Discurso durante a 172ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentários sobre filme e livro a respeito da vida e morte do jornalista Vladimir Herzog.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comentários sobre filme e livro a respeito da vida e morte do jornalista Vladimir Herzog.
Publicação
Publicação no DSF de 05/10/2005 - Página 33981
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • RECOMENDAÇÃO, LIVRO, FILME, BIOGRAFIA, JORNALISTA, VITIMA, HOMICIDIO, DITADURA, REGIME MILITAR, ELOGIO, VIDA, EXERCICIO PROFISSIONAL.
  • REGISTRO, ENCAMINHAMENTO, REQUERIMENTO, SOLICITAÇÃO, SESSÃO SOLENE, HOMENAGEM POSTUMA, JORNALISTA.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente Senador Renan Calheiros, Srs. Senadores, Dossiê-Herzog - Prisão, Tortura e Morte no Brasil”, de Fernando Pacheco Jordão, e Vlado - 30 Anos Depois, de João Batista de Andrade, um filme que encerra um extraordinário depoimento sobre o que foi Vlado Herzog e a extraordinária tragédia que o acometeu. Recomendo muito a todos os brasileiros e a todos os Senadores que leiam esse livro, agora em sua edição especial de 30 anos, de Fernando Pacheco Jordão, como também o documentário de João Batista de Andrade.

Nem que quiséssemos, daria para ignorar que a morte de Vladimir Herzog, o Vlado dos amigos, mudou a história do Brasil. A ditadura militar que se instalou em 1964 deixou de ser a mesma depois de 25 de outubro de 1975, quando Vlado foi assassinado nos porões da Operação Bandeirantes, ou DOI-CODI. Ficava na rua Tutóia, infelizmente no bairro do Ibirapuera, o belo parque de todos, desenhado por Oscar Niemayer, com paisagismo de Roberto Burle Max. Na época era um endereço tenebroso. De um lado ficava o Centro de Tortura. Do outro, o parque sujo e abandonado.

A morte de Vlado mudou os rumos da ditadura, mas não por ser a primeira. Há quem diga que foi porque ninguém agüentava mais tantas mortes e torturas. Outros buscam explicações na conjuntura política da época, na mudança dos métodos de um ditador para outro, ou mesmo nos primeiros sinais de fraqueza do regime militar. Certo é que a ditadura ficou muito mais frágil depois que Vlado morreu. De nada adiantou baixar tantos decretos, inventar a austeridades onde havia manchas de sangue. Dois anos depois da morte dele, esta Casa, o Senado Federal, aliás, todo o Congresso Nacional, a pretexto da reforma do Judiciário, foi fechado mais uma vez por quatorze dias. De que serviu? Alguém se lembra do porquê? Que desculpa deram eles? E que resultados trouxeram? Quase ninguém lembra disso. Mas todos sabem da tragédia que pôs fim à vida de Vlado.

Naquele lugar, na Rua Tutóia, onde hoje funciona uma delegacia de polícia comunitária, muitos brasileiros perderam a vida antes dele. Como Flavio Molina, que, no próximo dia dez, terá o que resta do corpo trasladado de São Paulo para o Rio, após a confirmação de que se trata dele mesmo, por exames de DNA feitos pela família em um corpo enterrado com outro nome. Ou como Virgílio Gomes da Silva, cujo laudo do Instituto Médico Legal de São Paulo demonstra que foi golpeado até a morte, mas faz uma ressalva: “o coração estava intacto”. São só dois exemplos dos extremos a que chegaram os que não podiam ouvir falar em democracia, em liberdade, em poesia, em sensibilidade. Havia o crime de pensamento. Pelo caminho ficaram muitos e muitas. Outros convivem até hoje com o fantasma da tortura. Vlado não foi o primeiro nem o único, mas seu martírio assumiu uma representação tão grande que, pela primeira vez desde o golpe, as vozes não se calaram mais diante da crueldade e do autoritarismo.

Conheci Vladimir Herzog. Quando comecei a trabalhar, em 1975, na revista Visão, ele era editor de cultura, substituído depois por Rodolfo Konder. Naquela época, a censura penalizava não apenas a imprensa, mas também os livros, o teatro, a música e o cinema. Vlado era homem de cultura, ou seja, daquilo que a ditadura censurava. De vez em quando, aparecia com volumes de romances, ensaios, contos em espanhol ou inglês. Temos de agradecer a alguns livreiros que conseguiam, por baixo do pano, trazer livros novos para o Brasil. Não fossem eles, estaríamos definitivamente isolados da Literatura que se publicava no resto do mundo.

Vlado gostava de cinema, pensava ser cineasta, queria fazer filmes documentários, entender e explicar o mundo, e de forma artística. Já era jornalista, ia atrás da notícia, perguntava, pesquisava. E ,juntava os acontecimentos a imagens bem enquadradas, com cortes perfeitos. Era comum, ao discutir uma matéria com ele, o repórter sair não com uma pauta, mas com o roteiro na mão. Juntava o cinema e o jornalismo. O resultado foi a televisão, que ele adorava porque poderia atingir um número maior de pessoas. Vlado via no telejornal a possibilidade de transformar instantaneamente, mas também o que outros teóricos desprezam: o aprofundamento da notícia, o contexto em que se davam os fatos, o histórico de cada um deles. “Nada acontece ao acaso” - dizia aos mais moços. “Nós lidamos com fatos, e eles estão inseridos num determinado momento, num lugar, numa sociedade. São uma história com passado e presente e vão interferir no futuro. O bom jornalismo é o que tem começo, meio e fim” - falava como o professor que foi de tanta gente nova.

Foi procurando esse caminho que foi trabalhar por um bom tempo na BBC de Londres, onde também estava Fernando Pacheco Jordão, outro grande jornalista e um dos seus melhores amigos. Naquele tempo, aqui no Brasil, o telejornal tinha algumas experiências, com o Repórter Esso, da TV Tupi, e o Show de Notícias, da TV Excelsior. Mas o noticiário era oficial, cheio de inaugurações militares, sem nenhum questionamento.

Vlado e Fernando Jordão trouxeram consigo da Inglaterra um jeito novo de fazer telejornal, que aprimoraram com o jeitinho brasileiro. Fernando foi para a TV Cultura, estatal, na certeza de poder produzir o melhor do que era possível naquelas ocasiões. Foi assim que fez uma belíssima novela, “O Feijão e o Sonho”, por exemplo. E com um outro produto em parceria com a TV Globo, que despontava ainda como Vila Sésamo. Quem é que não se lembra do Garibaldo? Em seguida, já diretor de jornalismo, iniciou o telejornal Hora da Notícia, para o qual levou Vlado como editor. João Batista de Andrade, outro amigo dos dois, - hoje cineasta reconhecido que o homenageia com o filme “Vlado, 30 anos depois”, e atual secretário estadual de cultura de São Paulo - foi como repórter especial.

“Vlado era um bom fechador”, lembram os colegas de redação. Diante de uma matéria difícil, os repórteres gritavam: “Vlado, vem salvar a minha matéria!” E lá ia ele buscar soluções com imagens de arquivo, ou com um texto explicativo, mas agradável de ouvir. Sempre comentava: “texto tem que ter música, tem que ter ritmo“. E ensinava, procurando junto a melhor saída em português, uma língua que nem foi a primeira que aprendeu.

Vlado nasceu na antiga Iugoslávia e desde pequeno soube o que era perseguição. Sua família, judia, teve que fugir das tropas nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Vieram para o Brasil, como tantos outros judeus. Ele era um bom menino e aprendeu a ser calado. Nesta semana, quando se comemora o Shana Tovah, o ano novo judaico, que está em 5.766, quero lembrar do Vlado Herzog judeu e universal, o amigo meio quieto que se expressava por seu ofício e pela arte. Um perseguido do nazismo jamais engoliria a censura, jamais deixaria de amar e procurar a liberdade.

Foi assim que, na redação da TV Cultura, criou-se um sistema que já faz parte da história do jornalismo paulistano: como as proibições da censura chegavam por telex, todas eram pregadas na parede, uma abaixo da outra. A parede ficou coberta por esses telegramas, que ficavam lá, expostos para todos. Quem quisesse saber se determinado assunto estava censurado, era só olhar. Se não houvesse proibição, “mandava ver” na matéria. Isso tem um significado muito importante: Fernando e Vlado, assim, não permitiram que a censura entrasse no coração do seu pessoal, que era jovem. Não havia autocensura no Hora da Notícia. A censura era oficial, e suas ordens eram entendidas de forma literal.

Há alguns casos famosos. Era proibido, por exemplo, citar o nome de dom Helder Câmara, por exemplo, que na época se tornou crítico do regime militar. No Hora da Notícia, quando se referiam a ele, os textos eram escritos assim: “o arcebispo de Recife e Olinda disse isso e aquilo...”

(Interrupção do som)

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Sr. Presidente, peço uma ligeira tolerância dada a relevância deste tema.

O SR. PRESIDENTE (Ramez Tebet. PMDB - MS) - Com muita honra, V. Exª tem prorrogado seu tempo por dois minutos.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP) - Muito obrigado, Sr. Presidente.

Outra coisa proibida era a palavra “crise”, principalmente quando se referia ao petróleo...

No dia 23 de outubro - há 30 anos -, depois de ele ter sido avisado que deveria ir ao DOI-CODI, resolveu se apresentar na manhã do dia 24. Ao terminar aquele dia, eis que Vlado havia sido morto nas dependências do DOI-CODI.

Sr. Presidente, vou continuar esta história, porque, da mesma maneira que o Senador João Capiberibe, também apresento requerimento para que, na semana do dia 25 de outubro, possamos aqui relembrar os 30 anos da morte de Vlado.

Há passagens impressionantes neste Dossiê Herzog.

À página 35, Fernando Pacheco Jordão traz o impressionante relato de como a mulher de Vlado, Clarice, gritou aos seus amigos e aos brasileiros, quando os diretores da TV Cultura e quatro outras pessoas foram, de terno e gravata, à sua casa, e ficaram em silêncio sem dizer o que efetivamente tinha ocorrido com Vlado, que ela sabia estava preso nas dependências do DOI-CODI. Ela própria percebeu o que havia ocorrido e disse a todos aqueles que estavam próximos e a todos os brasileiros:

“Mataram o Vlado!

Mataram o Vlado! Eles mataram o Vlado! O Vlado, que não tinha nada, não fez nada, e eles mataram o Vlado!”

O livro de Fernando Pacheco Jordão e o filme de João Batista de Andrade sobre Vlado, contribuem para o melhor conhecimento de uma tragédia. É da maior importância que conheçamos bem a história de Vladimir Herzog para que nunca mais permitamos que tais crimes e ofensas contra a pessoa humana se repitam no Brasil e para que a sua dedicação à causa da liberdade de expressão, liberdade de imprensa e à democracia sejam para nós uma luz permanente em nossa história.

            Assim, Sr. Presidente, encaminho à Mesa requerimento para que possa, na semana do dia 25 próximo, ser a Hora do Expediente dedicada a Vladimir Herzog.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 05/10/2005 - Página 33981