Discurso durante a 21ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal

Comentário sobre matéria exibida domingo no Programa "Fantástico", da Rede Globo de Televisão, com o título "Falcão - Meninos do Tráfico, retratando o submundo do narcotráfico nas periferias do país.

Autor
Amir Lando (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
Nome completo: Amir Francisco Lando
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL.:
  • Comentário sobre matéria exibida domingo no Programa "Fantástico", da Rede Globo de Televisão, com o título "Falcão - Meninos do Tráfico, retratando o submundo do narcotráfico nas periferias do país.
Publicação
Publicação no DSF de 22/03/2006 - Página 9033
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL.
Indexação
  • COMENTARIO, IMPORTANCIA, PROGRAMA, EMISSORA, TELEVISÃO, ESTADO DO RIO DE JANEIRO (RJ), DENUNCIA, ALICIAMENTO, CRIANÇA, ADOLESCENTE, TRAFICO, DROGA, PERIFERIA URBANA, FAVELA, PAIS, ESPECIFICAÇÃO.
  • DEFESA, NECESSIDADE, CONSCIENTIZAÇÃO, PODERES CONSTITUCIONAIS, SOCIEDADE, GRAVIDADE, SITUAÇÃO, JUVENTUDE, EMPENHO, RECONSTRUÇÃO, PAIS, RESGATE, DIGNIDADE, CIDADÃO.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

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O SR. AMIR LANDO (PMDB - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr. Presidente, Srªs. e Srs. Senadores: Quem é que nunca observou, na selva cinzenta das grandes cidades, uma pequena flor que, teimosa, cresce nas fendas e trincas de concreto carcomido pelo tempo e pela falta de manutenção de pontes e viadutos? Ali, a vida parece nascer não se sabe de onde. Quem sabe de um gesto carinhoso de um caminheiro errante. Quem sabe de um ser voante, que regurgita a semente. Quem sabe de uma enchente, que arrastou o grão faltante. Quem sabe Deus, pujante, o mesmo que criou o caminheiro, a semente, e o ser voante, mas que não se contenta com o grão faltante.

É, exatamente, essa a minha percepção, quando abro os jornais, todas as manhãs. Já nas primeiras páginas, o mundo parece cinzento, trincado, carcomido. Fome, miséria, guerras, violências de toda ordem, narcotráfico, rebeliões, invasões, corrupção. Crianças mortas ou mutiladas. Faces, de pais e de filhos, transfiguradas pela dor e pelo medo. Um mundo deteriorado pela banalização da vida. Mata-se pelo prazer, ou pelo poder. Mas, mesmo que na mais singela das colunas, algo como a pequena, e teimosa, flor: neste mesmo mundo, quase insípido, brota, ainda que em suas trincas, a solidariedade, o humanismo, a inocência, a compaixão, o amor e a paz. Valores humanos, enfim.

Lembro-me de Hiroshima, obra-prima de John Hersey, sobre os efeitos do poder das armas nucleares, no final da segunda grande guerra. Restaram destruição e morte. Mas, no meio de tamanha barbárie, começou a brotar um capim verde, que escondia as cinzas da devastação. Flores silvestres despontaram em meio ao esqueleto da cidade. Um dos sobreviventes dessa tragédia relata que “parecia que o mesmo avião, que jogara a bomba, soltara, também, uma carga de sementes de sene”. Hoje, Hiroshima ainda guarda a lembrança trágica daquele sexto dia de agosto de 1945. Mas, a cidade foi reconstruída das cinzas. Se suas pontes e viadutos forem, também, carcomidos pelo tempo, novas flores brotarão, não de sabe de que semeadores. É que o milagre da vida não tem fronteiras.

É por isso que eu ainda acredito nos destinos da humanidade. Haverá, sempre, um broto de solidariedade, nas fendas do individualismo. De humanismo, nas fendas da crueldade. De inocência, nas fendas do rancor. De compaixão, nas fendas da insensibilidade. De amor, nas fendas do ódio. De democracia, nas fendas da tirania. De paz, nas fendas da guerra.

Sendo assim, haverá, sempre, o Estado do bem coletivo, numa paisagem privativista do lucro individual. A ética, numa paisagem de corrupção. A soberania, numa paisagem de globalização. Haverá, sempre, a política, para que o Estado seja democrático, ético e soberano.

Neste último domingo, o Programa “Fantástico”, da Rede Globo de Televisão, trouxe a lume uma realidade das mais lúgubres da vida brasileira. Com o título “Falcão - Meninos do Tráfico”, o programa carrega no cinza a cor da paisagem do submundo do narcotráfico nas periferias do país. Um retrato da dura, e curta, vida de meninos e adolescentes, no trabalho forçado do tráfico de drogas.

“Falcão - Meninos do Tráfico” desnuda um Estado paralelo, com leis próprias, sempre draconianas, jamais descumpridas, sob pena de morte, para quem ousa, ao menos, ultrapassar os limites das regras ditadas pelos “governantes”. Aliás, esses mesmos “chefes” são revestidos, no Estado paralelo das favelas e periferias, dos três poderes: o de legislar, o de julgar e o de executar.

É impossível ficar imune à realidade registrada pelas câmeras do rapper MV Bill e pelo produtor Celso Athayde. Bill percebeu que as letras de suas canções são insuficientes para alterar aquele cenário onde ele mesmo nasceu, e ainda vive. Partiu, então, para uma produção mais contundente. Ganhou confiança, em troca da esperança. Levou para as salas que se comovem, apenas, com capítulos repetitivos de dramalhões novelísticos de época, a cena real, onde todos os atores representam a si mesmos, sem scripts decorados.

Até mesmo as brincadeiras dos meninos fogem às cantigas de roda, às bonecas, às bolas de gude ou de futebol. Os divertimentos são, na verdade, ensaios dessa novela da vida real. Simulam a venda de drogas, o alcagüete, o julgamento, o veredicto e a execução. Trocam seus nomes por “falcão”, “X9” ou “chefe”. Têm linguagem própria. Repetem, reiteradamente, o bordão “tá ligado?”. Expressão que se explica, talvez, pelo medo do contrário. Desligado, morre. “Não dormimos, só descansamos”, segundo um “ligado”. Triste coincidência: no exato momento em que os meninos brincavam de simular a execução do “delator”, tiros de verdade ecoaram em cena. “Tá lá (mais) um corpo estendido no chão”. Uma mancha de vermelho sobre o cinza da favela.

Mas, mesmo nesta paisagem cinza, manchada de vermelho, ainda há fendas onde brotam sementes no limite da teimosia. Em primeiro lugar, a coragem de Bill e de Atayde. O trabalho de ambos foge à reflexão maquiada dos sociólogos, cientistas políticos e antropólogos de plantão. Não há clichês, nem “orelhas” de livros de autores famosos. Não se recorreu a frases de efeito, ao gosto do grande público. O filme foi iluminado pela luz dos fatos.

Há, também, um ramo de humanismo, na fenda do crime. O trabalho mostra que ainda existe um lado puro na alma dos meninos do tráfico. Muitos ainda têm consciência de sua vida marginal, e sonham com brincadeiras normais de menino e com trabalho cidadão de adulto. Muitos não passarão do sonho. Vivem uma espécie de prisão perpétua, cuja alternativa é a pena de morte, sem apelação. Mas, outros tantos, são, ainda, amparados por famílias que tentam lhes repassar um outro lado do mundo em que vivem (e morrem).

É esse, talvez, o broto mais fértil: a voz firme e decidida de mães ávidas por construir uma realidade nova, onde a caneta substitua o fuzil, onde a pipa seja um brinquedo de verdade, e não um anúncio do intruso, ou do “meganha”, e onde o verde da esperança tinja o cinza do medo.

A história contada pelo Fantástico é um show da vida que se encena em todos os palcos deste país de contrastes. Não se sabe as razões para tamanha atração fatal, mas a barbárie também vende jornais, a exemplo do fascínio das mulheres do morro pelos detentores de fuzis, como mostrou o programa. Mas, sempre haverá um contraponto. E é a partir desse mesmo contraponto que devemos reconstruir o Estado legal. Regar a flor que teima florescer em meio a tanto cinza. O que mais chamou a atenção no programa é um forte lado humano, em meio a tamanha desumanidade. É, portanto, nesse lado humano que ainda repousa a esperança de mudança.

Espero que o trabalho apresentado pelo Fantástico não se limite a merecidos prêmios de reportagem ou a registros concorrentes de audiência. Nem a comoções de autoridades constituídas do Estado legal. Muito mais do que isso, ele deve ser instrumento de profunda reflexão nos três poderes deste mesmo Estado. É tarde, é bem verdade. Mas, o tarde é antes do nunca. Há sementes a brotar. Se brotam flores nas fendas do concreto cinza e carcomido do medo, imagine-se nos verdes campos viçosos da esperança. Não há que se esperar o caminheiro errante, mesmo em seu gesto de carinho. Nem o ser voante, que passa a cada quatro anos, à procura do ser votante.

Há que se resgatar o império da lei neste mundo que (sobre)vive fora dela. O desafio deste tempo é um só: legalizar o Brasil, remover o crime, a insensibilidade e toda espécie de informalidade. É preciso resgatar, também, a humanidade de todos os cidadãos brasileiros excluídos da nossa mesa de comunhão. Enfim, (re)construir um país legal.

O rapper MV Bill faz coro com o que eu tenho enfatizado, reiteradamente, na tribuna do Senado Federal: há dois Brasis em construção. Um, do mais puro cristal, esculpido no mundo globalizado. Outro, de vidro, fabricado no mundo colonizado. Diz o rapper que “estamos criando um monstro” que, um dia, poderá nos engolir. Somos vozes diferentes, de um mesmo coro, entoando a mesma partitura. O tal vidro pode estar sendo fabricado com areia movediça. Daí, a enchente. Ou a avalanche. Então, só Deus!

Era o que eu tinha a dizer,


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Este texto não substitui o publicado no DSF de 22/03/2006 - Página 9033