Discurso durante a 39ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Homenagem à memória da religiosa e missionária Dorothy Stang.

Autor
Sibá Machado (PT - Partido dos Trabalhadores/AC)
Nome completo: Sebastião Machado Oliveira
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. SEGURANÇA PUBLICA.:
  • Homenagem à memória da religiosa e missionária Dorothy Stang.
Publicação
Publicação no DSF de 10/02/2006 - Página 3779
Assunto
Outros > HOMENAGEM. SEGURANÇA PUBLICA.
Indexação
  • SAUDAÇÃO, REPRESENTANTE, ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL (OAB), PRESENÇA, SENADO.
  • HOMENAGEM, ANIVERSARIO DE MORTE, IRMÃ DE CARIDADE, ESTADO DO PARA (PA), VITIMA, HOMICIDIO.
  • COMENTARIO, FATO, OPORTUNIDADE, GESTÃO, ORADOR, DELEGADO, SINDICATO, ESTADO DO PARA (PA), COMPROVAÇÃO, GRAVIDADE, CONFLITO, POSSE, TERRAS, MUNICIPIO, ANAPU (PA).
  • IMPORTANCIA, ATUAÇÃO, COMISSÃO EXTERNA, SENADO, PARTICIPAÇÃO, ORADOR, IDENTIFICAÇÃO, PUNIÇÃO, CRIMINOSO, HOMICIDIO, IRMÃ DE CARIDADE, ESTADO DO PARA (PA).

O SR. SIBÁ MACHADO (Bloco/PT - AC. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, quero, em primeiro lugar, agradecer ao meu companheiro, irmão de causa, Senador Paulo Paim, por ter me concedido o seu tempo para falar, na tarde de hoje, neste momento de prestar uma homenagem a uma pessoa muito significativa na minha vida, que é a Irmã Dorothy.

Quero saudar aqui o Dr. Joelson Dias, que representa o Conselho Federal da OAB, e também o Dr. Roberto Antonio Busato, representante da OAB do Estado do Pará, que muito nos honra aqui com a sua presença.

Srªs e Srs. Senadores, assisti à preocupação emotiva da Senadora Ana Júlia Carepa, que, muito brilhantemente, tem honrado o Estado do Pará com o mandato de Senadora. Com certeza, hoje, S. Exª é uma pessoa nacionalizada, muito bem vista e benquista na nossa Região Amazônica.

Sr. Presidente, falar de uma causa como esta e de uma pessoa com quem não tivemos uma convivência muito próxima é uma coisa até muito fria, mas convivi com a Irmã Dorothy e, portanto, tenho uma certa carga de sentimento ao falar.

Conheci a Irmã Dorothy porque saí do Estado de São Paulo, em janeiro de 1979. Cheguei no Pará e passei os três primeiros anos como militante da juventude da Igreja Católica. Na comunidade onde eu morava, foi criado um sindicato e, não sei por que, simpatizaram comigo e virei o delegado sindical, o representante do sindicato de Uruará, que fica a quase 200 quilômetros a oeste de Altamira. E Anapu, onde morava a Irmã Dorothy, ficava a mais ou menos 150 quilômetros a leste de Altamira.

Em abril ou junho de 1984, depois que me tornei delegado sindical, eclodiu um conflito em Anapu na Fazenda União, que existe até hoje. O fazendeiro expulsou algumas famílias de suas posses nos arredores da fazenda. A Irmã Dorothy iniciou, então, uma campanha de reintegração de posse desse pessoal. Como a nossa comunidade era vista como muito agitada, muito organizada - e eu era o delegado sindical -, ela nos pediu ajuda. Fomos convidados a ir lá para ajudar na reintegração dessa posse. Juntei 70 colegas. Viajamos em um caminhão um dia inteiro para chegar até lá. Chegamos à noite de uma sexta-feira do mês de outubro de 1984. Ficamos a noite inteira, em reuniões ininterruptas, discutindo se deveríamos entrar na área ou não. Na época, uns dentistas práticos estavam saindo da fazenda e nos disseram: não entrem lá porque há muitos pistoleiros e estão armados. Vocês vão ser massacrados. A Irmã Dorothy achava que a confiança que tínhamos em Deus era suficiente para demover o coração dos pistoleiros.

No dia seguinte, sábado, após o café da manhã - a reunião continuava e foi até o meio-dia, com muita conversa: vai ou não vai, desiste, vamos para casa ou não -, entra na área o carro do dirigente do Incra de Altamira. Ele entrou na estradinha, no ramal. Com aquilo, fomos convencidos a entrar na área. Já que o Incra estava lá, entraríamos e teríamos uma conversa com a autoridade que respondia pelo problema.

Qual não foi a nossa surpresa quando o caminhão entrou na estradinha e, a cada 200 metros no meio da mata, apareciam aqueles paus que - dizem - os indígenas marcam quando estão protegendo as suas terras, ou seja, se passar dali, haverá conflito. A cada duzentos metros, mais ou menos, havia aqueles sinais, dois paus cruzados. Após dois quilômetros, encontramos um grande portão, construído com madeira bem forte, e muitos pistoleiros. Havia muitos pistoleiros, não pude contá-los. Eu estava em cima do caminhão, e mais ou menos cem pessoas estavam andando a pé na frente do veículo. Iniciou-se um diálogo entre os líderes da manifestação. Não deixamos a Irmã Dorothy ir, sabíamos do perigo que ela corria. Fiquei em cima do caminhão junto com uma moça que parecia um pouco com ela, responsável por tirar as fotografias do que iria acontecer. Mas não imaginávamos que ocorreria aquilo.

O resultado foi que um dos pistoleiros olhou para o caminhão, viu essa moça, achou que fosse a Irmã Dorothy, sacou de uma pistola e gritou: “Vou matá-la agora”. E atirou. Atirou, e foi uma “bagaceira”.

Depois disso, só sei que corri muito, Sr. Presidente. Pulei daquele caminhão, as balas passavam, vi o vidro do veículo caindo, e o pessoal correndo para dentro do mato. Eu me atirei no assoalho da carroceria e fiquei pensando: “Se for massacre, certamente um outro grupo de pistoleiros virá de lá para cá e pelos lados e não escapará ninguém”. Fiquei esperando o pessoal correr até uma curva da estrada, onde havia uma ladeira. Pensei: “Se passarem dali, escapam”. Quando os primeiros passaram e não houve nada, foi a hora que aproveitei para correr.

No meio do caminho, alguns foram derrubados pelas balas, ajudei a carregar um que estava quase morrendo, espirrando sangue da boca. Foi uma coisa feia. No final, havia dez pessoas muito machucadas de bala, mas ninguém morreu.

Nunca mais tive conhecimento dessa moça, não sei onde anda, mas ela quase morreu no lugar da irmã Dorothy.

Então, de lá para cá, foi realizada essa campanha contra a irmã Dorothy. Eu imaginava que a missionária não passaria daquele ano, porque a raiva por ela era muito grande naquele cenário; os vereadores da cidade, o prefeito, as autoridades em geral tinham um ódio possesso pela irmã Dorothy.

Depois do conflito, quando andava pela cidade, nunca me senti tão constrangido, porque as pessoas nos reconheciam e diziam: “Olha, aquele era um dos...” E ficávamos intimidados. Para fazermos uma reunião do sindicato, éramos obrigados a nos encontrar no meio do mato, tal era a dificuldade que as pessoas tinham em nos receber. E esse foi o tratamento dado à irmã Dorothy. Então eu dizia: ela não vai passar de um ano.

Passados vinte anos, em 12 de fevereiro do ano passado, ocorreu o fato. Pensava que isso não aconteceria mais, porque as pessoas haviam aprendido a conviver com ela. Mesmo havendo ameaças quase diárias a ela e às pessoas que com ela conviviam, houve um relacionamento. Não posso entender até hoje por que chegaram a essa decisão.

A CPI da Terra esteve por lá, ouviu pessoas, assim como a Comissão Externa do Senado. O resultado de todo esse trabalho é que os pistoleiros estão presos, sendo julgados, sendo condenados. A resposta ao crime está sendo dada. Em maior ou em menor velocidade, a ação do Governo Federal chegou àquela área. Hoje, o Incra está regularizando aquela bendita área do conflito, os PDSs, e muitas outras áreas de reforma agrária foram criadas.

Reconheço também, Senador Flexa Ribeiro, a ação do Governo do Pará. Havendo interesse coletivo, resolvem-se os problemas.

Presenciei a aflição de alguns empresários do setor de madeira que foram envolvidos naquele episódio, no meu entendimento, de graça, pagando sem culpa. Ficou a imagem de que os madeireiros eram os responsáveis pela morte da irmã Dorothy, quando não foram exatamente eles, mas um grileiro que se estabeleceu naquela área, o Sr. Bida, que depois confessou a participação de outros grileiros da região.

Sr. Presidente, sinto-me muito feliz por ter participado de uma Comissão que ajudou a dar respostas àquele crime.

Encerro meu pronunciamento, lendo uma poesia que, na verdade, é uma oração escrita por Jelson Oliveira para a irmã Dorothy. Não sei recitar, mas tentarei lê-la:

Pai-nosso dos caudais de Anapu,

E de seus verdes ruídos acima do silêncio,

Onde estavas àquela hora amarga,

Distraído entre os tocaris da mata

Ou chorando ainda o alto Bacuri derrubado?

Onde estavas àquela hora amarga

Em que o tronco bebeu a seiva com pesar

E a dor ressecou os ramos ao redor?

A escuridão vitoriosa percorreu

o cárcere úmido da madeira?

Comprimida de orvalho e divindades

Uma filha da paz caiu sobre os dias

profetiza das regiões elíseas

e distantes

Onde te perdes, ó Pai, pelas manhãs do tempo.

Tinha a idade brilhante dos rios

e da Cueira solitária das sombras

adulava o perigo das alturas.

Na cuia plural dos olhos,

vagarosa brisa desvelava

estrelas na penumbra

predicando as sentenças

como há muito não se via.

Onde estavas, ó Pai, quando a bala

Atravessou o vento

Retilínea e assassina

Estendendo no mundo

A mais preta das corres?

A doçura daquela mulher

Caída sobre um ombro

Ainda nos assusta e insurge

Encalhada na memória da nação.

Agora enfeitado com cuias e pacurus

Abraçado por arco-íris

Plantado às margens do Anapu

Este mesmo corpo, ó Pai,

Devolve a sacralidade

Às imensas terras da Amazônia

E as tira do esquecimento

Por dentro e fora ...

(Aceita este corpo

E cuida com a ternura

Que todos queríamos, ainda que tarde,

Dedicar-lhe num beijo.)

Sr. Presidente, peço que dê como lido o meu pronunciamento.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 10/02/2006 - Página 3779