioeconômica relativamente favorável, traduzida principalmente em perda de vidas humanas - estima-se que foram mais de 500 mil mortos no Ceará e vizinhanças, conforme constata relatório da Sudene, datado de 1981 -, evidenciou nacionalmente a necessidade de racionalizar as ações de um plano mais efetivo.

Assim, no relatório de abril de 1878, elaborado por uma comissão cientifica designada pelo Imperador e presidida por Henrique Beaurepaire-Rohan, formalizou-se a construção de trinta açudes com capacidade de pelo menos um milhão de metros cúbicos, a construção de ferrovias no Ceará, a instalação de estações meteorológicas e o incentivo à açudagem privada por meio do fornecimento das plantas de engenharia, dado que as condições técnicas de construção dos açudes, anteriormente, deixaram a desejar. Em decorrência de tais deficiências, eram destruídos nos anos chuvosos.

As providências arroladas no relatório de Beaurepaire-Rohan, além de não acrescentarem nada de original em relação às propostas anteriores, foram abandonadas, em termos de alocação de recursos, tão logo retornaram as chuvas com o fim da estiagem de 1879.

O primeiro Presidente eleito pelo voto, Prudente de Moraes, se depararia com a revolta de Canudos, de agosto de 1896 a outubro de 1897, desembocadura de um fluxo histórico que se avolumou em adversidades, nascidas com a trajetória de inserção política, econômica, social e cultural do Nordeste no contexto do País. Nesse cenário de desesperança, permeado ainda pelas conseqüências da terrível seca de 1877, Antônio Conselheiro fez florescer sua mensagem messiânica, congregando na sua vila de Canudos, localizada no expoente adustivo do Raso da Catarina, na Bahia, uma impressionante população oito vezes superior à população de Juazeiro - maior cidade do norte da Bahia, com cerca de três mil habitantes em 1896, equivalente a mais de 10% da Capital, Salvador.

Tida como a guerra mais trágica da história do Brasil, o conflito que evidenciou o abissal entre as elites urbanas dominantes e os esquecidos do Nordeste foi registrado para sempre na história por Euclides da Cunha, em Os Sertões.

Em artigo intitulado “Plano de uma Cruzada”, de maio de 1904, incluído posteriormente no livro Contrastes e Confrontos, publicado em 1907, Euclides da Cunha propôs um programa para o semi-árido centrado basicamente em construção de açudes; na “arborização em vasta escala, com os tipos vegetais que, a exemplo do juazeiro, mais se afeiçoam à rudeza climática das paragens”; na construção de estradas de ferro adequadamente dispostas, facilitando o “deslocamento rápido das gentes flageladas”; em poços artesianos, “nos pontos em que a estrutura granítica do solo não apresentar dificuldades insuperáveis”.

Aqui eu faria uma observação ao relatório de Euclides da Cunha, pela experiência de quem governou um Estado que tem 75% do seu território encravado no semi-árido e quase totalmente constituído por cobertura de rochas graníticas: essa característica torna inteiramente impossível a ocorrência de lençol freático e a utilização dos poços tubulares.

De forma contundente e crítica, particularmente em relação às secas e ao conhecimento e às investidas governamentais na região, Euclides da Cunha escreveu:

Diante da enorme fatalidade cosmológica, temos uma atitude de amadores; e fazemos física para moças. Daí a instabilidade e o baralhamento dos juízos. Acompanhamos o fenômeno escravizados à sua cadência rítmica; não lhe antepomos à intermitência a continuidade dos esforços. Entretanto, o próprio variar das causa precipitadas nos revela a sua feição complexa, exigindo longos e pacientes estudos. E evidente que estes serão sempre estéreis, adstritos aos paroxismos estivais, desdobrando-se na plenitude das catástrofes desencadeadas com o objetivo ilusório de as debelar, quando uma intervenção realmente eficaz só pode consistir no prevenir as secas inevitáveis, do futuro.

Com o objetivo de centralizar e organizar as ações federais de combate às secas, é criado, em 1909, pelo Presidente Afonso Pena, o IOCS - Inspetoria de Obras contra as Secas, que, desaparelhada e sem recursos suficientes, enfrenta, já em 1915, uma seca devastadora, cuja severidade e drama social produzido seria registrado pela escritora Raquel de Queiroz no romance O Quinze. Em Fortaleza, é instalado o denominado “Campo de Concentração”, para onde eram conduzidos os flagelados, visando um atendimento emergencial conjunto. Sobre esse cenário escreveu Rodolfo Teófilo: “A primeira visita que fiz ao ‘Campo de Concentração’ deu-me a certeza de que em breves dias teríamos ali um ‘Campo Santo’”. Infelizmente, o observador não se enganou.

Apesar da calamidade que se configurava a partir daquele ano e mesmo diante da incisiva atividade da imprensa, não se registrou uma pressão proporcional sobre o Presidente Wenceslau Bráz, permanecendo, mais uma vez, a migração para a Amazônia como a providência já natural e surgindo, a partir de então, outra rota que se tornaria preferencial: sudeste e sul do País.

De 1913 a 1919, num contexto histórico em que o problema do semi-árido parecia ter uma solução bifurcada em uma transposição do São Francisco, voltada a perenizar os rios intermitentes, ou na açudagem, foram realizados pelo Ifocs estudos voltados à primeira alternativa, concluindo, entretanto, pela inviabilidade técnica da obra.

Dessa perspectiva, o estado tecnológico para sua execução na época, em particular as dificuldades na perfuração de um túnel previsto de extensão considerável, ajudou a reforçar a adoção da alternativa de açudagem, defendida pelo então Diretor do Ifocs, Engenheiro Arrojado Lisboa, consolidando, assim, décadas de priorização do que se denominaria, posteriormente, no meio e no jargão técnico, solução hidráulica, rarefazendo-se ao longo dos anos na proporção do declínio orçamentário, em particular no caso das grandes barragens, também pela própria exaustão dos boqueirões viáveis. No final do Século XX, praticamente todas as grandes barragens viáveis no semi-árido dos Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará estariam construídas ou em construção. Assim foi com Castanhão no Ceará, Santa Cruz no Rio Grande do Norte, Jucazinho em Pernambuco e Acauã na Paraíba, que, aliás, foi construída pelo meu Governo.

Um esforço para a redução de distorções e imobilismo histórico em relação ao trato do poder central para com o Nordeste no que dizia respeito pelo menos às ações objetivando uma melhor estruturação da região para o enfrentamento das secas viria com a eleição presidencial do paraibano Epitácio Pessoa, que surpreendeu a classe política com uma mensagem presidencial marcada por arrojado programa de infra-estrutura com forte componente de obras hidráulicas para o Nordeste.

A seca inseparável da fome e da morte, a estrutura de poder local personificada nos coronéis e seus capangas, a adscrição das agências governamentais às oligarquias, fazendo-as pífias no alcance dos objetivos, o oportunismo adensando o uso espúrio dos paliativos de combate às secas durante as emergências, a rara e conveniente alegação da condição de brasileiro validando os recrutamentos forçados para guerras pouco compreendidas pela população local (como a guerra do Paraguai), acabariam por fazer da alternativa de migração um escape atraente para o sertanejo vitimado nessa moenda impiedosa e já então secular.

Na década de 1930, merece destaque a inédita inserção na Constituição de 1934 da obrigação do poder central em atacar de maneira planejada o problema do combate às secas, tendo sido definido um percentual de aplicação de 4% - que seria reduzido para 3% na Constituição de 1946, uma constituição democrática, mas que significou um passo atrás no trato com um problema tão grave em relação ao Nordeste. A efetivação orçamentária na observação constitucional nos anos subseqüentes, infelizmente, ficou longe de se concretizar, embora a definição institucional do espaço geográfico de tais aplicações tenha sido delimitado dois anos depois, através da Lei nº 175/1936, que definiu o Polígono das Secas, compreendendo o semi-árido de todos os Estados nordestinos, à exceção do Maranhão e do Piauí, havendo este último sido inserido posteriormente, assim como o norte de Minas Gerais, através da Lei nº 1.348, de fevereiro de 1951.

            O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - V. Exª me permite um aparte, Senador José Maranhão?

            O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB) - Pois não, Senador Mão Santa.

            O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Estamos atentamente ouvindo e meditando sobre o pronunciamento de V. Exª. Graças à inspiração da Senadora que preside a sessão, gostaria de sugerir a V. Exª que transforme o pronunciamento em livro. Temos Os Sertões, de Euclides da Cunha, Vidas Secas, de Graciliano Ramos, e o Nordeste do hoje Governador João Alves. Agora, o trabalho de V. Exª sobre a situação real do Nordeste, com este pronunciamento, se iguala às obras citadas. O que manifesto aqui é gratidão, porque Deus nos permitiu governar juntos Estados do Nordeste. E V. Exª foi, sem dúvida alguma, uma fonte de inspiração para as realizações que fiz no Piauí; inspirações na experiência e no estoicismo da administração de V. Exª em seu Estado.

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB) - Agradeço a generosidade das referências de V. Exª. Esta modesta contribuição é o interesse democrático de discutir o problema de forma racional, de forma objetiva, pois tenho certeza de que mesmo os Estados nordestinos que ainda não puderam apresentar sua adesão ao projeto não se furtarão ao debate, sempre num clima de equilíbrio, de sensatez e de solidariedade a uma gente como a gente paraibana, que tem conseguido se sobrepor às próprias dificuldades do meio físico adverso para prosseguir sua luta em direção à emancipação econômica e social de seu povo.

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - V. Exª me permite um aparte, Senador José Maranhão?

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB - PB) - Pois não, Senador Ney Suassuna, meu companheiro de partido e de lutas democráticas.

O Sr. Ney Suassuna (PMDB - PB) - Muito obrigado, nobre Senador José Maranhão. Eu me solidarizo com V. Exª pelo pronunciamento, que retrata uma situação importante não apenas para a Paraíba, mas para uma grande região composta pelos quatro Estados: Paraíba, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Ceará. A pesquisa que V. Exª traz ilustra o desejo, o sonho, a luta por esse evento. Esta semana, estive com o Ministro Ciro Gomes, que disse que já está havendo compreensão em relação a esse evento, que o Governo de Minas Gerais não está fazendo mais oposição, que o próprio Estado de Alagoas já não faz tanta oposição em relação ao assunto, e que, na Bahia, a oposição se reduz não ao Governo, mas apenas a um grupo político, e que a única área em que ainda existe alguma reação é Sergipe, pois Pernambuco também passou a apoiar a medida. Fico feliz com isso, pois não se trata de transposição, apenas de uma tomada d’água, o que representa 2% apenas do caudal. Nós, que vivemos na Paraíba e estamos acostumados com a seca, quando o sertanejo tem que levantar o gado e migrar porque não tem o que beber, sabemos da importância de tal medida. Louvo o discurso de V. Exª e me associo a ele, porque essa é uma causa com a qual sonhamos. Ultimamente, estivemos na Paraíba, de cidade em cidade, participando de reuniões tão bem dirigidas por V. Exª, reuniões que obtiveram tanto sucesso e repercussão. Parabéns.

O SR. JOSÉ MARANHÃO (PMDB-PB) - Nobre Senador, louvo o sadio otimismo de V. Exª, aqui recordando uma frase do inesquecível estadista Juscelino Kubitschek de Oliveira: “Louvo o sadio otimismo de V. Exª porque os pessimistas já começam errados”. Tenho certeza de que não demorará muito até que os últimos óbices desapareçam e que prevaleça o entendimento e, sobretudo, a solidariedade nordestina de nossos companheiros de outros Estados que tiveram a ventura de receber em seu território, por uma dádiva de Deus, o velho Chico, com toda a sua generosidade e com todo o seu séqüito de benefícios na irrigação, no abastecimento humano e tudo o mais.

A Paraíba, nesse contexto, se insere como um Estado que vê na transposição não apenas um instrumento de seu desenvolvimento econômico, mas, sobretudo, um instrumento necessário à própria sobrevivência humana de sua população.

Tanto por insuficiência como por subutilização da infra-estrutura hídrica disponível, reflexo do subdesenvolvimento que marcaria o semi-árido nordestino, a seca enfrentada em 1941-1942 reeditou, por parte do Governo Federal, as mesmas medidas de transporte de flagelados para o Sul e a Amazônia (visando suprir de borracha o governo norte-americano na já então deflagrada 2ª Guerra Mundial), cabendo, entretanto, assinalar o refreamento do registro de óbitos em decorrência da seca, o que passaria a ser observável daí em diante, principalmente em função das melhorias de infra-estrutura viária e de transporte, evitando que os flagelados fossem vitimados na precariedade do percurso, quando afluíam para as cidades maiores em busca da sobrevivência.

Ainda com Getúlio Vargas no Poder, foi criada a Chesf (1945) e, posteriormente, através de José Linhares, o já desgastado Ifocs é rebatizado como Dnocs, Departamento Nacional de Obras contra as Secas, cujo orçamento, a cada ano, reduziu-se a percentuais inexpressivos em relação às previsões e, hoje, é simplesmente um fantasma da Administração Pública, não por falta de espírito público do seu corpo técnico e administrativo, mas por absoluto desconhecimento da própria Administração Federal, que esqueceu do grande celeiro de homens capazes, de homens competentes que construíram uma obra extraordinária em todo o semi-árido nordestino.

Os esforços parlamentares empreendidos junto à Constituição de 1946 possibilitariam a criação da Comissão do Vale do São Francisco originária da atual Codevasf, Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco, buscando materializar institucionalmente o reconhecimento da importância do rio São Francisco não apenas para o Nordeste, mas para todo o Brasil. A dádiva natural representada por uma fonte hídrica que, partindo preponderantemente do Estado úmido de Minas Gerais (de onde vêm três quartos da vazão do São Francisco), avoluma-se na direção da área mais seca do Brasil começaria a ter o seu papel cobrado mais diretamente no fomento ao desenvolvimento nacional, e o rio pagou em moeda ambiental, como aliás reza a regra: desenvolvimento custa natureza.

Aqui fazemos um comentário adicional. Embora seja quase uma lei da economia o binômio de que desenvolvimento custa natureza, nem por isso concordamos com essa posição que lamentavelmente o mundo observou até hoje. É possível se fazer desenvolvimento conciliando papel econômico, papel social e papel ambiental.

A exigência da consideração adequada desses custos na equação de decisão tradicionalmente econômica somente nas duas ultimas décadas do século XX passou gradativamente a ocupar lugar necessário na consciência de uma sociedade que precisa pensar-se sustentável.

Da perspectiva científica, dentre as contribuições para o aprofundamento do conhecimento da hidrologia do semi-árido nordestino, o monitoramento das chuvas a partir dos pluviômetros instalados após a criação da inspetoria que originou o Dnocs permitiu uma disponibilidade de informações fundamentais para o planejamento local e regional. Graças a essa coleta de dados, realizada com razoável sistemática, dispõem-se hoje de séries de chuvas com certo adensamento temporal (número de estação com dados em determinado dia, mês ou ano) a partir de 1910.

O retorno de Vargas à Presidência da República coincide praticamente com a ocorrência de mais uma seca no período de 1951 a 1953. Sua abrangência alcançou as plantações de cacau do sul da Bahia, bem como do norte de Minas, áreas cuja precipitação decorre, primordialmente, de outros mecanismos climáticos (frentes frias) que não aqueles atuantes no Nordeste. Não foi a primeira nem a última vez em que a coincidência da ausência dos diferentes mecanismos climáticos responsáveis pelas chuvas nordestinas estendeu a área de impacto da seca. Conforme relato de José Américo de Almeida, o impacto sobre o abastecimento de água das cidades ameaçou de tal forma a população que a possibilidade de evacuação tornou-se concreta. Na Paraíba, a seca alcançou o litoral, reduzindo a precipitação na capital com maior severidade em 1952 e 1953. E diga-se que a capital do Estado da Paraíba, João Pessoa, está localizada numa pequena faixa, numa estreita, mas privilegiada faixa do litoral, onde o regime de chuva, de um modo geral, tem se manifestado satisfatório. O fluxo migratório para São Paulo, Rio de Janeiro e oeste do Paraná estabeleceu-se, facilitado por melhores condições viárias.

Os centros urbanos do Sudeste, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, firmavam-se, cada vez mais, como cenário de projeção da esperança do nordestino ao tomar o destino em suas próprias mãos na decisão de migrar. Assim, movido a esperança, o passivo socioeconômico de séculos, agravado pela dança macabra da seca na arena semi-árida do subdesenvolvimento, da justiça social e do abandono, passaria a engrossar as fileiras proletárias do motor capitalista brasileiro, não sem manifestações contrárias de certa linha de pensamento temeroso de que o aumento das tensões sociais naqueles centros urbanos pudesse trazer problemas locais. Os baixos salários e o subemprego ou o desemprego impuseram à maioria dos imigrantes a favela como moradia.

No Governo JK, iniciado em 1956, é criado o grupo de trabalho que, tendo à frente o economista Celso Furtado, elabora os estudos que dariam formato ao nascedouro da Sudene, Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste, aprovada em dezembro de 1959. No ano anterior a essa aprovação, sobreveio mais uma seca que, alastrando por cerca de 500 mil quilômetros quadrados (relatório da Sudene de 1981), impactou os Estados da Bahia, Ceará, Paraíba, Pernambuco e Piauí.

Celso Furtado entendia o processo de industrialização do Nordeste como inadiável, ao tempo em que expressava sua descrença na sustentabilidade do contingente populacional do semi-árido, que, em parte, deveria ser deslocado para novas fronteiras agrícolas no Maranhão, reconhecendo, posteriormente, essa como “a solução mais simples e imediata” para “o problema mais grave da região”. Ou seja, “a estrutura agrária”, que “ali era a mais anacrônica” que ele já então “conhecera mundo afora”.

Atingindo mais de 600 municípios nordestinos, principalmente no Estado do Ceará, sobreveio a seca de 1970, a primeira durante o Governo militar, tendo então o Gal. Médici à frente do Executivo. O Presidente se fez presente à reunião do Conselho Deliberativo da Sudene, que, desde 1966, havia passado a ser responsável pela concepção do plano de emergência para enfrentamento do problema, onde declarou a necessidade de alocação “de amplos recursos, inclusive externos, em prol de programas de irrigação em áreas selecionadas, além de mencionar ainda o fortalecimento institucional no campo da pesquisa agrícola e a já tradicional colonização das zonas úmidas nordestinas. Também não faltaram as frentes de trabalho e de distribuição de alimentos.

A última grande seca enfrentada pelo Nordeste no período ditatorial ocorreria no período de 1979 a 1984. Os caminhões-pipa, a exemplo do que ocorrera em 1976, dominam a cena das reações governamentais, ao lado das frentes de trabalho, estas alistando um número recorde de nordestinos: 3 milhões de nordestinos foram alistados nas frentes de trabalho!

Em 1981, mais uma vez, dessa feita pelas mãos do potencial candidato à sucessão presidencial Ministro Mário Andreazza, devidamente autorizado pelo General Figueiredo, foram encomendados estudos visando à transposição do São Francisco para os Estados do Ceará, Piauí, Paraíba, Rio Grande do Norte e Pernambuco, cuja apresentação, como solução para o problema, dar-se-ia no ano seguinte, na reunião da Sudene.

Inquestionavelmente, a seca, que, ao longo de quase todo o séc. XX, ameaçava os centros urbanos interioranos, impactava, nas últimas décadas, cidades até então não tão vulneráveis e mesmo capitais, sendo Fortaleza o caso emblemático, levando o Governo do Ceará a empreender emergencialmente, em 90 dias, a construção do chamado Canal do Trabalhador que, com seus mais de 100 Km de extensão, levaria água do rio Jaguaribe, maior bacia hidrográfica do Ceará, para a região metropolitana da capital cearense.

A regularização do Jaguaribe que possibilitava as retiradas pelo Canal do Trabalhador era feita primordialmente pelas liberações do Açude Orós, então o segundo maior reservatório dos Estados do Nordeste setentrional, o qual quase exauriu-se para manter aquele novo atendimento.

Naquele ano, a redução da precipitação registrada em Fortaleza foi proporcionalmente maior do que a registrada na região extremamente seca de Inhamuns, no Ceará. O Ministério da Integração Regional tendo a frente o norte-rio-grandense Aloísio Alves retomou os estudos da transposição do São Francisco para os Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

A idéia era iniciar a obra com caráter emergencial, transpondo inicialmente 150 m³/s, a partir de um ponto e inflexão do São Francisco e a jusante da represa de Sobradinho, na altura da cidade de Cabrobó, em Pernambuco, aliás, ponto esse apontado como captação mais adequada desde os primeiros estudos do século XIX, bem como o primeiro projeto concreto de engenharia elaborado pelo extinto Dnocs - Departamento Nacional de Obras contra as Secas, em 1982. O Governo Itamar Franco terminaria sem que a iniciativa saísse do papel.

No segundo semestre de 1997, a constatação de que se estabelecia no pacífico oriental o “El Niño”, reputado como o mais forte dos últimos 150 anos, levou diversos técnicos e instituições ligadas à área de metereologia e recursos hídricos a relatarem a elevada probabilidade de ocorrência de uma seca de extrema severidade no semi-árido nordestino, a exemplo do próprio Inpe - Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Chega o ano de 1998, e conforme alertado, não chegaram as chuvas, passando o alerta a ter eco no Parlamento e mais espaço na mídia.

As reações governamentais afetas ao problema da seca eram conduzidas pela Sepre - Secretaria Especial de Políticas Regionais, ligada diretamente à Presidência da República, o que conferia ao secretário status de ministro. A tragédia anunciada por órgão do próprio governo e a inércia da não-prevenção, esta última sem nenhuma originalidade em relação a tantas outras situações semelhantes vividas pelo Nordeste, à parte as favoráveis condições de previsibilidade, um agravante sem dúvida, custou o cargo do Ministro paraibano Fernando Catão, que, ao deixar a Sepre, alegou que a não-antecipação de medidas objetivava não causar desemprego na região.

O Governo Federal definiu então uma comissão gestora, presidida pelo Superintendente da Sudene, que assumiu as reações emergenciais, focando a distribuição de cestas básicas, frente de trabalho (rebatizadas estrategicamente de frentes produtivas), caminhões-pipa, em parceria com os governos estaduais; atendimento de saúde às famílias e, curiosamente, talvez buscando um tom de modernidade e originalidade, um programa de alfabetização e capacitação. Foi ainda reiterada (já o havia sido feito na campanha de 1994) pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso a transposição do São Francisco.

Na verdade, os estudos estavam em curso na Sepre desde 1996 e nessa nova versão a secular rota do São Francisco, tendo como ponto mais distante o Ceará (riacho dos Porcos, na Bacia de Jaguaribe), passou a ser denominada de Eixo Norte de transposição, havendo sido inserido - idéia inicialmente por nós proposta.

Eu estava, nessa época, no Governo do Estado da Paraíba e, quando se discutia esse programa, ainda a nível técnico, no Ministério da Integração, sugerimos que se criasse mais um eixo, o chamado Eixo Leste, porque esse eixo atenderia a parte mais seca, mais árida, mais ameaçada pelas secas, que era a região do Cariri paraibano, exatamente o eixo do rio Paraíba, rio seco, como sabemos.

O conjunto formado pelos dois eixos passou a ser denominado Projeto de Transposição do São Francisco para o Semi-árido Setentrional, beneficiando os Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

A dubiedade do discurso oficial no período de FHC em relação à transposição favoreceu, entretanto, o aprofundamento dos estudos em desenvolvimento na Sepre, que deu origem ao MI - Ministério da Integração Nacional, pois dilatou os prazos da equipe técnica, permitindo, inclusive, a elaboração do primeiro EIA - Estudo de Impacto Ambiental e do Rima - Relatório de Impacto no Meio Ambiente para o empreendimento, indispensáveis ao licenciamento ambiental, o qual chegou a ser iniciado em 2000, quando foi possível a realização de audiências públicas presididas pelo Ibama em cidades dos Estados beneficiados. O processo foi suspenso no mesmo ano em virtude de uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público da Bahia, sem a realização de nenhuma audiência pública nos demais Estados da Bacia do São Francisco, à exceção de Pernambuco (Audiência Pública de Salgueiro), beneficiado pelos Eixos Norte e Leste. Também ao fim do Governo Fernando Henrique Cardoso, o projeto não se materializaria para além das dimensões do papel.

O pernambucano Luiz Inácio Lula da Silva, migrante declarado da seca de destino ímpar entre os que alimentaram o fluxo migratório Nordeste-Sudeste, ao assumir a Presidência da República em 2003, reconhecidamente inovou em termos de atenção institucional em relação ao problema da seca, em particular no que se entendeu por importância de uma transposição do São Francisco como projeto de potencial contribuição ao contexto da falta de água no semi-árido brasileiro. Em 11 de junho de 2003, promulgou decreto designando à Vice-Presidência da República a coordenação de um Grupo Interministerial formado pelo Ministério da Integração Nacional, Ministério do Meio Ambiente, Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, Ministério da Fazenda e Casa Civil, com a finalidade de “analisar propostas existentes e propor medidas para viabilizar a transposição de águas para o semi-árido nordestino”.

O Vice-Presidente da República, José Alencar, empenhou-se pessoalmente na missão, promovendo audiências públicas nos Estados da bacia do São Francisco e Estado do Tocantins e nos demais Estados com inserção no semi-árido; reuniões com órgãos financeiros nacionais e internacionais; discussão no Senado e na Câmara dos Deputados; debates técnicos, articulações políticas etc., resultando no chamado Plano São Francisco Plano de Sustentabilidade Hídrica do semi-árido brasileiro, consolidado em um relatório técnico conclusivo, outubro de 2003, apresentado e aprovado pelo Presidente Lula e Ministérios envolvidos com o problema.

Na verdade, o Relatório Técnico Conclusivo não se limitou à finalidade constante no decreto de 11 de junho de 2003, propondo um plano de largo espectro, sintetizado por cinco componentes: Programa de Revitalização do São Francisco, Projetos de Integração de Bacias Hidrográficas, Projetos de Acumulação e Distribuição de Água, Ações Localizadas de Infra-estrutura e Ações de Gestão de Recursos Hídricos. A transposição de águas para o semi-árido setentrional foi inserida em um contexto mais amplo passando a constar como uma das providências dentre os projetos de integração de bacias visando à sustentabilidade hídrica para o semi-árido brasileiro.

O Plano São Francisco foi proposto como um conjunto de medidas de longo prazo - a revitalização do São Francisco, por exemplo, tem horizonte inicial de desenvolvimento ao longo de vinte anos -, com vistas a eliminar o fator água como restrição ao desenvolvimento regional. No seu estágio atual, no que concerne à integração do São Francisco com os Estados de Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, aguardamos a conclusão do processo de licenciamento ambiental por parte do Ibama, o que acreditamos deverá ocorrer nas próximas semanas, haja visto estarem cumpridas todas as etapas previstas em lei para concessão de licença, permitindo o início do processo licitatório da obra.

Perceber que a sustentabilidade hídrica para o desenvolvimento da maior parte do semi-árido setentrional, em algum horizonte de tempo, dependerá da bacia do rio São Francisco tanto quanto os Estados de Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas é perceber o óbvio.

Geralmente, os debates de participação pública realizados sobre o tema da integração do São Francisco tendem a assumir feições maniqueístas. Para os que se contrapõem ao projeto, dentre outros argumentos apresentados com relevante freqüência, tem-se a visão de que uma transposição representaria uma decisiva ou até fatal agressão ambiental ao São Francisco, esquecendo que, em termos de vazão, retirada o empreendimento transposição é menor do que muitos implantados e em implantação na bacia, praticamente isentos de tal resistência de base escatológica, “inocentados” pura e simplesmente por sua localização geográfica (dentro da bacia). 

O exercício dogmático da discussão parece se tornar particularmente atrativo quando o foco é de natureza ambiental. Nesse caso, o imperativo da causa (ecológica), por si, basta como excludente da alternativa da sustentabilidade hídrica do semi-árido setentrional através de uma transposição a partir do São Francisco.

A integração proposta pelo Governo Lula propõe a retirada de ínfimos 26 m3 por segundo para abastecimento humano na situação de excesso de disponibilidade de água no São Francisco (Sobradinho sangrando) o bombeamento de 64m³/s em média (já incluídos os 26m³/s para abastecimento humano), atingível no 25º ano após as obras haverem sido concluídas.

O Plano Decenal da Bacia Hidrográfica do São Francisco, elaborado pela ANA - Agência Nacional de Águas e acompanhado pelo próprio Comitê da Bacia do São Francisco, demonstrou que, mesmo no cenário de desenvolvimento mais favorável no qual o País cresceria a taxas acima de 8% ao ano, será preservada com grande folga a água para o desenvolvimento na própria bacia do São Francisco, posto que o volume retirado pela integração com o semi-árido setentrional é irrisório. Para fornecer uma idéia do que significa essa vazão, tomemos a hidroelétrica de Itaparica, que, na cota máxima (equivalente ao volume máximo), apresenta um espelho d’água de 828km² e, finalmente, considerando uma evaporação média de 6mm/dia, a vazão máxima retirada pela transposição em um dia de funcionamento após 25 anos da implantação evapora em apenas dois dias em Itaparica.

Comparando-se agora com Sobradinho, imaginemos aquele reservatório com armazenamento médio, digamos, entre as cotas 385,67 (13,22 bilhões de m³) e 386,37 (14,69 bilhões de m³). Se um operador, realizando leitura diária do nível d’água, equivocar-se em apenas 1cm nessa leitura (evento totalmente factível, dada a ocorrência em ondas em Sobradinho várias vezes maiores que esse valor), ele estará errando no armazenamento por cerca de 21 milhões de m³. Caso seja retirada uma vazão de 242m³/s em 24 horas (equivalente aos 21 milhões de m³), na próxima leitura diária ele sequer terá condições de perceber essa retirada, quatro vezes maior do que a retirada média para os eixos norte e leste, após 25 anos de sua implantação.

É sabido que o projeto da transposição está dividido em duas etapas: uma etapa drenará aquela quantidade ínfima de 26 metros, e a segunda etapa se dará depois de 25 anos.

Quanto à energia elétrica, a recuperação da energia necessária ao acionamento do sistema eixo norte é superior a 2/3, ou seja, a potência instalada é de 214MW.

Só para resumir esse tópico sobre o aspecto de geração de energia e consumo versus geração de energia elétrica, o projeto da transposição recupera dois terços da energia consumida no bombeamento.

Há uma forte incidência de aspectos relacionados com eqüidade social na tomada de decisão de implantação de uma transposição, isso, à parte a questão do futuro agravamento do desequilíbrio do balanço hídrico nas bacias do semi-árido setentrional. Também validado no plano legal - o São Francisco é um rio de ingerência federal -, a equidade social referida consiste na equiparação de condições entre os cidadãos que habitam o semi-árido setentrional com os cidadãos que habitam a bacia do São Francisco, no acesso às águas de domínio da União, cujo corpo hídrico principal concentra 70% da água disponível na região. O São Francisco, sendo um rio da União, não comporta, na temática que envolve o acesso e uso sustentável das suas águas, nenhuma distorção de base meramente geográfica que impute a brasileiros nascidos fora dos limites da bacia tratamento inferior em relação ao dispensado aos nascidos nos Estados são-franciscanos. Todos são cidadãos brasileiros.

Finalmente, ressalte-se que o projeto de integração proposto, contextualizado no espaço formado por todas as dimensões influentes na questão da sustentabilidade hídrica do semi-árido nordestino, representa uma resposta histórica a um problema cujas conseqüências socioeconômicas, já seculares, extrapolam os limites do Polígono das Secas, influenciando negativamente o País inteiro, com repercussão no exterior, fatores suficientes como apelo ético e moral às forças políticas representativas desta Nação brasileira, para convergirem em apoio à iniciativa que, certamente, merecerá o aplauso das presentes e futuras gerações.

Era o que tinha a dizer, Srª Presidente, agradecendo, mais uma vez, a generosidade de V. Exª em relação ao exíguo tempo que me restava para este pronunciamento. Sem a sua generosidade não teria sido possível fazê-lo. Ao mesmo tempo, V. Exª, que esposou algumas divergências em relação a esse projeto, também o faz com espírito democrático e com grandeza.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 03/09/2005 - Página 30067