Discurso durante a 206ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração do centenário de nascimento de Afonso Arinos de Melo Franco.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração do centenário de nascimento de Afonso Arinos de Melo Franco.
Publicação
Publicação no DSF de 24/11/2005 - Página 40702
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, AFONSO ARINOS, EX SENADOR, PROFESSOR, PROMOTOR DE JUSTIÇA, JORNALISTA, EX-DEPUTADO, EX MINISTRO DE ESTADO, ITAMARATI (MRE), PARTICIPAÇÃO, ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS (ABL), AUTORIA, MANIFESTO, CLASSE POLITICA, REPUDIO, ESTADO NOVO, PARTICIPANTE, ASSEMBLEIA CONSTITUINTE, APOIO, REDEMOCRATIZAÇÃO, PAIS.
  • REGISTRO, ESCRITOR, INFLUENCIA, ATUAÇÃO, VIDA PUBLICA, AFONSO ARINOS, EX SENADOR, DEFESA, DEMOCRACIA, LIBERALISMO, LEGALIDADE, PARTIDO POLITICO, COMUNISMO, LIBERDADE, ATIVIDADE ARTISTICA, INDEPENDENCIA, POLITICA EXTERNA, INCENTIVO, PARTICIPAÇÃO, BRASIL, COMBATE, NAZISMO, ELOGIO, INICIATIVA, CRIAÇÃO, LEGISLAÇÃO, REPUDIO, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, APOIO, DIREITOS, NEGRO.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a genealogia, em seu estrito sentido, rezam os dicionários, é o estudo da ciência com a finalidade de determinar a origem das famílias. Mas é necessário vê-la também como algo fundamental para o conhecimento da vida de um povo: é este o entendimento de Michel Foucault ao considerar seu objeto “identificar as relações do poder que deram origem a idéias, valores ou crenças”.

É nessa perspectiva que se deve situar a singularmente múltipla personalidade de Afonso Arinos de Melo Franco, num instante em que a Nação faz memória do centenário de seu nascimento. A moldura é das Gerais, Minas é o coração do Brasil e, diria Alceu Amoroso Lima “o mineiro é o tipo mais representativo de um fenômeno de equilíbrio e superação de extremos a que cabe naturalmente a denominação de centrismo”. A circunstância, gassetianamente, a sua linhagem, cujo genearca é Afrânio de Melo Franco, casado com Sílvia Alvim de Melo Franco, filha de Cesário Alvim, Governador de Minas Gerais, Prefeito do Distrito Federal e Ministro da Justiça.

Tal é a sua devoção paterna que o levou a se recolher durante anos, num intervalo da estuante atividade política, para, com o estímulo de D. Anah, companheira de toda a sua vida, a biografá-lo em Um Estadista da República, obra no gênero só comparável - permitam-me o sentimento de pernambucanidade - ao Um Estadista do Império, do também político e escritor, Joaquim Nabuco, igualmente reverente à vida pública de seu genitor, o Conselheiro Nabuco de Araújo. Ao dedicar o livro ao amigo e memorialista Senador Luís Viana Filho, Afonso Arinos revela que lhes prendem entre tantos laços “o gosto pela biografia, o culto da imagem paterna, o amor pela tradição artístico-cultural brasileira”.

Nos séculos XIX e XX, muitos de seus ascendentes se notabilizam, como políticos e diplomatas, atividades, a meu juízo, irmãs, vez que nestes tempos de mundialização desaparecem os limites que separaram o interno e o externo no exercício do poder estatal. Muitos deles foram também intelectuais de craveira. Aliás, o Arinos do Afonso somente foi incorporado a seu nome já na adolescência em homenagem a tio homônimo: Afonso Arinos de Melo Franco, irmão de seu pai, jornalista e escritor, nos legou Os Jagunços sobre a guerra de Canudos e os “Sertões”, publicados no entretempo dos séculos XIX e XX, e posteriormente, bem antes da Semana de Arte Moderna, Lendas e Tradições Brasileiras, é reconhecido como um dos precursores da literatura regionalista.

Acentue-se, também, haverem sido, o homenageado, o filho - Afonso Arinos de Melo Franco -, e seu tio, membros da Academia Brasileira de Letras, constituindo-se talvez na maior densidade de integrantes do Sodalício numa mesma família.

Fora dos limites do entorno familiar, Afonso Arinos pôde, no exterior, absorver “o sentimento do mundo” de que fala Carlos Drummond, ao se privilegiar de convivência, enquanto jovem, com autores ou leituras de obras que influíram em seu itinerário intelectual como o Professor Séchaye, editor da obra de Saussure, um dos maiores lingüistas da Europa, e o Professor Guglielmo Ferrero, que, segundo ele, “me recebia com um ar muito paternal”. Ferrero é autor do livro Poder. Os gênios invisíveis da cidade, um dos clássicos fundadores da moderna Ciência Política, obra referida por várias gerações de pensadores como Ortega, Duverger e Bobbio. Ferrero analisa, de forma inovadora, no início da década de quarenta do século passado, o estudo da ontologia do poder, através de uma categoria fenomenológica: a legitimidade, algo - frise-se - distinto da legalidade.

Em sua visão, ressalta que o poder necessita para sobreviver a algo mais que a coação. O poder para alcançar estabilidade - ou governabilidade, na semântica de nossos tempos - precisa de legitimidade, de livre assentimento dos habitantes da cidade, compreendida enquanto polis. Essa lição do mestre italiano cravou profundamente o pensamento de Arinos na vida pública. Ferrero era possuidor, segundo Arinos, “de imenso conhecimento da história européia, aliado a uma reveladora intuição sociológica e política”, observara, antes de Hitler chegar ao poder não ser “o fascismo exclusivamente italiano, como pretendia Mussolini e que marchava para um impasse mundial, do qual não poderia sair sem uma tragédia”. E os fatos mostraram que os seus desdobramentos ultrapassaram as penínsulas itálica e ibérica e se refletiram sobre o nosso continente, especialmente na América Meridional.

Arinos devotava igualmente atenção especial a Thomas Morus. Sugeriu, em 1980, que a Editora da Universidade de Brasília, de cujo Conselho Editorial foi membro, publicasse a tradução que sua esposa Anah fizera de A Utopia, com uma apresentação por ele preparada. Em seu texto assinala: “Thomas Morus foi um dos mais genuínos representantes do humanismo renascentista. As características essenciais dessa escola de pensamento e de arte aparecem conjugadas na sua obra maior, A Utopia, e nos lances dramáticos de sua vida. O destino terreno do homem interessava-lhe mais que o seu destino transcendente. Mas a transcendência religiosa permanecia para ele, como explicação e apoio da vida humana”. E acrescenta uma nota curiosa: a “ligação entre A Utopia e o Brasil, ou seja, a identificação da ilha brasileira de Fernando de Noronha, mencionada na carta de Vespúcio, que mais serviu de roteiro ao livro de Morus. Esta sugestão que ainda hoje me parece válida, foi feita no meu livro O índio brasileiro grande e a revolução da França...”.

Morus, nascido em meados do século XV na Inglaterra, foi advogado, escritor e, mais que político, um estadista. Eleito para a Câmara dos Comuns, Casa que a presidiu, e após exerceu as funções de Lord Chanceler do Reinado de Henrique VIII. Morus, católico de conduta ascética, esteve ao lado do Rei na luta contra a reforma protestante. Quando, todavia, o Rei se divorciou da Rainha Catarina de Aragão para casar-se com Ana Bolena, inclusive afastando-se do Papa, Morus se demitiu. E mais: recusou-se a declarar nulo o primeiro casamento do soberano e a prestar juramento ao Rei como Chefe Supremo da Igreja da Inglaterra, então desvinculada do Papado. Preso na Torre de Londres, processado, não admitiu afastar-se de suas convicções religiosas, sendo condenado à morte e executado. Pelo seu testemunho de fidelidade à fé foi beatificado pelo Papa Leão XIII e canonizado por Pio XI. João Paulo II, no ano 2000, em motu próprio, o proclamou “Patrono dos Governantes e dos Políticos”.

Sr. Presidente, de diferentes formas em praticamente todas as atividades humanas, Afonso Arinos se manifestou e legou um acervo ainda não de todo conhecido. Polígrafo, doutrinou no território do Direito - como professor e jurista - foi historiador e memorialista, cronista, ensaísta, crítico literário, articulista, conferencista. Se tanto se pode salientar de sua abrangente produção intelectual, em menor plano não se deve situar a sua vida pública, vocação desde cedo despertada.

Sr. Presidente, homem de estado, probo e lúcido, espécime talvez em declínio na Pátria amada, Afonso Arinos nasceu também predestinado a ter um destacado papel na assembléia dos acontecimentos do nosso País.

Promotor público e jornalista, tão logo se diplomou em Direito no Rio de Janeiro, participou da Aliança Liberal que derrubou a chamada República Velha, movimento que iniciou com a Revolução de Trinta, um ciclo de renovação na política brasileira. Fundador do Partido Progressista, criado por Antonio Carlos, Olegário Maciel e Venceslau Brás e, posteriormente, subscritor e um dos autores do Manifesto dos Mineiros, Arinos, ao lado de seu irmão Virgílio de Melo Franco, Odilon Braga, Milton Campos, Pedro Aleixo, entre outros, denunciava os desvios de rumos imprimidos ao Brasil pelo Estado Novo de Getúlio Vargas.

Assumiu em 1947 a cadeira de Deputado Federal, pela UDN, em vaga decorrente da posse de Milton Campos no Governo de Minas Gerais, reelegeu-se em 1950 e 1954, períodos em que exerceu as lideranças do seu Partido e da Minoria, na Câmara dos Deputados. Em 1958 conquista uma cadeira de Senador pelo Rio de Janeiro, com a maior votação registrada no então Distrito Federal. Chamado para desempenhar as funções de Ministro das Relações Exteriores, pelo Presidente Jânio Quadros, executou uma nova política externa brasileira, preconizando o fim do chamado “alinhamento automático com os Estados Unidos da América”.

Não concorreu às eleições de 1966, encerrando, porém, o mandato com cinco discursos sobre a “miniconstituinte” congressual, convocada pelo então Presidente Castelo Branco.

Participou, atendendo a convite do Presidente Ernesto Geisel, entre 1977 e 1979, do processo de abertura política coordenado pelo Senador Petrônio Portella. Mais adiante, integrou a Aliança Democrática (1984-1985), pacto político que ensejou a eleição da chapa Tancredo Neves-José Sarney. Designado por Tancredo Neves, presidiu a “Comissão de Notáveis”, constituída por individualidades da sociedade civil brasileira, incumbida de elaborar proposta de sugestões à Constituinte a ser instalada em 1987. Novamente Senador em 1986, pelo PFL, Afonso Arinos foi escolhido para dirigir a Comissão de Sistematização, que elaborou o projeto a ser discutido pelo Plenário, sendo Relator-Geral o Senador Bernardo Cabral.

É orador, em nome dos constituintes, na sessão de promulgação da Carta de 1988, quando lembrou que “a experiência histórica brasileira em matéria constituinte é bem antiga. Provém da Conspiração da Inconfidência, ocorrida em 1788 na Capitania de Minas Gerais”, portanto duzentos anos antes da atual Constituição. Observou, também, que os autores de Direito Constitucional Comparado, registram um fenômeno marcante, a exigir nossa reflexão. O direito nas novas Constituições “parece evoluir, em conjunto, para tornar-se mais um corpo de normas teóricas e finalistas, e cada vez menos um sistema legal vigente e aplicável. Por outras palavras nunca existiu distância maior entre a letra escrita dos textos constitucionais e a sua aplicação”.

Sartori nos Elementos de Teoria Política, diz “(...) as constituições contemporâneas - em geral - são mais constituições tecnicamente falando. Encontram-se nelas deslumbrantes profissões de fé, por um lado e um excesso de detalhes supérfluos por outro”.

Ao encerrar suas palavras, Arinos advertiu que outra tarefa, após promulgada a Constituição, se abre aos membros do Congresso Nacional, a de “apesar de quaisquer divergências ... de colaborar nas leis que a tornem mais rapidamente e mais eficazmente operativa...

O seu falecimento dois anos após não lhe permitiu ver, em sua completa eficácia, a Constituição que encerrou a transição para o estado de direito, pois muitos de seus preceitos ainda aguardam regulamentação.

Sr. Presidente, política, virtude e arte, é sobretudo servir. Servir ao comum não é servir ao nenhum. É estar a serviço de todos - do povo e das instituições. E não se serve o povo sem políticas públicas que pressupõem o fim da tutela da sociedade pelo Estado e assegurem a todos o acesso à cidadania, pois “o rebanho, melhor que o pastor, sabe a erva que lhe convém”, como opinou o sociólogo Eduardo Frieiro.

Servir é, antes de tudo, dever que decorre do exercício do múnus público. Mas, em contrapartida, é também direito de qualquer do povo de participar da vida nacional.

Não foi outro o itinerário cívico de Afonso Arinos. É o que faz ao defender a participação do Brasil na luta contra o nazi-fascismo: “tudo o que constitui o nosso ser tem de ser dado ao serviço da Pátria. Não somente o que nos é mais externo, como os nossos bens, as nossas aptidões, o nosso tempo, mas também o que há de subjetivo, de íntimo, de profundo em nós, como as nossas convicções, a nossa opinião, as nossas paixões pessoais ou doutrinárias... Não são os interesses o que temos de mais custoso em sacrificar, mas os pontos de vista. Eis, por isto mesmo, o que um homem que, de qualquer maneira, vive da ou pela inteligência, deve sacrificar em primeiro lugar. Espírito crítico, orgulho, independência, são roupas civis. A inteligência também tem a sua farda, o seu uniforme de tempo de guerra. Esta é a que todos nós devemos seguir. Só assim poderemos exigir da Pátria que nos atenda neste direito que é o de todos nós, e de que não abriremos mão de nenhum modo: o direito de servir.”

Sr. Presidente, fiel ao veio político das Alterosas e, assim, “espelho de sua consciência” analisar a trajetória de Afonso Arinos é a Nação recordar os grandes exemplos que Minas ofereceu, sobretudo a partir da “geração da Independência” e que se transformaram em alicerces humanos e intelectuais do País. Sei que citar é excluir, porém seria inexplicável olvidar estadistas como Bernardo Pereira de Vasconcelos, capaz de realizar a síntese extraordinária de toda a vida partidária da Monarquia, ao se converter de líder maior do Partido Liberal e depois, fundador do Partido Conservador. Ou, tampouco Afonso Celso de Assis Figueiredo, o Visconde de Ouro Preto, Presidente do último Gabinete do Império, que depois de quase quarenta anos de modelar ação pública, coube-lhe dar dignidade à queda do regime, permitindo a Pedro II encerrar, sem mágoas e com grandeza de espírito, seu longo reinado.

Finalmente Honório Hermeto Carneiro Leão, o Marquês do Paraná, articulador político que conseguiu quebrar o paradigma da alternância entre liberais e conservadores, mereceu de Arinos, em texto somente agora revelado, a inclusão entre os “vultos brasileiros do pensamento e da alma do Continente”.

É certo que nem sempre - e infelizmente - prevaleceu o congraçamento entre poder e sociedade, entre o estado e a nação.

Ao momento conciliador que foi a Independência e a primeira tentativa de institucionalização democrática do poder, através da Constituinte de 1823, adveio a reação consubstanciada na sua violenta dissolução. Ela significou a prisão e o exílio dos que fizeram politicamente a emancipação e sustentaram militarmente as lutas da Independência. A Nação reagiu com a sublevação patriótica de Pernambuco que encheu de heróis o martirológio da Província. A ela devem os brasileiros o recuo conciliador que propiciou a Constituição de 1824 e a instalação do Legislativo de 1826.

Os instantes de ruptura em nosso processo político decorreram do distanciamento entre condução autoritária do Estado e as aspirações democráticas da sociedade, só satisfeitas quando o poder se reconcilia com a Nação. Esses momentos consignam, sobretudo, a capacidade política de superação das divergências, muitas vezes momentâneas, que se expressaram, não raro, nos períodos de mudanças de mando na política nacional. Nesses transes, como em 1984, foi preciso ter presente, que pretextar fidelidade a siglas significava pretender substituir o permanente pelo transitório, o substantivo pelo adjetivo, o essencial pelo formal.

Os motivos que oferecemos à Nação na metade da década de 1980, foram os mesmos apresentados por Nabuco em 1853 quando talvez em sua maior intervenção no Parlamento, a chamada “Ponte de Ouro”, que os conservadores lançaram na direção dos liberais de todo o País.

Não se pode, igualmente, desconhecer que a Nação sempre buscou superar seus dissídios através do entendimento em torno das aspirações da sociedade. A Aliança Democrática, pactuada há vinte anos atrás, em torno de Tancredo Neves é bem a expressão desse querer coletivo. Afonso Arinos dela participou ativamente desde o processo de mobilização para a “Nova República”, expressão por ele cunhada para definir a plataforma do novo governo, até a madrugada de 15 de março de 1985, o anticlímax do processo político: a imprevista hospitalização de Tancredo Neves causando perplexidade ao País, parecendo frustrar, na vigésima quinta hora, os sonhos do grande projeto que unira a Nação. Tornou-se indispensável agir, rapidamente, numa conjuntura virtualmente sem precedentes da história.

Se o Brasil caísse na tentação de fazer a opção que alterasse a integridade do texto constitucional, estaria comprometido não só o processo mas a própria legitimidade daquele que seria o primeiro governo civil das últimas duas décadas. Por isso, foi essencial a iniciativa de não interromper o curso da legalidade. Uma vez mais, o mestre Afonso Arinos, com sua ascendência moral e na condição de duas vezes professor de Direito Constitucional, apontou a solução, invocando o artigo 77 da Constituição então em vigor, encerrando as divergências que pudessem ser suscitadas, garantindo a posse de José Sarney.

O Brasil e a opinião pública internacional sentiram que o destino político estava assegurado, nos termos da legalidade constitucional.

Com respaldo de toda a Nação, se encerrava exitosamente a desafiadora a tarefa de consumarmos a transição: sem traumas e sem contestação.

Sr. Presidente, Afonso Arinos pode ser definido como um liberal da mais lídima tradição da política brasileira.

Ser liberal é, antes uma atitude, um estilo de vida, “uma conduta existencial”, como definira Raymond Aron, no livro Um Liberal na Imprensa. Ademais, os liberais não se proclamam portadores da verdade e sabem que somente o debate e a controvérsia inoculam enzimas que fertilizam a solução dos problemas da sociedade.

O liberalismo enquanto ideário político busca conciliar as conquistas da liberdade com as exigências da igualdade de oportunidades.

Convém não confundir, pois, o verdadeiro liberalismo com o liberismo, que seria uma distorcida forma de aplicação do ideário liberal à economia; menos ainda, transformá-lo em “neoliberalismo”, cujo objetivo é a total liberdade do mercado, a redução do papel do Estado na sociedade e o desconhecimento da questão social. Daí a arguta observação de Vargas Llosa em seu trabalho O Liberalismo entre dois mistérios: “´Neoliberalismo’ equivale a dizer semi ou pseudoliberal, ou seja, um puro contra-senso”.

Se entendido sob esses fundamentos, o verdadeiro liberalismo não aceita nem prega a passividade do Estado, nem a liberdade do mercado como duas esferas distintas. Ambos têm que sobreviver e coexistir. Tanto um quanto o outro só têm legitimidade na medida em que possam servir à coletividade, sem prejudicar a individualidade.

É útil à Nação recordar episódios da exemplar vida de Arinos que realçam a sua presença na consolidação da democracia no tecido social brasileiro. Em muitas ocasiões - densas e tensas - da vida do País, emerge o Afonso Arinos atento à necessidade de garantir os direitos da cidadania, de fortalecer as instituições, assegurar o pluralismo e edificar uma sociedade aberta, livre e socialmente justa.

Assim foi ao propor a idéia de um manifesto dos mineiros, afinal subscrito por mais de setenta intelectuais e políticos. Uma “intervenção em defesa da democracia no mundo e no Brasil”, diria Afonso Arinos. O objetivo foi, acrescentou: “confrontar o Getúlio de 1943 com o Getúlio de 1930. Iríamos demonstrar ao País, de forma concreta, a evolução ditatorial de um poder que nascera das mais nobres aspirações democráticas”.

Em tese, defendida na década de cinqüenta do século passado, intitulada História e Teoria dos Partidos Políticos no Brasil, Arinos concorda, como entendia Hans Kelsen, não ser possível a democracia sem a existência de partidos políticos. “Manter a democracia significa pois, para o Brasil, cultivar e robustecer a instituição dos partidos...”. E encerra: “Todo o brasileiro consciente tem o direito de se integrar a um partido, como prova da aquisição de uma verdadeira cidadania. O partido é o lar cívico...”

Aliás, nesse terreno, o País lavrou cedo ao alojar no texto constitucional a presença dos partidos políticos. Giovanni Sartori em Elementos da Teoria Política, salienta que o Brasil se inscreve juntamente com a Alemanha (Lei fundamental, Bonn 1949) e a França (Constituição 1958), entre as três primeiras nações que prestigiaram os partidos políticos, elevando-os ao reconhecimento da Lei Maior.

Em 1947 votou contra o projeto de cassação dos mandatos dos parlamentares do então Partido Comunista Brasileiro, por considerar a providência “atentatória ao princípio geral da doutrina, e que vinha atribuir ao Congresso ordinário um poder não previsto expressa ou implicitamente, se exercia em restrição de direitos políticos, restrição que também não se admite ser imposta senão mediante dispositivo expresso e em casos previstos por lei”.

Igual conduta adotou por ocasião da tentativa de cassar o mandato de Carlos Lacerda em 1957, que praticava agressiva oposição ao governo Juscelino Kubitscheck. Em defesa do parlamentar carioca, afinal absolvido, levantou sua voz como Líder da UDN e da Oposição, para condenar que o processo tenha sido feito “pelas fortes razões de natureza pessoal desvencilhou-se dessas características iniciais... e passou a confundir-se com matéria que diz respeito à própria sobrevivência da democracia no nosso País”.

A Lei Afonso Arinos, de sua iniciativa, dos idos de 1951, contra o preconceito racial, paradigma a inspirar iniciativas semelhantes em todo o País, é também medida que concorre para a consolidação de uma sociedade multirracial - “o amálgama, a síntese, a resultante final da dinâmica étnico-cultural dominante no Brasil” na visão do mestre Gilberto Freire.

Ao assumir a chefia da Chancelaria brasileira, em 1962, Arinos inova ao defender o princípio da autodeterminação dos povos, considera dever aproximar-se das nações emergentes, vez que o mundo não estará “dividido entre Oriente e Ocidente mas também entre hemisfério setentrional e meridional, em razão de critérios econômicos e sociais” e propugna uma “ação planificada, com o auxílio eficaz dos países desenvolvidos do Norte aos países subdesenvolvidos do Sul”.

A “política externa independente”, executada na condição de Ministro do Presidente Jânio Quadros, buscou promover a universalização das relações comerciais e diplomáticas e se converteu em diretriz adotada pelo Itamaraty.

Foi obstinado na defesa da liberdade de manifestação artística e cultural, como se vê em texto de aula magna na Universidade do Rio de Janeiro, no qual afirmou: “A liberdade cultural não exime o poder da obrigação de amparar a cultura, primeiro, porque é dever do Estado defender a personalidade nacional, com que a cultura se confunde, e segundo, porque cultura que não é livre é anticultura”.

Sr. Presidente, sobre Arinos, afirmou o Ministro e seu colega na Câmara dos Deputados, Aliomar Baleeiro: a ele “caberia a divisa latinaE plurimus unum, tal a versatibilidade de aptidões e de talentos dentro da unidade monolítica de seu espírito”. Essa característica que, a meu ver, o notabilizou poderia também ser expressa pela palavra grega Sýnessis, que, por sua profundidade léxica e semântica consegue traduzir o dom raro de personalidades nas quais o conhecimento não é traído por compartimentos estanques, mas integrados de tal forma que se incorporam, em todo homogêneo, em seu ser, com ela como que se identificando.

Como todos nós, Arinos se posta diante dos fatos mas deles não extrai soluções copiadas de quem quer que seja: apropria-se daqueles e dá sua visão integradas delas, resultante do somatório de toda as suas experiências e conhecimentos, nunca se repetindo, mesmo quando versa sobre o mesmo tema, renovadamente original. Porque nele o historiador, jurista e político, se enlaçam, a ponto de ser capaz de resumir - numa única frase - a evolução quase bicentenária do País independente até os dias atuais ao afirmar que “o Brasil, Estado mais que moderno, recente, nasceu com as bases do Direito das gentes, perfeitamente assentadas e com a política externa fundada na brilhante experiência diplomática européia, que se desenvolveu em função da crise continental causada pela confrontação entre o Império marítimo da Inglaterra e o Império territorial napoleônico” (in Problemas políticos brasileiros).

Tudo nos conduz, portanto, situá-lo como um ente dotado do dom da sabedoria: a um só tempo telúrico, posto que se considerava “três cruzes brasileiro”, e universal pela sua condição de pensador; telúrico não mero provinciano; universal, não um cosmopolita que se julga cidadão de todo o mundo.

Mas, certamente, a definição que perfilará a estuante personalidade de Afonso Arinos de Melo Franco, por enriquecer a literatura nacional e dignificar a vida pública brasileira, é a de um humanista dotado de uma provisão de luz capaz de enxergar o que o homem necessita de liberdade, pão e espírito; justiça, paz e solidariedade. A ele, pode-se, enfim, aplicar a bilenar frase de Terêncio: “nada do que era humano lhe era estranho.”


Este texto não substitui o publicado no DSF de 24/11/2005 - Página 40702