Discurso durante a 208ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Questionamentos sobre a Proclamação da República que, após 116 anos, ainda não é uma realidade no Brasil.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
ESTADO DEMOCRATICO.:
  • Questionamentos sobre a Proclamação da República que, após 116 anos, ainda não é uma realidade no Brasil.
Aparteantes
Jefferson Peres.
Publicação
Publicação no DSF de 25/11/2005 - Página 41053
Assunto
Outros > ESTADO DEMOCRATICO.
Indexação
  • COMENTARIO, ANIVERSARIO, PROCLAMAÇÃO, REPUBLICA, BRASIL, QUESTIONAMENTO, EFICACIA, ALTERAÇÃO, FORMA DE GOVERNO, EFEITO, INJUSTIÇA, DISTRIBUIÇÃO DE RENDA, TERRAS, ACESSO, EDUCAÇÃO, SAUDE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, eu vim falar de um fato que não ocorreu, o que pode ser muito inusitado. Mas é um fato que nós comemoramos na semana passada, a chamada Proclamação da República. A República foi proclamada, mas ela não foi construída ainda nesses 116 anos que nós vivemos.

O Senador Jefferson Péres tem sido um dos que mais se batem aqui pela idéia do republicanismo e, de fato, Senador, quando a vemos a comemoração pela Proclamação da República, nos perguntamos se estamos comemorando algo que aconteceu ou apenas algo que dizemos que aconteceu. Porque, depois de 116 anos, se olhamos ao redor, temos que nos perguntar: há o que comemorar? Até mesmo aqui, 116 anos depois, ainda nos tratamos de nobres Senadores, como se estivéssemos ainda no Império.

Que República é esta em que 1% da população detém a mesma renda que 50% dos mais pobres? Não é República. Talvez, nem no Império, excluindo a figura e a família do imperador, houvesse uma concentração como essa. No último ano do Império, já não havia escravidão.

Mas não pára aí. Nesta nossa República de 116 anos, 6% da população, Senador César Borges, têm 20 anos de escolaridade e 45% não chegam a 3 anos de escolaridade. Que República é esta que, dos 56 milhões que cursam o ensino básico, somente 3 milhões chegarão à universidade? E onde 4 milhões de trabalhadores rurais não tem terra, 3,1 milhões de pequenos agricultores têm acesso a apenas 10 milhões de hectares; e apenas 50 mil proprietários detêm 165 milhões de hectares? Eu não sei se no Império a concentração da terra era maior do que essa. Talvez nas capitanias hereditárias, sim; no início da colonização, sim. Depois, provavelmente não.

Mas não pára aí, pois 1% dos produtores agrícolas, no Brasil, controla 44% do total de terras. Eu não falo nem da produção, porque seria um elogio a eles serem produtivos; mas quase metade da terra está nas mãos de 1% dos produtores.

Que República é esta em que temos um déficit habitacional de 7 milhões de moradias? E 6 milhões de moradias estão disponíveis para aqueles que têm duas, três, quatro, cinco residências?

Que República é esta em que a taxa de mortalidade entre os negros é três vezes maior do que entre brancos? E onde cinco milhões têm serviço médico equivalente ao dos países mais ricos do mundo? Cinco milhões de brasileiros têm um serviço médico que não deve nada aos mais ricos países do mundo, e ao mesmo tempo há 30 milhões de brasileiros sem qualquer acesso regular ao sistema de saúde.

Que República é esta onde o IDH - Índice de Desenvolvimento Humano dos brancos põe o Brasil em 49º lugar? Agora, o IDH dos negros coloca o Brasil em 108º lugar!

Isso quando comparamos brancos e negros, mas se compararmos pobres e ricos, essa distância é ainda maior, porque os ricos brasileiros devem estar com o IDH em torno do 24º, 25º lugar e, sem dúvida alguma, os pobres em 160º, como alguns dos mais pobres países da África.

Que República é esta em que, 116 anos depois da sua proclamação, ainda temos 20 milhões de brasileiros que não são capazes de reconhecer a bandeira, porque, na nossa bandeira, está escrito: ordem e progresso, e os nossos analfabetos não são capazes de ler? Se trocar a ordem das letras, onde está ordem e progresso, e a nossa bandeira virar uma não bandeira, os analfabetos, 15 milhões, talvez cheguem a 20 milhões, não saberão que mudamos a bandeira.

Sr. Presidente, temos hoje a convicção de que não houve, de fato, uma proclamação da República ou uma complementação.

Que República é esta onde o Presidente da República tem o poder, por meio das medidas provisórias, de mandar mais sobre o Congresso do que provavelmente o imperador mandava? E ele era uma figura sobretudo simbólica.

Na verdade, temos um imperador metalúrgico. Do ponto de vista da evolução, da possibilidade de ascensão social de uma pessoa, o Presidente Lula, o Brasil deu um grande salto, mas, do ponto de vista da ascensão da cidadania, do republicanismo, não dá para dizermos que deu o salto que se esperaria em 116 anos.

Concedo o aparte ao Senador Jefferson Péres, com muito prazer.

O Sr. Jefferson Péres (PDT - AM) - Senador Cristovam Buarque, o Brasil é um país surrealista, um país paradoxal, um país em que a República talvez existisse, em parte, no Império. Pelo menos no comportamento do monarca D. Pedro II, que viajou quatro ou cinco vezes à Europa às suas próprias custas. Era um homem cultor das letras, das artes. Quando ia ao exterior, visitava museus, universidades. Ele visitou Graham Bell, em Nova York, mostrou muito interesse pelo telefone. Enfim, era um sábio, D. Pedro II, e um homem muito simples também. Nunca usou as pompas do poder monárquico. Nós temos um metalúrgico na Presidência da República que se gaba de nunca ter estudado. Não estudou porque não quis. Foi retirante, paupérrimo, indigente, depois, foi líder sindical, deputado, presidente de partido. Não estudou porque não quis e parece que se gaba disso. Viaja no “Aerolula”, beneficia parentes, amigos do rei. Esse é um homem que veio dos estratos mais humildes da população e se comporta como monarca. Trata o Congresso com esse desprezo, continua a enxurrada de medidas provisórias. Há um esquema de corrupção impressionantemente alto. Enfim, Senador Cristovam Buarque, sabe V. Exª tão bem quanto eu que a grande tragédia do Brasil foi não ter investido na educação desde cedo. Na educação que eu digo é desde os quatro anos, na educação pré-escolar, talvez até na creche. Acho que isto acentuou, agravou as desigualdades sociais, porque a desigualdade nas oportunidades de educação vai gerar e perpetuar as desigualdades no amanhã e depois de amanhã. As elites brasileiras, por sua vez, são deseducadas também. Nós não temos apenas uma massa de analfabetos absolutos e funcionais; temos uma elite extremamente deseducada, inclusive na sua falta de republicanismo. A tragédia do Brasil, Senador Cristovam Buarque, é, infelizmente, a falha tremenda na educação. Parabéns pelo seu pronunciamento.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Senador, eu agradeço. V. Exª traz à lembrança algo fundamental. O Imperador - e eu me preocupo com essa nostalgia do Império - criou um colégio chamado Pedro II, que está em greve há oitenta dias, que há oitenta dias tenta sobreviver lutando para ter os recursos necessários. A mais importante escola pública deste País, criada no Império, está em fase terminal se nós não dermos as mãos com os recursos que necessita. O Império cuidou melhor da educação, ainda que só para sua aristocracia, do que nós estamos cuidando.

A mesma coisa é o que V. Exª falou da corrupção. Nunca se falou em corrupção do Imperador. Que eu me lembre dos livros de História, quando se fala em roubo se trata de algumas jóias da casa dele que foram roubadas e não ele que roubou nada do Tesouro Nacional.

Mas isso me lembra a outra coisa que talvez seja o principal que eu queria falar aqui. Não é só a escola, não são somente os indicadores de que nós temos uma aristocracia consumista e uma plebe excluída, não é só o fato de que hoje, em vez de luta de classes, temos uma luta de egoísmos, o que é mais grave ainda, porque na luta de classes pode-se ter um diálogo, mas na de egoísmo são grupos que não se entendem, como acontece hoje, com grupos queimando carros, na França. Quero centrar a minha fala no fato de que, quando eu leio os relatórios do Senado da época do Império, sinceramente, me dá nostalgia.

Hoje, ouvi aqui o Senador Pedro Simon dizer que tem dúvida se continua na vida pública, diante da realidade do nosso trabalho. Isso dá vontade de lembrar que o Império permitiu até mesmo que houvesse republicanos dentro do Congresso Nacional, que viessem aqui dentro dizer que era preciso acabar o Império. E hoje não conseguimos nos rebelar nem mesmo contra medidas provisórias. Temos, no máximo, como faz a Oposição, o direito ao esperneio, sem nada de mudanças concretas saírem, de fato, do Congresso Nacional.

Sr. Presidente, não quero extrapolar o meu tempo. Quero dizer que, quando uma pessoa na minha idade, um político que se sente republicano, fala com nostalgia do Império, ou ele está muito errado, ou a realidade está muito ruim. Eu me sinto no direito de achar que não mudei nos meus sentimentos republicanos de uma nação integrada, educada e sem essa divisão que temos, como disse o Senador Jefferson Peres. Se é fato que não fui eu que mudei e fiquei nostálgico do Império, creio que a realidade brasileira está devendo completar, nesses 116 anos, aquilo que as gerações anteriores ainda não fizeram.

Hoje, conversando com um amigo, ele perguntava quem, no Brasil atual, é “aplaudível”. Impressionou-me muito esse neologismo. Quem, no Poder Executivo, é aplaudível? Quem de nós, aqui, é aplaudível? Quem, no Poder Judiciário, é aplaudível hoje? Como é possível uma república em que seus líderes não sejam aplaudíveis? Talvez por isso, criando esse neologismo, precisemos criar um outro: o neologismo de um regime que não é mais império, mas ainda não é república. Nesse sentido, ter comemorado, como na semana passada, com feriado, a Proclamação da República é parte da imensa hipocrisia da história brasileira por aqueles que a fazem. E nós somos alguns desses.

Era isso, Sr. Presidente, que tinha a dizer. Lamento muito porque, em vez de comemorar aqui os 116 anos da República, venho falar como se estivesse com nostalgia do Império. Absolutamente! Estou é com ansiedade de, como Senador da República, neste momento, ajudar a completar a República. E ainda não morreu a minha esperança de que isso é possível e que cada um de nós pode dar uma contribuição nesse sentido.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 25/11/2005 - Página 41053