Discurso durante a 217ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração do trigésimo aniversário da criação do Instituto Internacional Jacques Maritain.

Autor
Marco Maciel (PFL - Partido da Frente Liberal/PE)
Nome completo: Marco Antônio de Oliveira Maciel
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração do trigésimo aniversário da criação do Instituto Internacional Jacques Maritain.
Publicação
Publicação no DSF de 08/12/2005 - Página 43044
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, PROFESSOR, POLITICO, ESCRITOR, PAIS ESTRANGEIRO, FRANÇA, CONVERSÃO, IGREJA CATOLICA, ELOGIO, ATUAÇÃO, VIDA PUBLICA, INTERPRETAÇÃO, HISTORIA, PENSAMENTO, FILOSOFIA, RELIGIÃO, INCENTIVO, DEMOCRACIA, VALORIZAÇÃO, VIDA HUMANA, SOCIEDADE, COOPERAÇÃO, ELABORAÇÃO, DECLARAÇÃO, DEFESA, DIREITOS, HOMEM, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), APOIO, FUNDAÇÃO, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO A CIENCIA E A CULTURA (UNESCO).
  • REGISTRO, COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, ENTIDADE, AMBITO INTERNACIONAL, FILIAL, ESTADO DE SÃO PAULO (SP), ESTUDO, INTELECTUAL, CRISTÃO.

O SR. MARCO MACIEL (PFL - PE. Pronuncia o seguinte discurso.) - Exmº Sr. Senador João Alberto Souza, Presidente desta sessão; Sua Eminência Reverendíssima Dom José Freire Falcão, Cardeal e Arcebispo Emérito de Brasília; Exmº Sr. Patrus Ananias, Ministro do Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Exmº Sr. Dom Edison Luiz da Silva, Bispo da Igreja Católica Apostólica Brasileira; S. Exª Reverendíssima Dom João Evangelista Terra, Bispo Auxiliar Emérito de Brasília; Ilmº Sr. Padre José Carlos Brandi Aleixo, Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais; Srªs e Srs. Senadores, ilustres convidados, senhores representantes de embaixadas credenciadas perante o Governo Brasileiro, inclusive o representante da Embaixada de Portugal, minhas senhoras e meus senhores:

O momento em que reverenciamos a vida e a obra de Jacques Maritain - filósofo, teólogo, professor e político - faz-nos refletir sobre a necessidade de prosseguir no culto de seu denso legado e aviventá-lo com o fecundo aggiornamento de sua rica doutrina. É o que fazem o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, criado em 1983, no Rio de Janeiro, e o Instituto Internacional Jacques Maritain, estabelecido há mais de três décadas em Roma e, desde 1992, instalado em São Paulo. Eles, além de propagar o maritainismo, cuidam igualmente de apreciar a obra de outros pensadores cristãos, como o Padre Louis Lebret, Teilhard de Chardin, Edmond Mounier, Igino Giordani e o próprio Alceu Amoroso Lima, também conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Ataíde.

Nascido em Paris no final do Século XIX, Maritain foi amigo de Charles Péguy e se converteu à religião católica por intermédio de León Bloy. Foi casado com Raíssa, judia russa, que o acompanhou em toda a sua existência e o incentivou no aprofundamento de sua espiritualidade. O casal viveu os últimos anos retirado no eremitério de Tamanrasset, entregue à ascese da oração, penitência e caridade, em companhia do Padre Charles de Foucauld, francês convertido ao catolicismo, qual Maritain, cujo extraordinário exemplo de sacrifício levou-o à honra dos altares, por beatificação, mês passado, pelo Papa Bento XVI.

Falecido em 1973, autor de perto de quatro dezenas de livros, escreveu, no desabrochar do século XX, seu ensaio inicial A Ciência Moderna e a Razão, trabalho predominantemente de filosofia teórica, fase que se prolongou até 1935, a partir de quando se dedicou prevalecentemente à filosofia prática, na qual reponta o Humanismo Integral, inegavelmente sua obra-prima.

Reconhecido em todo o mundo pela percuciência e sereno desassombro de continuador de Santo Tomás de Aquino, ao formular seu neotomismo essencialista, enfrentou os mais acatados filósofos, teólogos e pensadores desde o Medievo à atualidade, analisando e rebatendo-lhes não somente os conceitos, mas sobretudo as conclusões que deles derivavam, mostrando o drama que um humanismo egocêntrico estava acarretando para a sociedade de nossos tempos. Reproduzindo em apertada síntese a avaliação de Maritain, perpassa ele pela evolução do pensamento humano, desde o regime da cristandade medieval, com o seu mero humanismo virtual e implícito, até o individualismo burguês do século XIX e os totalitarismos marxista, nazista e fascista da centúria passada. Este, o desfecho fatal de nossos dias: que o processo haja sido comandado por um espírito antropocêntrico - no qual o ser humano, saliente-se, passa a ser ele próprio o centro de si mesmo, provocando a tríplice tragédia - do homem, da cultura e do próprio Deus. Num primeiro momento da Idade Moderna, o Racionalismo construiu uma imagem orgulhosa da personalidade humana, ciosa de sua perfeição por essência, que inadmitia qualquer intervenção externa, proviesse ela da revelação e da graça ou de uma lei da qual o homem não tivesse sido o autor; num segundo momento, o da Dialética Humanista, Deus será uma tosca imagem, como o limite ideal do desenvolvimento do mundo e da humanidade; e, num terceiro momento, ao Niilismo de Nietzche incumbirá o anúncio da morte de Deus...

É aí que surge Maritain com seu novo humanismo - o Humanismo Integral -, teocêntrico, um projeto político que ele desvenda como sendo “o despertar da consciência cristã e os problemas estritamente temporais, sociais e políticos, implicados na restauração de uma nova cristandade, trarão consigo o renascimento de novas formas políticas específicas, apropriadas ao aparecimento de inspiração intrinsecamente cristã”. Esse projeto se desdobra em três níveis: comunitário, personalista e pluralista. Comunitário - porque tem no bem comum a exigência suprema da natureza humana, bem comum esse que difere de uma simples soma dos bens privados, sendo superior aos interesses do indivíduo, mera parte que é do todo social. Personalista - porque consiste numa busca perene da perfeição e da liberdade, de molde a que o homem possa desenvolver os diversos degraus de sua vida no material, no intelectual e no moral. Pluralista - porque, em oposição ao totalitarismo do Estado, deve-se contrapor à “concepção de uma cidade pluralista, que reúne em sua unidade orgânica uma diversidade de grupos e de estruturas sociais”.

Em suma, se os seres humanos vivem em sociedade; se “o fim da sociedade é o seu bem comum”; se “a pessoa humana tem direitos, por isso mesmo que é uma pessoa”, ao ser dotada de inteligência; se os direitos da pessoa se fundamentam numa lei natural, não escrita, anterior à lei positiva dos Estados; em que consistiria, enfim, esse proposto ideal histórico de um projeto político genuinamente humano? Ou seja, se res publica significa “a coisa do povo”, quer dizer, “o bem comum de todos”; se este é o conceito romano de civitas, paralelo ao da polis grega, de cujo tema deriva polítikós, o que é, então, a política? Enfático, já a definira atiladamente Aristóteles como a “arte das artes, (...) a ciência superior a todas as demais, pois seu fim é o bem maior, no seu grau supremo, residindo na justiça”. Esse conteúdo ético em defesa da liberdade é o que qualifica sua extensão às variadas comunidades e aos diversos corpos sociais, partindo da família como a base fundamental da sociedade; é o que justifica estender-se a condição de homem público a quem quer que seja, mesmo que não exerça nem haja exercido atividades governamentais, desde que empenhado - como cidadão - ao serviço do bem geral. Porquanto “política” se confunde com seu próprio objetivo: constituir-se ciência e arte, virtude e dever cívico.

Explica-se, assim, a importância que Maritain confere aos leigos, aos quais cabe a interpretação dos fatos sociais, oferecendo soluções viáveis para a construção de nova sociedade, mais humana e mais justa, a qual se comprometa com os pobres e indefesos da sociedade. Sua presença visa à construção de um Estado laico, dentro do pluralismo, elaborando uma filosofia social, política e econômica, não presa a abstratos princípios universais, mas a realizações concretas, ou seja, a uma filosofia comunitária e personalista. Daí igualmente que se hajam criado movimentos, associações e, ressalte-se, partidos de inspiração humanista, como formas de renovação e atualização de princípios e valores, qual o movimento Economia e Humanismo, na França, do Padre Lebret, que, aliás, é bom lembrar, esteve no Brasil, no Nordeste, especialmente em Pernambuco, e cuja experiência de uma proposta de desenvolvimento regional ainda hoje é extremamente útil. Assim como o Instituto Internacional Jacques Maritain, com representações na Venezuela, Cuba, El Salvador, República Dominicana, Bolívia e Guatemala, tal como no Brasil, cujos prógonos aqui foram Alceu Amoroso Lima e Franco Montoro, como também a congênere brasileira - o Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, vinculado à Universidade Cândido Mendes -, sob a direção do Professor Cândido Mendes de Almeida e tendo no Dr. Alceu Amoroso Lima Filho seu Presidente de Honra, essas instituições vêm concretizando suas metas, mediante núcleos instalados em várias de nossas universidades.

Mas, Sr. Presidente, é na altura de seu posicionamento político-filosófico que Maritain surpreende, advertindo: “o humanismo ocidental tem raízes religiosas e transcendentes”. Isto é, suas fontes são tanto clássicas quanto cristãs. Por isso, seu humanismo integral deve adquirir a forma de uma nova cristandade, não mais “sagrada”, porém laica, objetivando a construção de um ideal histórico concreto. Como o essencial ao bem comum é “respeitar e servir os bens supratemporais da pessoa humana, a cujo serviço deve estar, a sociedade política terrena não tem como fim conduzir a pessoa à sua perfeição espiritual”, mas a “desenvolver condições que levem a multidão a um grau de vida material, intelectual e moral conveniente par ao bem e a paz do todo”. E, dessa forma, a cidade temporal terrena, portanto, pode e deve ligar-se nas cidades do mundo, não de uma maneira unívoca, mas análoga. “Não se colima um partido político de etiquetas religiosa” - oportuno salientar -, “como o ‘Centrum alemão’, porém um ou vários grupos políticos de denominação e especificação política... e de espírito autenticamente cristão; pois neste plano homens unidos na mesma fé religiosa pode muito bem diferir e opor-se uns aos outros”. Além disso o que interessa é que na relação da religião com a política, a atividade desta seja cristamente inspirada”.

Prossigo citando Maritain: “A atividade política em questão... não requer todos os cristãos e não requer apenas cristãos;... e tais não-cristãos que reconheçam, de maneira mais ou menos completa, o bem fundado nesta filosofia”. E ainda: “Deverá, evidentemente, a questão da legitimidade do regime, em certos casos, levantar-se diante deles;... é a consideração empírica do mal menor que decidirá a questão...”

Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores, ilustres convidados, Péricles, homenageado ao se dar ao século V antes de Cristo o seu próprio nome, monopolizou a cena política de Atenas durante 30 anos e aprofundou as raízes democráticas em sua pátria. No seu discurso de celebração da guerra do Peloponeso, enfatizou dever sua cidade ser governada pela intervenção pessoal de todos os cidadãos e anatematizou a quem não partilhava dessa obrigação cívica, porquanto “um homem que não participa da política é de ser considerado não um cidadão tranqüilo, mas um cidadão inútil...”

Maritain, ao lançar seu Humanismo Integral nos idos de 1936, foi um autêntico e corajoso precursor, antes mesmo do Concílio Vaticano II, do aggiornamento da Igreja Católica e demais igrejas cristãs, bem como da Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovada pela ONU 12 anos após, isto é, em 1948, na célebre Conferência de Paris.

A propósito, lembra com propriedade o Professor Padre José Carlos Brandi Aleixo e, aliás, inspirador desta sessão especial que ora realiza o Senado Federal, lembra o Professor Aleixo que “para a elaboração do projeto, a que me referi, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Unesco solicitou a personalidades de grande renome trabalhos pertinentes. Entre essas personalidades incluiu-se, naturalmente, Jacques Maritain. Coube a ele, também, a difícil tarefa de escrever uma introdução à coletânea das respostas que a Unesco recebeu, inclusive a sua própria. Esses dois textos primorosos de Maritain - cito mais uma vez o Padre Aleixo - “permitem entender ainda mais o seu vigoroso pensamento a respeito dos direitos humanos”.

Na Declaração de 1948, em acolhimento a sugestões de Maritain, entre outras, proclamou-se, sobrelevando a dignidade da pessoa humana e excluindo qualquer discriminação, que:

I - Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade.

Também afirmou-se que:

II - Todo homem tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidas nesta Declaração sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.

Muitos desses princípios, recorde-se por oportuno, foram inscritos no preâmbulo de nossa Constituição Federal de 1988 “para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias”...

M’bow Amadou-Mahtar, então Diretor-Gral da Unesco, registra a professora Maria Judith Sucupira da Costa Lins, da URFJ, declarou, após a morte de Maritain, que sua cooperação em prol da democracia, como homem público, é inestimável, “motivo pelo qual ele pode ser considerado um dos pais fundadores da Unesco”.

Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, a homenagem que o Senado Federal, Câmara Alta das instituições representativas brasileiras, hoje tributa a Jacques Maritain, reafirma o nosso compromisso voltado para a edificação de uma sociedade democrática, ciente de que a conquista e a defesa da liberdade, bem como a busca da verdade, são essenciais à expressão mais autêntica de nossa missão - a qual se identifica com a mensagem que Maritain nos transmitiu no seu humanismo integral - um projeto político do “ideal histórico de uma nova cristandade”.

Era o que tinha a dizer. Obrigado.

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/12/2005 - Página 43044