Discurso durante a 217ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração do trigésimo aniversário da criação do Instituto Internacional Jacques Maritain.

Autor
Jefferson Peres (PDT - Partido Democrático Trabalhista/AM)
Nome completo: José Jefferson Carpinteiro Peres
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Comemoração do trigésimo aniversário da criação do Instituto Internacional Jacques Maritain.
Publicação
Publicação no DSF de 08/12/2005 - Página 43046
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM, INTELECTUAL, IGREJA CATOLICA, PAIS ESTRANGEIRO, FRANÇA, ELOGIO, ATUAÇÃO, VIDA PUBLICA, DEFESA, ETICA, MORAL, DEMOCRACIA, LIBERDADE, COOPERAÇÃO, ELABORAÇÃO, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO A CIENCIA E A CULTURA (UNESCO), REPUDIO, INJUSTIÇA, SEGUNDA GUERRA MUNDIAL, COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO DE FUNDAÇÃO, ENTIDADE, ESTADO DE SÃO PAULO (SP).

O SR. JEFFERSON PÉRES (PDT - AM) - Eu o mencionei no início de meu pronunciamento; julgava-o presente.

Inspirado em Santo Tomás de Aquino, acreditava Maritain que a fonte do poder é Deus, mas esse poder só se manifesta por intermédio do povo organizado em uma sociedade política pluralista, diversificada e ativa, na qual o Estado funciona como instrumento para a realização do bem comum.

            Em poucas palavras, o Governo, com seus mecanismos de representação e administração, existe para servir ao povo e não para servir-se deste.

            Assim pensava e sentia o grande promotor da conciliação definitiva entre o catolicismo e a democracia - sem clericalismo; confiante na cooperação dos fiéis de vários credos (e mesmo dos agnósticos e ateus) no projeto e manejo das instituições saudáveis - essa referência eu a faço porque à época nem todos os pensadores católicos da Europa, infelizmente, tinham compromisso com a democracia -; ciente, porém, da matriz cristã dos valores e sentimentos genuinamente democráticos, qual seja, a noção de igualdade essencial e universal entre os filhos do mesmo Deus.

O tema “ética e política” atravessa o conjunto da reflexão de Maritain acerca dos rumos da sociedade e do imperativo de sua transformação conforme as exigências cristãs de liberdade com responsabilidade pessoal, fraternidade, justiça e paz. Julgo, no entanto, que a questão é condensada e discutida de forma particularmente feliz em dois momentos: o primeiro deles no ensaio de 1942, “O fim do maquiavelismo”, em seguida incorporado à coletânea “Princípios de uma Política Humanística”; e o segundo no capitulo intitulado “O Problema dos Meios”, de “O Homem e o Estado”, ponto alto de sua reflexão política, traduzido no Brasil pelo Dr. Alceu.

Diante daqueles que se deixam inebriar pela lógica de que os fins justificam os meios - e como isso é atual - Maritain, lança a pergunta desafiadora: por quanto tempo? Êxitos baseados em crimes, injustiças e crueldades - adverte - tendem a ser precários e efêmeros.

Nas suas próprias palavras:

O maquiavelismo é ilusão porque assenta no poder do mal e porque, metafisicamente, o mal, como tal, não tem poder para causar o ser; praticamente, o mal não tem poder para causar qualquer realização durável. No que respeita às entidades morais, tais como os povos, os Estados e as nações, é no tempo que suas ações são sancionadas; é na terra que o ônus todo de fracasso e de vazio que grava qualquer ação má cometida pela comunidade ou por seus chefes deverá normalmente se exaurir (...) Em regra geral, maquiavelismo e a injustiça política, se conseguem sucessos imediatos, só convêm a certos domínios ilimitados da atividade política.

Em sua visão, o regime democrático, república de homens e mulheres livres, por ser um Estado de direito e um governo de leis, é incompatível com a filosofia de Maquiavel, que erigiu a injustiça, a mentira e a violência como princípios de ação.

De outra parte, a verdadeira ética política não pode ser confundida com o que Maritain condenou como hipermoralismo - o apego às idéias puras, desatento às “realidades da natureza humana e da realidade social”, o que implica conivência passiva com a impune expansão do mal. Em poucas palavras, é imoral compactuar com a impunidade por medo ou tédio de combatê-la.

A validade do legado de Maquiavel está circunscrita ao conhecimento minucioso e acautelador de como a maioria dos políticos e governantes se conduziu ontem e continuará fazê-lo na maior parte das vezes. A perfídia, os vícios e as fraquezas não foram inventados pelo secretário florentino, pois constituem “o triste quinhão de males” que sempre atormentou a humanidade.

O que cumpre repudiar é a prescrição maquiavélica do recurso sistemático ao mal como fundamento do poder político.

Essas reflexões de Maritain, ensejadas pela urgente necessidade de derrotar o amoralismo mortífero do nazi-fascismo, permanecem atualíssima no sofrido, perplexo e indignado Brasil de hoje.

Para Maritain, portanto, a escolha dos meios pode dignificar ou aviltar os fins. Conforme seus ensinamentos, “o principal fim (...) da sociedade política é o de melhorar as condições da própria vida humana ou de alcançar o bem comum (...) de tal modo que cada pessoa concreta não somente em uma classe privilegiada, mas através de toda a massa da população, possa realmente alcançar aquela medida de independência que é própria da vida civilizada e que é garantida simultaneamente pela segurança econômica do trabalho e da propriedade, pelos direitos políticos, pelas virtudes cívicas e pelo cultivo do espírito”.

Assim sendo, adverte o filósofo, se a democracia, cujas finalidades são liberdade e justiça, emprega meios “fundamentalmente incompatíveis” com ambas, seu “auto-aniquilamento” afigura-se inevitável.

O zênite do prestígio internacional de Jacques Maritain foi alcançado no período que se seguiu ao término da guerra. Participou do comitê internacional de vinte sábios e homens públicos constituído pela Unesco, em 1947, para subsidiar a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que seria aprovada pela Assembléia-Geral das Nações Unidas no ano seguinte. Como recorda o Padre Aleixo em seu primoroso ensaio “Os Direitos Humanos na Vida e Obra de Jacques Maritain”, coube a este “a difícil tarefa de escrever uma introdução à coletânea das respostas que a Unesco recebeu, inclusive a sua própria”.

Não é possível subestimar a ascendência exercida pelo humanismo progressista de Maritain, nessa mesma época, sobre os movimentos, partidos e líderes da democracia cristã, como Konrad Adenauer, na Alemanha; Alcide de Gasperi, na Itália; e Robert Schumann, na França, que protagonizaram a reconstrução da Europa do pós-guerra, contribuindo decisivamente para consolidar uma legítima ordem de prosperidade econômica, eqüidade social e democracia política.

Menos conhecida (e reconhecida) é a repercussão dessas idéias e propostas em alguns dos mais notáveis homens públicos da América Latina e do Brasil. Dois deles me ocorrem de pronto à memória: Rafael Caldera, fundador do Copei e ex-presidente venezuelano, e o nosso saudoso André Franco Montoro, que por doze anos ocupou, com brilhantismo, dignidade e coragem, uma cadeira neste Senado, representante de São Paulo e líder oposicionista em pleno regime militar.

Antes de concluir minha fala, quero me valer novamente do ensaio do Padre Aleixo, que selecionou uma série de depoimentos importantes de personalidades públicas do Brasil e de outros países da América Latina sobre o legado político e intelectual de Jacques Maritain.

Passo a reproduzir dois deles. No primeiro, o deputado mineiro Edgard de Godoi da Mata-Machado, da UDN, e, mais tarde, do MDB, quando afirma:

Para a minha geração, Maritain foi não apenas um mestre da doutrina, mas um exemplo humano. Ele deu testemunho da autenticidade de sua fé e de seu amor, em cada um dos maiores e dos menores movimentos de nossa época. Testemunho de afirmação, pelas suas obras. Testemunho de ação, pelas atitudes que assumiu [...] É esse Maritain autenticamente renovador, nuclearmente revolucionário que esperamos sobreviva nos que saibam descobrir, aprofundar e desvelar o tesouro do seu pensamento, assim como manter-se fiéis à linha de conduta que emerge das posições por ele assumidas.

            O segundo testemunho é de Ismael Bustos e Eduardo Frei Montalva, bem antes de este se tornar Presidente do Chile, quando da comemoração dos setenta anos de Maritain:

Ao chegar aos 70 anos, tem Maritain um vasto auditório... Quantos são seus seguidores seria impossível dizer; mas estão [...] unidos por secreta afinidade. Receberam do mestre um inestimável concurso: ele lhes definiu e aclarou idéias, sem as quais sua ação teria carecido de conteúdo, para transformar-se em ativismo inquieto, e lhes abriram horizontes que dão à sua faina significado universal e humano. Para este filósofo cristão, em seu entardecer, deve ser gratificante receber a saudação destes amigos de todos os continentes e que hoje agradecem sua ajuda.

Mas a sua obra não são apenas os livros, mas também a ação daqueles a que permitiu melhor conhecer a doutrina e traçar a imagem de uma nova comunidade livre, pluralista e justa, na qual o cristianismo possui uma ampla margem de responsabilidade pessoal e, por isso, uma grande independência.

Senhoras e senhores, espero que este evento sirva para estimular, no público que nos assiste pela TV Senado, especialmente entre os jovens, o interesse por conhecer a obra de Jacques Maritain, generosa fonte de inspiração intelectual, alento moral e exemplo de coragem política para os democratas de todos os matizes.

Muito obrigado. (Palmas.)

 


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/12/2005 - Página 43046