Discurso durante a 58ª Sessão Especial, no Senado Federal

Comemoração da Abolição da Escravatura, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.:
  • Comemoração da Abolição da Escravatura, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888.
Aparteantes
Mão Santa.
Publicação
Publicação no DSF de 19/05/2006 - Página 17466
Assunto
Outros > HOMENAGEM. DISCRIMINAÇÃO RACIAL.
Indexação
  • COMEMORAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, OPORTUNIDADE, ANALISE, HISTORIA, BRASIL, DEMORA, LIBERDADE, LUTA, VULTO HISTORICO, NECESSIDADE, COMBATE, DISCRIMINAÇÃO RACIAL, POLITICA, INCLUSÃO, NEGRO, REVERSÃO, GRAVIDADE, DESIGUALDADE SOCIAL, DEFESA, COTA, COMPENSAÇÃO, ACESSO, UNIVERSIDADE, SERVIÇO PUBLICO.
  • SAUDAÇÃO, CULTURA AFRO-BRASILEIRA.

  SENADO FEDERAL SF -

SECRETARIA-GERAL DA MESA

SUBSECRETARIA DE TAQUIGRAFIA 18/05/2006


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DISCURSO PROFERIDO PELO SR. SENADOR JOSÉ SARNEY NA SESSÃO DO DIA 12 DE MAIO, DE 2006, QUE, RETIRADO PARA REVISÃO PELO ORADOR, ORA SE PUBLICA.

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O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Sr. Presidente, com grande alegria, vejo, na Presidência desta sessão, V. Exª, que é, sem dúvida, um dos melhores e maiores Senadores desta Casa e que tem a marca da preocupação com os problemas sociais, e um deles é o que estamos hoje tratando nesta sessão.

Ouvi o discurso do Senador Paulo Paim. Poucas vezes, ouvi um discurso tão motivado internamente. As lágrimas de S. Exª que eu estava vendo eram dele, mas eram também lágrimas que saíam do sentimento e do sofrimento dos negros seus ancestrais. (Palmas.)

O Senador Paulo Paim é, nesta Casa, permanentemente, uma sentinela e um lutador desses problemas, principalmente do problema do negro. É também o Senador Paulo Paim um grande poeta. S. Exª publicou um livro que tive a honra de prefaciar e no qual eu identificava esse sentimento que S. Exª trazia na sua personalidade, não somente do político.

Sr. Presidente, esta sessão não é para, como já se disse, comemorar os mais de 100 anos de abolição da escravatura, mas, sem dúvida alguma, para rememorar a extinção da escravatura no Brasil. Melhor seria que não lembrássemos jamais da escravatura, porque não há mancha maior na história brasileira do que a da escravidão, sobretudo porque ela chegou quase ao fim do século XIX, o que é inconcebível. Quase todos os Países do mundo já tinham abolido a escravatura, mas o Brasil chegou quase ao fim do século para extingui-la, somente em 1888.

Não há como apagar da história do Brasil essa mancha. Ela pesa sobre todos nós, é uma marca sobre todos nós. Há um chamamento permanente a que cada um de nós possa resgatar essa mancha da história brasileira, trabalhando pela ascensão da raça negra no Brasil.

Sr. Presidente, digo isso hoje porque sempre fui ligado à causa da raça negra neste País. Desde o início, quando era Deputado Federal, há quase 50 anos, lutava junto com Affonso Arinos pela lei contra a discriminação racial. Correspondeu ao meu Governo a comemoração dos 100 anos da Abolição da Escravatura. E, naquele momento, tive a oportunidade de dizer que não queria marcar essa data somente com palavras, mas com um gesto que fosse uma pedra no sentido da ascensão da raça negra no Brasil. Então, promovemos a instituição da Fundação Palmares, que até hoje está aí, trabalhando e como um marco de ascensão da raça negra no Brasil.

Acredito que, na realidade, esse é o grande problema que temos até hoje em relação à raça negra, porque os negros continuam sendo, entre os pobres, os mais pobres do Brasil; continuam sendo, entre aqueles que sofrem, os que mais sofrem; entre aqueles que têm problemas de saúde, os que mais demandam aos hospitais e aos centros de cura. Portanto, podemos não só com palavras, mas também com palavras e gestos, promover a ascensão da raça negra.

            Por isso, nessa direção, acompanhando o que outros países fizeram, e tiveram sucesso - nós o não tivemos porque o problema da ascensão da raça negra, no Brasil, continua, durante esses tempos todos, ainda num patamar que não demarrou -, fui o primeiro a abrir, neste País, o debate sobre o sistema de cotas adotado nos Estados Unidos, há mais de 50 anos, que foi efetivo na ascensão dos negros na sociedade americana, o que pode vir a acontecer também no Brasil.

            A questão foi muito discutida, sob o ponto de vista teórico, mas, sob o ponto de vista prático, levantei esse problema e, em 1999, apresentei o primeiro projeto aqui nesta Casa para que tivéssemos cotas não somente nas universidades, mas nos concursos públicos, em todos os lugares, de todas as maneiras possíveis, porque dessa ascensão é que vamos chegar a um patamar no qual tenhamos uma fórmula de justiça em relação à raça negra.

            Ao rememorar o problema da emancipação dos escravos, há uma meditação que devemos fazer sobre o que foi essa luta. O Padre Vieira dizia que, se torcesse sua batina - ele, que ainda estava, no século XVII, nas peregrinações e na evangelização na Amazônia -, dela sairia sangue, e este seria o sangue dos índios. Pois hoje, se pudéssemos também pegar este País e cobri-lo, de maneira a torcê-lo, iríamos ver que, dentro de seu suor, está também o sangue da raça negra. Os negros foram tão importantes para o Brasil que até hoje nenhuma contribuição foi maior à formação da nacionalidade do que aquela parcela que os negros nos deram.

            Hoje, fala-se em mundialização, globalização, e o mundo passa a ser igual. Em quase todos os lugares encontramos as mesmas coisas. E os países passam a existir na sua identidade por meio daquilo que constitui a sua cultura.

A cultura canônica, essa cultura erudita, nivela em todas as partes. Mas a cultura popular não; ela dá a identidade nacional. E o que é o brasileiro, o que significa no mundo o brasileiro senão um conjunto de qualidades que o distinguem perante aquela cultura, aquela forma de ser brasileiro? A isso Sérgio Buarque chamava o brasileiro cordial, não no sentido que podemos sentir da cordialidade, mas porque, dentro da formação da raça brasileira, em todos nós, existe a participação do sangue negro.

Hoje, por meio das pesquisas feitas de DNA - e eu me submeti à pesquisa que foi feita no Brasil e no mundo inteiro a respeito -, identificamos que, se temos sangue branco, temos sangue negro, principalmente nas raízes das nossas mães, porque eram elas, as mulheres negras, que asseguravam a perpetuidade daquilo que foi e que é hoje a raça brasileira.

Mas por que se fala em cultura popular, a identidade brasileira dada pelos negros? Porque foi da África que chegou a maior parcela daquilo que constitui a identidade do Brasil. A cultura da alegria foi trazida pelos negros; eles vinham no sofrimento, mas isso que o Brasil tem, que é a cultura do carnaval, a cultura do futebol, a cultura do botequim, a cultura da convivência, a cultura da paz, essa, sem dúvida, foi uma contribuição africana.

Eu estava com Jorge Amado em Cabo Verde, quando uma multidão, com ramos na mão, saudava-nos. Eu disse: Jorge, olhe ali de onde vem a alegria do Brasil, de onde vem a identidade cultural do Brasil. Essa música popular que nos distingue do mundo inteiro tem o componente que nos veio da África através da contribuição dos negros.

Portanto, é um dever que temos todos nós de, nessas datas, assumirmos o compromisso de nos engajarmos cada vez mais na ascensão - porque hoje o problema é ascensão e não mais libertação - da raça negra e de tomarmos todas as medidas que sejam necessárias para que isso se concretize.

Relembro a luta da abolição. Relembro a figura de Nabuco de Araújo.

Nabuco de Araújo era filho de uma família nobre, de uma das nobrezas do Império. A sua família tinha ascensão de seis membros do Parlamento brasileiro, entre Senadores - eram três Senadores e seu pai era, dos Nabuco, o terceiro, o Conselheiro Nabuco de Araújo, que era juiz no Recife.

Como juiz, ele presidiu o júri daqueles que eram envolvidos na Praieira. Todos aqueles foram condenados à prisão perpétua. Três dias depois de seu pai presidir o júri, nascia Joaquim Nabuco. Como tinha que viajar para o Rio de Janeiro, ele deixou o filho sendo criado pela sua madrinha, no Engenho Massangana. E lá ele passou seis anos, até a morte da sua madrinha, quando foi para o Rio, para onde estava seu pai.

Relembro esses fatos porque as páginas mais bonitas que já li estão na Minha Formação, de Nabuco, onde ele fala nesses seis anos. Ele fala na figura dessa madrinha - tinha a lembrança de uma senhora gorda, quase paralítica, que andava em cadeiras de couro, segurada pelos pretos -, mas, sobretudo, fala sobre os pretos, os escravos com quem ele convivia na sua mocidade. Foram esses escravos que lhe tocaram, por aquilo que ele via. Tocaram-lhe não somente pelas injustiças, mas também pelo afeto que eles lhe davam.

Quando ele volta ao Recife, já candidato a Deputado e já para se matricular na Faculdade de Direito de Olinda, Nabuco vai visitar o Engenho Massangana. Lá ele deseja visitar o cemitério dos escravos. Ele, então, olha aquela pobreza do cemitério dos escravos, em contraste com o que existia no cemitério dos senhores, e assume aquela decisão, que ele disse ser a maior que ele tomava na vida, de dedicar toda a sua vida à libertação dos escravos. A partir daí, ele, que era um homem ligado, vamos dizer, à aristocracia brasileira, inicia a luta da abolição. Mas não foi o primeiro. José Bonifácio, nos primórdios da Independência, foi quem primeiro falou sobre o que era a injustiça, o que era a tragédia da escravidão.

Quando a escravidão foi abolida, em 1888, ela não era legal. Não existe nenhuma lei que se possa encontrar estabelecendo a escravidão no Brasil. Ela foi um costume que se foi perpetuando, de tal maneira que, em 7 de novembro de 1831, temos uma lei que proibia que fosse escravo todo aquele homem negro que entrasse no Brasil. Portanto, vemos que, a partir dessa data, dessa lei, não existiam mais escravos no Brasil, mas continuaram os escravos através daquilo com que o Brasil foi tão condescendente, com os navios negreiros, que chegavam escondidos, daqueles que traziam, naquela “sofridão”, que era a “sofridão” dos mares, aquela gente toda. E, mais ainda, com as coisas que foram feitas legalmente, e que não eram legais, para que se continuasse a escravidão, porque, se, em 1831, todos que chegavam ao Brasil não eram mais escravos, aqueles que ainda o eram, quase todos, já tinham desaparecido em 1888.

Depois se fez a Lei do Ventre Livre e, posteriormente, a Lei do Sexagenário, na qual devemos ressaltar a figura de Dantas, a figura do Visconde do Rio Branco, quando eles trabalharam nessa questão.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - O Conselheiro Saraiva.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Saraiva não era tão abolicionista.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - A Lei do Sexagenário é dele.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Sim, ele participou do ministério da Lei do Sexagenário, mas ele não era tão abolicionista. Quando o Imperador o convidou para que ele fosse chefe do ministério e disse que a questão servil teria que entrar no Programa de Gabinete, ele recusou, não quis aceitar que a questão servil fosse incluída. Mas Saraiva era uma grande figura humana. Ele, como diplomata, tinha participado das questões do Prata e foi, depois, fundador de Teresina, onde ele foi Presidente...

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Primeiro-Ministro na Guerra do Paraguai.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Pois é, porque ele foi o diplomata que primeiro chegou ao Prata.

Quando ganhamos a Guerra do Paraguai, nós abolimos a escravidão lá. E Saraiva dizia, então, numa carta ao Imperador: se vamos ser liberais, digam-me, porque acho que não podemos deixar que se faça isso no Paraguai e continuar com a escravatura no Brasil.

Agradeço a V. Exª por ter me desviado para colocar o Piauí e a figura do Saraiva.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - O Conde D’Eu. Não se diz que por trás de um grande mulher há um grande homem? Então, por trás de uma extraordinária mulher, a Princesa Isabel, estava o Conde D’Eu, que foi Governador da Província do Piauí.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Muito obrigado.

V. Exª lembra bem. Eu já não posso dizer a mesma coisa do Maranhão, porque, quando o Conde D’Eu passou no Maranhão, e a Princesa Isabel seria a Imperatriz do Brasil, a resistência que existia acontecia porque ele, sendo francês, não podia ser o marido da Imperatriz brasileira. Ele, então, resolveu fazer uma viagem pelo Brasil inteiro para tornar-se popular. Infelizmente, digo a V. Exª, quando ele chegou ao Maranhão, recebeu uma vaia muito grande.

O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - E São Luís foi fundada pelos franceses.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP) - Pois bem, eu estava justamente falando a respeito da luta pela abolição.

            Quero relembrar também hoje aqui que é muito esquecida a figura do Negro Cosme. Um dos maiores quilombos existentes no Brasil foi o Quilombo da Balaiada. O Negro Cosme, que se chamava a si mesmo de Imperador das Liberdades Bem-te-vis, porque ele se ligara ao Partido Bem-te-vi, criou um quilombo que tinha mais de três mil negros. Mas o que considero mais importante é que, nesse quilombo, a primeira coisa que ele fez foi uma escola, Senador Cristovam Buarque. Vejam a noção da importância da educação. Uma escola no quilombo quis o Negro Cosme.

Pois bem, esse Negro Cosme foi enforcado. Hoje, ele está meio esquecido, mas deve ser relembrado como uma das maiores figuras que temos entre aqueles que lutaram e que são considerados mártires da raça negra.

Portanto, Sr. Presidente, estou muito feliz de ter a oportunidade de ouvir o Senador Paulo Paim e de me congratular com V. Exª por esta sessão. Digo também que tenho como satisfação minha o fato de, durante o meu Governo, termos aprovado a lei que definiu os crimes contra a discriminação. E como escritor - sou político, mas também sou escritor -, quero dizer que há duas heroínas negras na literatura brasileira: uma é Tereza Batista, da obra de Jorge Amado, e a outra, modestamente, é Saraminda, do livro que eu escrevi, onde falo da beleza da mulher negra. Isso mostra a minha ligação com essa causa, que me sensibiliza, como intelectual, como historiador, como brasileiro, sobretudo pela compreensão do que os negros representam para o Brasil.

Não é, portanto, a dívida social a maior dívida brasileira. A maior dívida deste País é para com a raça negra, e nós temos de fazer a sua ascensão para que ela tenha o lugar que merece neste País tão grandioso.

Muito obrigado. (Palmas.)


             V:\SLEG\SSTAQ\SF\NOTAS\2006\20060518DO.doc 7:18



Este texto não substitui o publicado no DSF de 19/05/2006 - Página 17466