Discurso durante a 163ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Reflexão acerca dos costumes ou vícios ue nutrem e eternizam a corrupção.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA NACIONAL.:
  • Reflexão acerca dos costumes ou vícios ue nutrem e eternizam a corrupção.
Publicação
Publicação no DSF de 22/09/2005 - Página 31682
Assunto
Outros > POLITICA NACIONAL.
Indexação
  • ANALISE, CORRUPÇÃO, AMBITO, CULTURA, BRASILEIROS, REGISTRO, DADOS, PESQUISA, OCORRENCIA, ACEITAÇÃO, IRREGULARIDADE, FALTA, ETICA, CONDUTA, MORAL, IMPORTANCIA, DEBATE, CIDADANIA.

O SR. JEFFERSON PÉRES (PDT - AM. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, em 1949, o humorista Aparício Torelly, imortalizado como Barão de Itararé, já sentenciava com sua ironia tipicamente corrosiva: “Negociata é um bom negócio para o qual não fomos convidados”.

O chiste fere uma tecla sensível e profunda da cultura brasileira, confirmando a eterna juventude do riso que castiga os maus costumes, neste momento em que a esfinge da crise ético-política nos desafia com o enigma: se todos - ou quase todos - repudiam a corrupção, por que continua sendo tão difícil combatê-la e puni-la?

Finalmente, nós, brasileiros, temos a oportunidade de enfrentar essa questão com apoio em evidências factuais sistematicamente quantificadas pela Pesb (Pesquisa Social Brasileira).

Esse estudo científico de campo, financiado pela Fundação Ford e realizado pelo instituto Data UFF (da Universidade Federal Fluminense) em 2002, sob a coordenação do cientista político Alberto Almeida, envolveu amostra probabilística de abrangência nacional composta de 2.364 entrevistados.

Os resultados da Pesb nos impõem uma reflexão séria e madura acerca dos costumes - ou, mais precisamente, dos vícios - que nutrem e eternizam a corrupção.

A chave para compreender sua insidiosa onipresença reside no fato de que ela se manifesta cotidianamente entre nós sob a forma cordial e aparentemente inocente do jeitinho brasileiro - jeitinho que o professor Almeida define como aquela vasta “zona cinzenta” que obscurece a noção do certo e do errado, porque, no Brasil, nos acostumamos a julgar o certo e o errado em função do contexto e das circunstâncias, o que varia sempre de caso para caso.

O grosso da população brasileira, refletida na amostra da Pesb, não se limita a tolerar o jeitinho, mas o utiliza amplamente na vida cotidiana.

Perguntados se, alguma vez na vida, os entrevistados deram um jeitinho em proveito próprio ou em benefício de alguém, dois terços responderam que sim. É bem provável que esse percentual seja até mais elevado, pois muitos dos informantes com pouca ou nenhuma escolaridade manifestaram ignorar o sentido da expressão “dar um jeitinho”, o que não os impediria de aplicá-lo na vida prática.

Um dado preocupante é que os mais jovens usam o jeitinho mais freqüentemente que os idosos. Isto faz prever que ele e sua irmã gêmea, a corrupção, terão um longo futuro pela frente na nossa sociedade.

            Na seqüência, o questionário pediu ao entrevistado que classificasse um elenco de 19 situações hipotéticas em três categorias dispostas em graduação: o benigno “favor”, o ambíguo “jeitinho” e a maligna “corrupção”.

O favor foi claramente identificado nas seguintes situações:

1 - Emprestar dinheiro a um amigo (90%).

2 - Emprestar ao vizinho uma panela ou fôrma de bolo (89%).

3 - Na fila do supermercado, deixar passar na frente quem tem poucas compras (67%).

4 - Guardar o lugar na fila para alguém que vai resolver um problema (62%).

            Os respondentes não tiveram dúvidas em rotular como corrupção outros sete tipos de comportamento, a saber:

1 - Usar cargo no governo para enriquecer (90%).

2 - Pagar o funcionário da companhia elétrica para fazer o relógio marcar um consumo menor (85%).

3 - Dar 20 reais para o guarda de trânsito a fim de não ser multado (84%).

4 - Descobrir maneira de pagar menos impostos sem que o governo perceba (83%).

5 - Ter dois empregos, mas só trabalhar em um deles (78%).

6 - Fazer um “gato” ou “gambiarra” de energia elétrica (74%).

7 - Ter, ao mesmo tempo, uma bolsa de estudo do governo e um emprego, o que é proibido, mas o bolsista esconde a verdade (74%).

            E quais os comportamentos mais nitidamente carimbados como jeitinho? Foram seis e aqui estão eles:

1 - Dar boas gorjetas ao garçom do restaurante para, quando voltar lá, não precisar esperar na fila (59%).

2 - O gerente do banco encontra um conhecido que está com pressa e o ajuda a passar na frente da fila (56%).

3 - O conhecido do médico consegue passar na fila do posto de saúde (50%).

4 - A mãe conhece o funcionário da escola e passa na frente da fila de matrícula (50%).

5 - A pessoa consegue empréstimo do governo, mas o dinheiro demora a sair. Ela, então, recorre a um parente no serviço público que consegue liberar o financiamento mais rápido (45%).

6 - Pedir a um amigo que trabalha no serviço público para tirar um documento mais rápido que o normal (43%).

Neste ponto, o professor Almeida se detém rapidamente em algumas observações importantes. A primeira delas é que, ao contrário dos empréstimos de dinheiro ao amigo e da panela ao vizinho, que se esgotam numa relação de favor privado entre duas partes, a fila é um espaço público, com a posição de cada um determinada pela ordem de chegada. Portanto, deixar alguém passar na frente porque tem poucas compras, ou guardar o lugar para quem tem outras coisas para resolver equivale à invasão desse espaço por uma lógica privada, uma situação rigorosamente inconcebível em outros países, como os Estados Unidos.

A maioria das situações classificadas como corrupção está fora do alcance da maioria dos brasileiros: enriquecer em cargo público, driblar o fisco, ter dois empregos, ou conseguir bolsa de estudos.

Note-se ainda, Sr. Presidente, que 64% dos brasileiros não têm carro, o que torna mais difícil a essas pessoas imaginar-se pagando propina ao guarda de trânsito.

Já aqueles comportamentos classificados como jeitinho, dentre os quais furar fila no posto de saúde, na matrícula escolar ou no banco, se enquadram no horizonte da vida prática da maioria das pessoas, ricas ou pobres, famosas ou anônimas, tenham ou não parentes ou amigos importantes. Em contraste com a corrupção, na qual a solução de um problema sempre envolve o nexo impessoal do dinheiro, o jeitinho manipula relações pessoais, mobilizando a boa vontade de amigos ou mesmo conhecidos.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, por último, a Pesb submeteu a uma prova de fogo os conflitos e ambigüidades que marcam a nossa moral coletiva contemporânea. Isso se traduziu nas clivagens, ou diferenças, demográficas, socioeconômicas e regionais das respostas dadas a três situações críticas. Embora classificadas predominantemente como jeitinho (as duas primeiras) ou corrupção (a terceira), elas produziram alto grau de discordância entre os entrevistados. Ei-las:

- Pedir a um amigo que trabalha no serviço público para ajudar a tirar um documento mais rápido que o normal.

- A pessoa consegue empréstimo do governo mas o dinheiro demora a sair. Ela, então, recorre a um parente no serviço público que consegue liberar o financiamento mais rápido.

- Um funcionário público recebe presente de Natal de uma empresa que ele ajudou a ganhar um contrato no governo.

O perfil das respostas nos três casos é revelador da extrema heterogeneidade da cultura cívica brasileira.

Assim, os jovens tenderam a considerar as três situações mais como corrupção do que os idosos. A contradição com um resultado anterior é apenas aparente: se a nova geração usa mais o jeitinho ao mesmo tempo que mais o condena, isso, provavelmente, se deve ao fato de que encontra, hoje em dia, um leque limitado de oportunidades.

Em segundo lugar, quem mora na capital foi mais incisivo na condenação dos três casos como corrupção do que quem mora no interior.

Em terceiro lugar, a parcela que trabalha (ou seja, pertence a população Economicamente Ativa) mostrou-se mais intolerante com a corrupção do que a parcela fora da PEA. Muitos neste grupo exibiram uma visão positiva das três situações como favor.

Em quarto lugar, o Nordeste se singulariza entre as demais regiões do País no sentido de que seus habitantes tenderam a considerar os três casos mais como favor. Como sintetiza o coordenador da pesquisa: “A maioria dos entrevistados nordestinos acha o jeitinho certo, enquanto a maioria dos entrevistados do Sul e do Sudeste o considera errado”.

Em quinto lugar, nos casos do presente de Natal e do funcionário amigo que acelera a expedição do documento, os respondentes de baixa renda tenderam a vê-los mais como favor, enquanto os entrevistados de renda mais alta encararam ambas as situações sob a ótica menos benigna do jeitinho.

Em sexto lugar, a tolerância à corrupção diminui com o aumento do nível de escolaridade.

Isso se evidencia principalmente no caso do presente de Natal, que 72% dos entrevistados com nível superior estigmatizaram como corrupção, contra apenas 20% dos analfabetos.

Mas, nos outros dois casos (expedição mais rápida de documento e liberação rápida de empréstimo), quando se passou do nível de escolaridade média para o superior, houve uma diminuição na proporção dos que afirmam tratar-se de corrupção e um simultâneo aumento dos que se dispõem a encarar ambas as situações como jeitinho. Trocando em miúdos, a elevação do nível de escolaridade da população é condição necessária, mas não suficiente para fortalecer a intolerância à corrupção. E o obstáculo a esse progresso reside justamente nos setores com mais alto grau de educação.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, boa parte dos conflitos que dilaceram o cotidiano dos brasileiros resulta da oposição entre o jeitinho, que é muito difundido e enraizado, de um lado, e a grande discordância quanto ao seu julgamento moral, de outro.

A universalização da cidadania depende de um firme consenso da sociedade acerca das regras que diferenciam o certo do errado, regras perante as quais todos, sem exceção, sejam iguais.

Sem leis efetivamente válidas para todos, se o certo e o errado variam conforme as circunstâncias de cada um, fica muito difícil reclamar e obter tratamento impessoal.

A Pesb comprovou que quanto maior é a aceitação do jeitinho, maior também é a tolerância à corrupção.

Afinal, entre furar uma fila e roubar dinheiro público, a diferença é de gravidade, mas não de natureza das ações, pois em ambos os casos regras ou leis foram violadas.

Todos nós, detentores de maior ou menor parcela de responsabilidade no processo de formação da opinião pública, somos agora desafiados a dar um exemplo à sociedade brasileira, olhando corajosamente no espelho da Pesb.

Chega de auto-ilusão, pois existe um elo íntimo e fatal entre o jeitinho nosso e a corrupção “deles”. Trata-se de problema cultural, que só o tempo haverá de curar.

Muito obrigado!

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/09/2005 - Página 31682