Discurso durante a 210ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Análise da crise do sistema penitenciário brasileiro, no momento da transferência de Fernandinho Beira-Mar para o Estado de Alagoas.

Autor
Heloísa Helena (PSOL - Partido Socialismo e Liberdade/AL)
Nome completo: Heloísa Helena Lima de Moraes Carvalho
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Análise da crise do sistema penitenciário brasileiro, no momento da transferência de Fernandinho Beira-Mar para o Estado de Alagoas.
Aparteantes
Mão Santa.
Publicação
Publicação no DSF de 29/11/2005 - Página 41558
Assunto
Outros > SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • COMENTARIO, TRANSFERENCIA, PENITENCIARIA, ESTADO DE ALAGOAS (AL), CRIMINOSO, LIDER, CRIME ORGANIZADO, TRAFICO, DROGA, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), DEMONSTRAÇÃO, FALENCIA, SISTEMA PENITENCIARIO, REGISTRO, DADOS, PRECARIEDADE, SITUAÇÃO, PRESO.
  • GRAVIDADE, VINCULAÇÃO, TRAFICO, DROGA, LAVAGEM DE DINHEIRO, CAPITAL ESPECULATIVO, CLASSE POLITICA.
  • DENUNCIA, NEGLIGENCIA, GOVERNO FEDERAL, SEGURANÇA PUBLICA, RECOMENDAÇÃO, FAMILIA, VITIMA, APRESENTAÇÃO, AÇÃO DE INDENIZAÇÃO, FAZENDA PUBLICA, CRITICA, OMISSÃO, CONGRESSO NACIONAL, PROTESTO, FAVORECIMENTO, CLASSE SOCIAL, RIQUEZAS, DISCRIMINAÇÃO, POPULAÇÃO CARENTE, NECESSIDADE, APLICAÇÃO, LEGISLAÇÃO.

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão da oradora.) - Pode chamar-me de trabalhadora, Sr. Presidente.

O SR. PRESIDENTE (Cristovam Buarque. PDT - DF) - V. Exª é mais do que merecedora deste título de cidadã.

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL) - Graças a Deus. Mas sou trabalhadora do setor público, como V. Exª, e, provisoriamente, no mundo da política.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores...

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Permite-me um aparte, Senadora?

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL) - Concedo o aparte a V. Exª, Senador Mão Santa.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Peço licença, Sr. Presidente, para dizer que V. Exª, Senadora Heloísa Helena, está vivendo um dilema: a sua candidatura a Presidente da República. Ouço aplausos por onde ando, pois V. Exª representa a coragem da mulher.

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL) - Têm uns que querem arrancar o fígado; outros doam.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - E também há a possibilidade da sua candidatura ao Governo do Estado de Alagoas. Andei por lá e ouvi um clamor. Então, V. Exª tem essa opção também, mas, qualquer que seja o seu destino, terá as bênçãos de Deus.

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL) - Amém! Não tenho dúvida de que sou uma filha muito amada. É por isso que Ele saberá definir a melhor escolha. E tenho certeza, como os cristãos - e eu, além de trotskista, sou cristã - sempre dizemos, de que está na mão do Oleiro. Então, o que Ele disser...

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - O Senador Cristovam quer V. Exª Governadora para apoiá-lo à Presidência.

A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL) - Para mim, está tudo bem. E sei que os meus adversários políticos, não apenas nacionalmente, mas no meu Estado, são capazes de qualquer coisa. Então, sei exatamente quem estou enfrentando e quem eu vou enfrentar: gente que é capaz de roubar, matar, caluniar e liquidar qualquer um que pela frente passe, ameaçando o seu projeto de poder.

Mas, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, eu nem ia falar sobre isto hoje, mas resolvi fazê-lo em função do fato de Fernandinho Beira-Mar estar em Maceió, Alagoas. É claro que não tenho dúvida de que os problemas gravíssimos da minha querida e bela Alagoas estão diretamente vinculados aos outros “beira-mar”. Certamente há muitos “beira-mar” sofisticados, poderosos e que, infelizmente, estão livres para roubar, matar, caluniar ou liquidar qualquer um.

Mas a ida de Fernandinho Beira-Mar a Maceió, do mesmo jeito que foi em relação a Santa Catarina, ao Rio de Janeiro ou a qualquer outro Estado, acaba mostrando claramente a falência do sistema penitenciário em nosso País.

Senador Cristovam Buarque, trata-se de apenas um único homem. É verdade que é um poderoso homem das articulações do crime organizado e do narcotráfico. Sabemos todos nós, claro, que Fernandinho Beira-Mar é um dos homens que está por trás das articulações do narcotráfico. Sabemos que 38% da nuvem financeira de capital volátil que pairam sobre o planeta Terra têm vinculação direta com a lavagem de dinheiro do narcotráfico. Todos sabemos que não são os favelados que têm iates, aviões, para transportar a pasta-base de cocaína. Sabemos que existem raízes profundas que se articulam no Congresso Nacional, no Executivo, no Judiciário e no capital financeiro, muito especialmente, que dão vitalidade à estrutura do narcotráfico em nosso País.

Essas idas e vindas, essa turnê de Fernandinho Beira-Mar pelos Estados brasileiros, quer seja no presídio do mais turístico e freqüentado balneário catarinense, no belo Rio de Janeiro ou na belíssima Alagoas, é a demonstração da falência completa do sistema penitenciário brasileiro.

Para completar, Fernandinho Beira-Mar traz para si uma áurea individualizada de tamanha periculosidade que gera quase que um incontrolável pânico nas autoridades locais e nas populações de uma forma geral. Isso acaba, efetivamente, concentrando o debate em uma personalidade de alta periculosidade que tem de estar encarcerada, e deixamos completamente de lado o debate sobre o sistema penitenciário brasileiro, que está falido. É algo absolutamente impressionante.

Olha, não existir um presídio capaz de impedir as articulações e a gerência do sistema do narcotráfico por uma única pessoa, chamada Fernandinho Beira-Mar, realmente, é algo gravíssimo. Embora eu já tenha dito aqui, Senador Mão Santa, que não tenho dúvida de que, quer seja em Alagoas, no Rio de Janeiro ou no Piauí, os “beira-mar” do mundo da política, com certeza, são muito piores e de maior periculosidade do que ele, porque nem encarcerados estão. Ele está encarcerado, impedido provisoriamente de gerenciar os negócios do narcotráfico e, se tem de se promover sua turnê por presídios brasileiros para impedir que, da prisão, articule os seus negócios, é porque a falência do sistema penitenciário brasileiro é completa.

Nesse sentido, entra a necessidade de se tratar da segurança pública. Várias vezes, tive oportunidade de tratar aqui deste tema, da irresponsabilidade do Governo Federal. O Governo Lula reproduz o Governo Fernando Henrique na irresponsabilidade fiscal, social e administrativa. Não faz a execução orçamentária em nenhuma área que é essencial para a segurança pública nem promove as mudanças estruturais profundas que podem, pelo acolhimento dos filhos da pobreza e pelas políticas públicas, minimizar o risco de eles irem para a marginalidade, para o narcotráfico como último refúgio. Além de não fazer as mudanças estruturais profundas e não garantir as políticas públicas, que são essenciais para minimizar o risco de os filhos da pobreza irem para a marginalidade, também não faz absolutamente nada em relação à segurança pública. Estou absolutamente convicta de que é essencial que as famílias lesadas pela omissão do Estado brasileiro proponham ações de indenização contra a Fazenda Pública como forma de corrigir a administração pública.

Por ser o Congresso Nacional, em sua maioria, da Base de bajulação de Governo, por transformar-se em mercadoria parlamentar e, portanto, ser parte do balcão de negócios sujos, essas questões não são viabilizadas. Isso não é cobrado do Governo, porque caberia ao Congresso Nacional cobrar ações concretas, objetivas em relação à área de segurança pública. Continuo achando que é essencial que as famílias brasileiras lesadas pela omissão do Estado proponham ações de indenização contra a Fazenda Pública, inclusive como forma de corrigir a administração pública. É essencial observar que os policiais, agentes de polícia, carcereiros de presídios estão sendo assassinados pela ausência de condições objetivas de trabalho; ou que as populações, os filhos da pobreza, a classe média, os cidadãos comuns estão sendo assassinados nas ruas em razão da precariedade ou omissão dos serviços de segurança pública; e os presos também estão sendo assassinados. A população carcerária brasileira é muito grande, mas não vota; é como criança. Não faz lobby aqui, não resolve absolutamente nada. São praticamente 200 mil presos no Brasil com um déficit de mais de 100 mil vagas, além dos 50 mil que estão confinados ilegalmente e dos 250 mil mandados de segurança que não foram cumpridos ainda.

A realidade dos presídios brasileiros é uma coisa impressionante: 20% dos presos estão contaminados pelo HIV ou vítimas de hanseníase, tuberculose e doenças crônico-degenerativas. E há os presos-morcegos, que são os presos aéreos, aqueles que, devido à falta de espaço no chão das celas, têm de se pendurar, ou apostar no palitinho quem vai morrer, já que duas pessoas não podem ocupar o mesmo espaço. Há ainda chacinas internas, torturas e estupros.

Como pode um sistema penitenciário ser pautado no efeito cumulativo do tratamento cruel e desumano que é dispensado aos seus condenados? Chega a ser risível. Há coisas na legislação em vigor que realmente chegam a ser risíveis. Não é à toa que Karl Marx, em 1848, já falava sobre o paradoxo entre a realidade e a norma constitucional; falamos do abismo entre o que foi conquistado na lei e a realidade objetiva de vida de milhares de pessoas, esse descompasso entre a realidade concreta e o que está estabelecido na ordem jurídica vigente de um País. Chega a soar ridículo que o princípio basilar do Direito Penal seja a reinserção social do detento.

Destaco que o detento que vai para lá é o pobre. Quem analisa os presídios brasileiros, as celas malcheirosas, aqueles que estão sendo violentados, estuprados, os presos-morcegos e outros mais, vítimas da indignidade absoluta, já sabe quem vai para lá, porque chega a ser cínica a aplicação da lei no País. É cínica! É a frieza implacável e rigorosa para o fraco, para o humilde, para o pobre, para o negro e para o oprimido, e a sofisticação da hermenêutica jurídica para os ricos. É implacável!

Os velhos humanistas espanhóis diziam que a lei, o mesmo papel, Senador Cristovam, tem de ser flexível na aplicação para o fraco, firme para o forte e implacável para o contumaz. Aqui é o contrário. É a frieza implacável diante do ladrão de galinhas. É lógico que há exceções maravilhosas no Judiciário, como há no mundo da política e em todas as áreas da sociedade, mas, infelizmente, a maioria não está a serviço do bem; caso contrário, haveria mais transformações do que há efetivamente. Então, essa lei passa a ser aplicada de forma fria e implacável para os pobres, negros, oprimidos e marginalizados. E essa mesma lei passa por uma sofisticação da hermenêutica jurídica para poupar os ricos, os poderosos, os delinqüentes de luxo, especialmente se estiverem no mundo da política.

Não é possível! Todos sabem o quanto a prisão exerce um efeito devastador sobre a personalidade das pessoas. Reforça valores negativos, agrava distúrbios de conduta, é uma verdadeira escola do crime. E o pobre que está encarcerado vem das camadas mais pobres da sociedade, é aquele que roubou porque não tinha mais nada a perder e de quem a sociedade retirou tudo.

A sociedade retira do jovem, filho da pobreza, tudo: a ternura do coração, o afeto da família. Eles já perderam tudo. E quem perdeu tudo, arrancado por uma sociedade injusta, maldita, capitalista, excludente, não tem mais nada a dar; só tem, infelizmente, a tomar.

Muitas vezes, esses jovens estão em vários casos no Brasil e em Alagoas. Eu fiz questão de falar do caso do Guilherme, em Alagoas. Um jovem, filho da classe média, um menino calmo. A mãe desse rapaz é a Belmira, uma professora que, há praticamente uma década, se dedica, na universidade, a projetos de combate à violência à mulher; e o pai, o Otávio, brilhante intelectual, fez a tese de doutorado tratando sobre a tragédia da modernidade, a violência no sistema capitalista, e acabou vendo a violência entrar na sua própria casa. Um jovem pobre, do qual a sociedade arrancou tudo, que não tem absolutamente nada, friamente disse na televisão: “Eu matei porque ele reagiu ao assalto”. Somente isso. A sociedade já tirou tudo e acabou matando um filho de um casal maravilhoso, de pessoas, que, ao longo de suas histórias de vida, se dedicaram às lutas dos pobres, dos oprimidos e dos marginalizados, que, ainda bem, têm a mais completa compreensão. Mesmo sentindo a dor da perda, no coração da mãe, no coração do pai, têm a exata compreensão de que é esta sociedade que faz com que essas coisas continuem acontecendo.

Então, acabei falando sobre o sistema dos presídios. Dizem que não é preciso mais proposta alguma. É preciso existir aquilo que D. Pedro Casaldáliga dizia: “Ética na política, vergonha na cara e amor no coração”. Essa gentalha do mundo da política ou do Palácio do Planalto ou do Congresso Nacional ou de setores do Judiciário não está nem aí para essas coisas. E não faltam propostas. Isto é que é o mais doloroso: não faltam propostas, inclusive para viabilizar a Lei de Execução Penal, que vai desde a prisão provisória aos condenados, aos sujeitos a medidas de segurança e à liberdade condicional, aos egressos, aos centros de observação, à penitenciária, à colônia agrícola industrial, à casa do albergado, à cadeia pública, aos hospitais de custódia, às penitenciárias para mulheres, às penitenciárias para os jovens adultos, tudo aquilo que significa, inclusive, as orientações de milhares de pessoas que produzem conhecimento pela vivência objetiva em relação a esse sistema e de milhares de leis que foram construídas. Infelizmente, porém, pela maldita cretinice parlamentar - já dizia o velho Lênin, de modo primoroso - a gente vai numa situação como essa.

Então, acabei tratando sobre o sistema penitenciário brasileiro em função dessa turnê do Fernandinho Beira-Mar, que agora está em Alagoas, que apavora as pessoas de bom coração da minha querida Alagoas, embora todos nós saibamos que o problema de dor, miséria e sofrimento de Alagoas são dos outros “beira-mar”, sofisticados e que não estão encarcerados. Mesmo assim, é a demonstração concreta da falência do Estado brasileiro. O Estado brasileiro, que não tem condições objetivas de impedir que uma única pessoa monte uma estrutura de dentro do presídio de articulação com o narcotráfico, realmente, tem de fechar pra balanço, porque não há nem o que dizer em relação a isso.

Eu concedo um aparte ao Senador Mão Santa, e já concluo, Senador Cristovam Buarque.

            O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Senador Cristovam Buarque, como sempre, a Senadora Heloísa Helena mostra muita competência, e este País precisa de uma reflexão. No livro que V. Exª me deu há uma. Lá de Napoleão Bonaparte, outra reflexão, e essa vai direto para o Presidente Lula - eu acho que V. Exª devia ter mandado um livro para ele também -: “a maior desgraça é exercer um cargo para o qual não se está preparado”. Senadora Heloísa Helena, o discurso de V. Exª é muito oportuno. Todos nós lemos Graciliano Ramos, Memórias do Cárcere. Hoje o sistema penitenciário está muito pior. Chegou-se ao ponto de um juiz de Minas Gerais mandar libertar os presos. Eu entendo, porque ele se inspirou na pressuposição de que a punição é tirar a liberdade e não a dignidade, como se tira dos presos brasileiros.

            A SRª HELOÍSA HELENA (P-SOL - AL) - Agradeço o aparte de V. Exª e até imagino a repercussão negativa de pronunciamentos como este, porque é evidente que existe uma marca no imaginário popular de que tem que matar, instituir a pena de morte, deixar estuprar, matar, acabar com a vida de quem lá está preso, e é muito da hipocrisia reinante na sociedade. Ô “sociedadezinha” hipócrita, pautada em um moralismo farisaico, em um falso moralismo! Ô instituições desmoralizadas, do Congresso Nacional ao Palácio do Planalto e a setores do Judiciário! É duro agüentar, especialmente nos dias em que poucos vêm a esta Casa, porque existe a cultura maldita e perversa de que só se trabalha dois dias na semana. É por isso que o povo fica rolando na Internet aquelas torrezinhas parecidas com as Torres Gêmeas, que são as duas torres do Congresso Nacional. É duro.

            Muito obrigada, Sr. Presidente.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 29/11/2005 - Página 41558