Discurso durante a 220ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Reflexão sobre os direitos humanos.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
DIREITOS HUMANOS.:
  • Reflexão sobre os direitos humanos.
Publicação
Publicação no DSF de 10/12/2005 - Página 43683
Assunto
Outros > DIREITOS HUMANOS.
Indexação
  • ANUNCIO, DIA INTERNACIONAL, DECLARAÇÃO, DIREITOS HUMANOS, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU), DEFESA, NECESSIDADE, COMBATE, DESIGUALDADE SOCIAL, POBREZA, OBSTACULO, DIREITOS, VIDA HUMANA, IMPLEMENTAÇÃO, POLITICA, GARANTIA, ATENDIMENTO, SERVIÇO MEDICO, ALFABETIZAÇÃO, IMPEDIMENTO, EXPLORAÇÃO, TRABALHO, CRIANÇA.
  • ANALISE, HISTORIA, MODELO ECONOMICO, BRASIL, PRIORIDADE, AUMENTO, DIVIDA, REGISTRO, PREJUIZO, PAGAMENTO, JUROS, MANUTENÇÃO, SUPERAVIT, AGRAVAÇÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, DEFESA, INCLUSÃO, DISCUSSÃO, SALARIO MINIMO, AMBITO, DIREITOS HUMANOS.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Srª Presidente, Srªs e Srs. Senadores, primeiramente quero dizer do meu prazer, sempre que falo aqui, de ver na Presidência uma das Senadoras. Isso engrandece o Senado, uma Casa que, como todo o Brasil, ainda é tão machista.

Vim falar, Srª. Presidente, de direitos humanos, motivado pela comemoração, amanhã, 10 de dezembro, do aniversário da Declaração dos Direitos Humanos na Assembléia Geral das Nações Unidas, em 1948.

Como Presidente da Comissão de Direitos Humanos, temos que prestar uma homenagem a esse gesto, e, como político brasileiro, quero provocar uma reflexão e fazer algumas propostas.

Muitos de nós, Srª Presidente, no mundo inteiro, consideramos que a Declaração dos Direitos Humanos foi um gesto tão ou mais importante que as revoluções técnicas mundiais: a revolução industrial, que ocorreu no século XVIII, XIX, que começou a mudar o mundo. A revolução científica talvez não tenha tido o impacto da Declaração dos Direitos Humanos. É preciso lembrar que se ela veio 170 anos depois da revolução francesa, quando se tentou fazer uma declaração de direitos humanos, por outro lado, veio menos de 50 anos depois da proclamação da abolição dos escravos no Brasil, veio com menos de 100 anos da abolição dos escravos nos Estados Unidos. Foi um gesto que veio no tempo e que fez a sua revolução.

Mas, lamentavelmente, enquanto as revoluções técnicas avançam e se espalham, se espalham pelo mundo e avançam, modificando-se cada vez mais, do ponto de vista do conhecimento, das revoluções científicas e técnicas, o direito humano não tem se espalhado nem tem avançado como deveria. Continuamos ainda com a falta dos direitos humanos em muitos lugares. No Brasil mesmo, há pouco mais de 20 anos, ainda havia tortura, restrição ao direito à palavra, ainda havia violações explícitas no exercício do poder aos direitos humanos. Muitos países hoje ainda ferem os direitos humanos. Os direitos humanos das mulheres, por exemplo, os direitos humanos das crianças, os direitos humanos dos presos políticos, os direitos humanos dos presos criminosos comuns que, mesmo cometendo crimes, têm direito à proteção do ponto de vista dos direitos humanos. Ainda mais grave, a violação, pelos criminosos, aos direitos humanos de cidadãos e cidadãs que, como recentemente ocorreu no Rio, são queimados vivos dentro de um ônibus. Mas o que mais me preocupa hoje é a falta de avanço na concepção de direitos humanos. Continuamos com os direitos humanos ainda presos ao conceito tradicional.

Os países em desenvolvimento, em particular o Brasil, têm como principal obstáculo para a consolidação dos direitos humanos a existência da pobreza, a existência da desigualdade e da exclusão social. Para tanto, melhorar os indicadores é uma condição necessária para que possamos fazer com que os direitos humanos sejam respeitados. Mas, para isso, precisamos defini-los melhor; precisamos definir os direitos humanos, por exemplo, de ninguém morrer antes do tempo por falta de atendimento médico. Esse é um direito humano. O direito à vida é um direito humano, mas não se trata apenas de nascer, de estar vivo. Trata-se também do direito humano de não morrer na porta de um hospital, não morrer antes do tempo por falta de atendimento médico. Esse é um direito humano que temos que incorporar. É preciso incorporar também aos direitos humanos o direito à alfabetização. O analfabetismo, Senadora Íris, é uma tortura. No mundo de hoje, não saber ler é uma tortura permanente. Nós não tratamos o analfabetismo como uma violação dos direitos humanos. Se um analfabeto chega, por exemplo, em uma prefeitura e diz que quer um curso, ele não é atendido tão rapidamente quanto se chegasse lá e dissesse que estava sendo torturado pelo vizinho, por um policial. Assim, temos que considerar o analfabetismo uma violação dos direitos humanos.

É também uma violação dos direitos humanos a criança ter que trabalhar em vez de estudar, ainda mais, trabalhar prostituindo-se, como vemos hoje. A prostituição infantil é uma violação tão grande aos direitos humanos - a Senadora Vânia tem trabalhado muito para evitar que isso aconteça - quanto a tortura aos presos políticos, que tanto nos indignava. É uma violação aos direitos humanos não dar condições para que as crianças terminem o ensino médio com qualidade para que possam participar da vida como devem. É uma violação não ter direito a uma escola pública de qualidade porque isso fere um direito fundamental: o direito à igualdade de oportunidade. Se uma pessoa tem oportunidade e outra não tem não por uma questão natural, mas por falta de apoio, o direito dessa que não tem está sendo violado. É uma violação também o Estado não dar aos portadores de deficiência o apoio necessário para que ele tenha oportunidades iguais dentro dos limites próprios da pessoa.

A ciência já fez duas ou três revoluções. Os direitos humanos ainda não fizeram. Ainda não houve o salto dos direitos humanos fundamentais de ir e vir, de falar, de não ser torturado, para o direito humano de ter escola, de ter saúde, de ter, sim, condições de sobreviver com o mínimo de igualdade em relação aos outros.

Srª Presidente, creio que a promessa de igualdade de oportunidade da modernidade é implodida e ameaçada frontalmente pelo fenômeno da exclusão social. O grande desafio ético da humanidade hoje é conseguir romper esse ciclo de dessemelhança e poder reincluir essas pessoas. A presença dos excluídos no mundo é o maior desafio ao movimento dos direitos humanos. O maior desafio ao movimento dos direitos humanos não é a luta contra a tortura, ainda que isso seja importante, não é a luta contra a discriminação, que é importante, não é a luta pelo meio ambiente, porque fere direitos humanos que ainda não nasceram. Tudo isso é importante e está caminhando. O que realmente precisamos hoje é fazer com que o crescimento econômico seja voltado à consolidação dos direitos humanos, colocar o crescimento econômico como parte dos direitos humanos numa nova geração de direitos humanos. Mas tal consolidação tem que ser feita com o combate à pobreza e à exclusão social, o que não ocorre hoje. Isso não ocorre hoje porque a economia não serve ao povo, é o povo que serve à economia. Temos uma economia que mesmo quando cresce - e todos criticam a estagnação -, mas mesmo quando cresce, não chega ao conjunto da população. A economia, mesmo quando cresce, não é um instrumento de direitos humanos. Sem o crescimento é difícil atender aos direitos humanos. Mas só o crescimento não vai conseguir fazer isso.

            A dívida, por exemplo, é uma forma de escravidão. O que pagamos hoje para o conceito da dívida, por simples contas que fiz, enquanto me preparava aqui para isso, e que merecem ser tratadas com mais cuidado equivale a dez milhões de escravos. Se pegamos um trilhão e setecentos bilhões de renda, dividimos por cem milhões de adultos, e depois pegamos duzentos bilhões de dívida e dividimos por essa produtividade de cada brasileiro, teremos dez milhões.

É claro que é uma escravidão por culpa dos brasileiros. Eu não ponho a culpa nos bancos pela dívida que temos; foi o Brasil. Lá nos anos 70, quando veio - e hoje debati isso com o Senador Alberto Silva - quando houve a crise do petróleo, em vez de darmos uma parada, mesmo que houvesse até uma estagnação, e consumirmos menos petróleo e renovar as fontes energéticas, preferimos aproveitar os dólares que circulavam por aqui, porque o aumento de petróleo deixou muitos dólares nas mãos dos árabes: pegamos esses petrodólares e compramos petróleo, compramos petróleo. Investimos em um crescimento que não dava mais para ser tão rápido nem dava mais para ser baseado na indústria automobilística. Quando Juscelino começou, é claro que dava, primeiro, porque pensávamos que o petróleo era mais abundante do que era e, segundo, porque o preço dele era de US$ 2,00 o barril. Quando o preço subiu - chegou a quase US$ 30,00, na época -, era a hora de percebemos que devíamos mudar o modelo econômico. Não mudamos e nos escravizamos. Hoje, a dívida que temos não é tanto mais com o exterior; é, sobretudo, uma dívida interna que temos de administrar. Temos uma escravidão. Se é uma escravidão, fere os direitos humanos. É claro que seria uma irresponsabilidade ignorar essa dívida, até porque já fizemos, uma ou duas vezes, essa tal de moratória, e as conseqüências foram nefastas. Não pode ser por aí. Vamos explicitar este quadro de escravidão: R$ 200 bilhões são para juros, R$ 60 bilhões são para superávit. Isso nos amarra, nos impede de cumprir nosso dever de respeitar os direitos humanos sociais, impede-nos de cumprir novo dever de respeitar os direitos humanos de crescimento econômico, mas de um crescimento econômico que sirva ao povo brasileiro. Precisamos nos libertar disso, sem cometer equívocos, porque havia escravos que se libertavam por meio do suicídio. A dívida nos escraviza, mas simplesmente dizer que ela não existe mais seria uma forma de liberdade pelo suicídio, devido às conseqüências que isso traria. Mas teremos de enfrentar o desafio. Não podemos continuar a vida inteira caminhando sem cumprir nossos deveres para com os direitos humanos por causa de políticas econômicas e desse grande endividamento.

A meu ver, o caminho é trazermos o salário mínimo para o espaço do direito humano.

O Presidente do Senado, Renan Calheiros, e o Presidente da Câmara, Aldo Rebelo, criaram uma Comissão das duas Casas para elaborar uma política de salário mínimo. Faço parte dela, com muita satisfação, indicado pelo meu Partido, o PDT, mas temo que limitemos o trabalho simplesmente ao estabelecimento do valor do salário. Esse é o primeiro ponto que temo; o segundo é que consideremos como salário apenas o que vai no contracheque. O Peti (Programa de Erradicação do Trabalho Infantil), de que V. Exª foi criadora e dinamizadora, faz parte do salário mínimo, se for bem feito. O aumento do salário dos professores da rede de educação básica, se for dado com cobrança para que os professores não faltem às aulas, não façam greves, estudem, fará parte dos direitos humanos porque faz parte do salário mínimo.

Espero que essa Comissão trabalhe, primeiro, considerando o salário mínimo como parte dos direitos humanos. Segundo, o salário mínimo como tendo dois pedaços: o monetário, que vai no contracheque, e o social, que vai nos serviços que o Estado deve oferecer. E terceiro, que não fiquemos no curto prazo apenas diante das limitações. Que tenhamos uma política de 10, 15, 20 anos, uma política que seja assinada aqui, firmada aqui, e que diga: “Todos os Partidos aprovaram”. Então o próximo Presidente vai ter de cumprir, e o que vier depois dele também, e a que vier depois dele - porque sempre dizemos “o que vier” -, quando for uma mulher - o que eu espero que não demore neste País -, que ela também cumpra esse compromisso porque os direitos humanos não podem ser política para um governo, têm que ser uma política de Estado para governos que se sucedam ao longo do tempo. Podem mudar o que quiserem, mas levando adiante aqueles aspectos que devem continuar. A Bandeira e o Hino Nacional não mudam quando muda o governo, e acho que a moeda também não tem que mudar quando muda o governo. Moeda, bandeira e Hino pertencem ao Brasil; não pertencem ao governo. O respeito aos direitos humanos também deve ser um compromisso da Nação, do Estado. Os Governos devem incorporar não apenas aqueles direitos fundamentais que fazem parte da declaração de 1948, mas também novos direitos sociais, fazendo a revolução nos direitos humanos, como faz a ciência, todos os dias, em relação ao conhecimento científico.

Eu vim aqui prestar esta homenagem ao aniversário da Declaração dos Direitos Humanos, ocorrida no dia 10 de dezembro de 1948. Vim a esta tribuna, não só como Presidente da Comissão de Direitos Humanos, mas também como brasileiro e político, para trazer esta provocação, este desafio para que o Congresso brasileiro assuma a responsabilidade de ser, no Brasil, o patrono, o garantidor dos direitos humanos - não só dos direitos fundamentais, mas também dos direitos sociais - não só hoje, mas a longo prazo.

Espero que, sobretudo, os jovens tenham me escutado e que adquiram o amor por essa revolução dos direitos humanos.

Era o que eu tinha dizer.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/12/2005 - Página 43683