Discurso durante a 213ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Abordagem sobre as "misérias" na lógica e na sensibilidade da política. Questionamentos sobre pesquisa da Fundação Getúlio Vargas que atesta a diminuição da pobreza no Brasil.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIO ECONOMICA.:
  • Abordagem sobre as "misérias" na lógica e na sensibilidade da política. Questionamentos sobre pesquisa da Fundação Getúlio Vargas que atesta a diminuição da pobreza no Brasil.
Aparteantes
Paulo Paim, Ramez Tebet.
Publicação
Publicação no DSF de 02/12/2005 - Página 42218
Assunto
Outros > POLITICA SOCIO ECONOMICA.
Indexação
  • PROTESTO, CLASSE POLITICA, COMEMORAÇÃO, DADOS, FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS (FGV), INFERIORIDADE, REDUÇÃO, MISERIA, REGISTRO, SUPERIORIDADE, PERCENTAGEM, POPULAÇÃO, ESTADO DE POBREZA.
  • CRITICA, METODOLOGIA, RENDA, DEFINIÇÃO, POBREZA, COMENTARIO, NECESSIDADE, VINCULAÇÃO, ACESSO, SERVIÇOS PUBLICOS, ATIVIDADE ESSENCIAL, ESPECIFICAÇÃO, EDUCAÇÃO, SAUDE, AGUA, ESGOTO.
  • APRESENTAÇÃO, DADOS, COMISSÃO ECONOMICA PARA A AMERICA LATINA (CEPAL), VINCULAÇÃO, METODOLOGIA, ACESSO, SERVIÇOS PUBLICOS, DEMONSTRAÇÃO, CRESCIMENTO, POBREZA, BRASIL, DEFESA, INVESTIMENTO, RECURSOS, OFERTA, ATIVIDADE ESSENCIAL, COMPARAÇÃO, PAIS ESTRANGEIRO.
  • REGISTRO, ATUAÇÃO, ORADOR, EX GOVERNADOR, DISTRITO FEDERAL (DF), IMPLEMENTAÇÃO, PROGRAMA DE GOVERNO, PROMOÇÃO, VALORIZAÇÃO, EDUCAÇÃO, MODELO, CRIAÇÃO, BOLSA FAMILIA.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Senador Almeida Lima, Srªs e Srs. Senadores, vim falar de um tema que é raro nesta Casa. Vim falar de pobreza; vim falar de misérias, Senador Ramez Tebet. Mas, vim falar de misérias - no plural. Vim falar, sobretudo, de duas misérias: a miséria na lógica - como enfrentamos os problemas sociais no Brasil; e a miséria na sensibilidade da política. Portanto, uma miséria técnica, na lógica, isto é, como o problema é enfrentado; e uma miséria política, com a falta de sensibilidade, ou ainda, como o problema da miséria é enfrentado.

Srs. Senadores, a primeira dessas misérias, do sentimento, está no fato de que, em pleno século XXI, nesta semana, o Brasil festeja ainda estudos sobre a miséria em seu território. É uma miséria; isto é uma miséria! Em pleno século XXI falar ainda de miséria é como se ainda falássemos de escravidão.

A segunda miséria está em que não apenas falamos, mas comemoramos, com festas e foguetes, o fato, Senador Almeida Lima, de que no século XXI “só” temos 45 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha de pobreza. Isso significa 25% da população! Um país cuja renda nacional é de R$1,7 trilhão, quase R$10 mil de renda per capita por ano, com uma Renda Pública nas mãos do Governo de R$700 bilhões, isto é, R$3,8 mil per capita por ano. E, ainda assim, 45 milhões de pessoas estão na pobreza. Isso é, em si, uma miséria de sensibilidade, agravada pela miséria de comemorarmos a redução que houve. É claro que a redução da miséria é um fato muito melhor do que se esse problema se agravasse como em anos anteriores; mas, comemorar essa minúscula redução é uma miséria de comportamento, por falta de sensibilidade!

Creio, Senador Ramez Tebet, que deveríamos divulgar - é claro - essas informações da Fundação Getúlio Vargas; divulgar e pedir desculpas, porque o problema ainda não foi resolvido. Quando vejo a comemoração de que “só” temos 45 milhões na miséria, lembro-me das comemorações feitas no século XIX porque foi proibido chibatar escravos, porque se fez a Lei do Ventre Livre e a Lei do Sexagenário. Claro que eram avanços, mas continuávamos com a escravidão. Naquela época, os que falavam em acabar, pura e simplesmente, com a escravidão eram vistos como inconseqüentes, como pessimistas, que não viam o avanço do progresso, porque já não se podia bater, já não se podia vender como escravo o filho recém-nascido de escravo. Hoje, estamos na miséria da sensibilidade que o Brasil enfrentou no século XIX em relação à escravidão.

Mas há outra miséria que acredito ser mais grave: a miséria da lógica, que serve de base à definição de pobreza e que, por isso, serve de base à superação da pobreza. Ela se baseia na renda, Senador Ramez Tebet. Parte da suposição de que ser pobre, ser miserável consiste em dispor de uma renda de R$3,80 por dia. Quem ganha R$4,00 por dia não é pobre. Quem pode comprar um litro de leite e dez pães e, por isso, dizer que não é pobre? O que vale R$3,80 por dia? Um salário mínimo não basta para três pessoas na família. É um absurdo o conceito que considera o poder de comprar como definidor da linha de pobreza. Parte-se do princípio de que apenas comer alguns pães e beber um litro de leite é suficiente para sair da pobreza; que não seriam necessários habitação, educação, saúde, transporte e segurança. Essa lógica, além de nada generosa, porque põe uma linha da pobreza muito baixa, é estúpida, porque põe a linha da pobreza horizontal: os que ganham abaixo são pobres, os que ganham acima não o são. A linha tem de ser vertical. Os que têm acesso à alimentação, à educação, à saúde e ao transporte não são pobres; aqueles que não têm acesso são pobres.

A pobreza é definida pelo acesso aos bens de serviços essenciais. Seriam pobres aqueles que não tiveram educação com qualidade até o final do ensino médio; aqueles que não tiverem atendimento de água, esgoto, coleta de lixo; que não tenham dentista quando tiverem dor de dente. Esses são pobres, independentemente da renda. É claro que se faz necessária uma pequena renda, até para comprar a comida, até para pagar o transporte, que não é grátis. Mas não é com a renda que vamos fazer com que uma pessoa que esteja na linha de pobreza adquira educação de qualidade. Para isso, só tirando na loteria; só se o salário mínimo fosse R$ 2.000,00 por mês, o que sabemos que não é possível.

Srªs e Srs. Senadores, com essas características de que falo, de mudar ao longo de uma linha vertical, em vez de mudar em uma linha horizontal, de passar a ter acesso em vez de apenas ter ascensão de renda, o Brasil não tem a comemorar nem mesmo essa pequena redução que esta semana apareceu.

Um relatório da Cepal, que leva em conta o acesso aos bens de serviços essenciais mostrou que a pobreza no Brasil aumentou 1,2% em 2004. Ela diminuiu em relação à renda, e orgulho-me de ter colaborado com isso, com o Bolsa-Escola, quando o implantei como Governador do Distrito Federal, servindo de exemplo para sua instituição no Brasil inteiro pelo Presidente Fernando Henrique e que o Presidente Lula transformou em Bolsa-Família. E não vou renegar essas coisas, pois, estava por trás ajudando, incentivando e executando essa extensão de renda; no entanto, nunca tive a ilusão de que isso resolveria o problema. Quando coloquei o nome Bolsa-Escola, foi porque a bolsa era para ajudar a escola, para sua promoção. E, no meu Governo, pagávamos um salário mínimo por família, independente do número de filhos, porque não era ajuda; era salário, e salário não é proporcional ao número de filhos.

Peço um minuto, antes de passar a palavra aos dois Senadores que pediram apartes, para dizer ainda que a verdade é que comemoramos, no Brasil - isso é muito grave -, nossos avanços como uma tartaruga que caminha sem rumo certo. Não estamos comemorando olhando os que passam ao lado, os outros países, em velocidade maior e sabendo para onde vão. No Brasil, comemoramos comparando-o hoje e dez anos atrás. Mas, nesses dez anos em que demos pequenos passos, um país como a Argentina, com toda a crise, deu um passo que permitiu reduzir a pobreza em 16%. O México mantém uma tendência de queda desde 96, tanto da indigência como da pobreza. E isso, porque esses países têm programas claros, não apenas de transferência de renda, mas também de investimentos na oferta dos bens e serviços essenciais. O Brasil precisa, para sair da pobreza, de um choque social, e não apenas de minúsculas transferências de renda.

Eu passo a palavra ao Senador Ramez Tebet, que há tempo me pede um aparte.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB - MS) - Senador Cristovam Buarque, não há quem não admire e quem não fique atento quando V. Exª vai à tribuna. Os discursos de V. Exª representam contribuição e alerta para o País. V. Exª fala com propriedade. V. Exª disse assim: eu vim falar de miséria, miséria da sensibilidade, miséria da lógica. Eu me permitiria acrescentar uma outra miséria que o Brasil precisa ultrapassar; ou seja, acabar definitivamente com a crise de miséria moral que o País atravessa.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Tem razão.

O Sr. Ramez Tebet (PMDB - MS) - A sociedade, felizmente, Senador Cristovam Buarque, está percebendo que precisa combater a miséria moral, porque, combatendo a miséria moral, os dramas sociais que ela vive, com toda a certeza, serão amenizados. Isso porque há muitos recursos mal-aplicados no País, desviados; em suma, tudo isso que estamos presenciando aí. Concluindo minha ligeira intervenção, mais uma vez, cumprimento V. Exª. O discurso de V. Exª é tão irreparável que qualquer intromissão pode prejudicá-lo. E V. Exª falou em lógica. PhD em lógica V. Exª é! Tem uma sensibilidade profunda, e os seus pronunciamentos, como eu disse no início, são uma verdadeira colaboração ao País. Partem de um homem de espírito cívico, de espírito público e um alerta para todos nós, para a própria sociedade brasileira e, principalmente, para os responsáveis pelos destinos do nosso País.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito obrigado, Senador Ramez Tebet. Vindo de qualquer um desta Casa, isso me deixaria orgulhoso; vindo de V. Exª, ainda mais.

Passo a palavra ao meu companheiro e amigo Senador Paulo Paim.

            O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Senador Cristovam Buarque, vou confessar de público algo que eu não falei nem a V. Exª. Quando V. Exª foi candidato a governador aqui, em Brasília, eu assisti ao programa e vi, pela primeira vez, que na sua proposta estava o Bolsa-Escola. E pensei: mas como é esse Bolsa-Escola? Como se vai dar um salário mínimo para as famílias? Eu lhe confesso que cheguei a pensar que era aquela velha história de uma proposta eleitoral. Cheguei a pensar.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Sim.

            O Sr. Paulo Paim (Bloco/PT - RS) - Mas, vindo de V. Exª, pensei: não pode ser. Mas fiquei na dúvida. Aí, paguei pra ver! Tenho orgulho de dizer que fiz campanha para V. Exª e vi o sucesso que foi o Bolsa-Escola depois. Não era somente uma proposta eleitoral, mas uma proposta que V. Exª aplicou e virou realidade em todo o País. Ou, pelo menos, inúmeras cidades e capitais acabaram reproduzindo a sua proposta. Só por isso eu teria de fazer este aparte cumprimentando V. Exª, mas faço ainda uma segunda referência. Estou orgulhoso porque hoje foi lido aqui pela Presidência que vai ser instalada na terça-feira a Comissão do Salário Mínimo, por iniciativa dos presidentes da Câmara e do Senado, da qual V. Exª e eu fazemos parte. Tenho certeza de que V. Exª dará uma grande contribuição para termos uma política permanente de recuperação do salário mínimo, mas, como disse V. Exª, não somente disso, também de cidadania para aqueles que mais precisam. Parabéns a V. Exª.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Sr. Presidente, eu gostaria de pedir alguns minutos mais para concluir a minha fala.

Primeiro, agradeço, Senador Paulo Paim, e digo que não só V. Exª, mas muitos dos meus amigos achavam que aquilo era uma proposta eleitoreira. Aliás, quando propus o Bolsa-Escola, muitos anos antes, num seminário na Universidade de Brasília, as pessoas não acreditavam.

(Interrupção do som.)

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Eu gostaria de pedir uma prorrogação.

E não apenas foi executado, como foi a primeira coisa que fiz no governo.

Li a lista dos que vão integrar a Comissão do Salário Mínimo temendo que o seu nome lá não estivesse; senão, eu não aceitaria ficar. Mas estamos juntos.

Sr. Presidente, eu gostaria de ter mais tempo, mas sei das limitações. Eu estava dizendo que, para diminuir o problema da pobreza, o Brasil precisa de um choque social. Sabemos como fazê-lo. Temos recursos para fazê-lo. Isso foi colocado no Congresso Nacional durante a discussão do Orçamento de 2004 para 2005, e o Presidente Lula, infelizmente, vetou essa possibilidade.

Por isso, eu não poderia deixar de vir aqui para deixar claro que estamos cometendo um erro grave de sensibilidade ao não perceber que a miséria continua alta, grande, envergonhando a todos nós e que não vale a pena ainda comemorarmos. Temos de pedir desculpas aos que ficaram de fora.

E, ao mesmo tempo, devo dizer que não vamos resolver esse problema enquanto cairmos na velha e sistemática lógica econômica de que pobreza se define por uma linha horizontal dos que ganham abaixo de R$3,80. Que sejam R$4,00, que sejam R$5,00 ou que sejam R$15,00, ainda assim, não é dessa forma que a gente acaba com a pobreza, mas, sim, por uma linha vertical. Há os que têm acesso ao que é essencial e os que não têm acesso. Para sair de um ponto a outro, precisa de um pouco de renda, porque algumas dessas coisas são compráveis, mas não é a renda, porque a maior parte dos bens essenciais ou são públicos ou não vão chegar a todos, como é o caso, especialmente, de educação básica, de saúde básica, de água, de esgoto.

Sr. Presidente, peço para dar como lido o resto do meu discurso em que apresento os detalhes de tudo isso, esperando que um dia a gente não tenha mais nem a miséria de sensibilidade nem a miséria de lógica que orienta a maneira como o Brasil pensa o problema social: a partir da economia.

 

************************************************************************************************SEGUE, NA ÍNTEGRA, DISCURSO DO SR. SENADOR CRISTOVAM BUARQUE.

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Este texto não substitui o publicado no DSF de 02/12/2005 - Página 42218