Discurso durante a 118ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Justificação de requerimentos apresentados, de votos de pesar pelo falecimento do ator Raul Cortez e do ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri.

Autor
Eduardo Suplicy (PT - Partido dos Trabalhadores/SP)
Nome completo: Eduardo Matarazzo Suplicy
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Justificação de requerimentos apresentados, de votos de pesar pelo falecimento do ator Raul Cortez e do ator e dramaturgo Gianfrancesco Guarnieri.
Publicação
Publicação no DSF de 27/07/2006 - Página 25388
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, ATOR, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, TEATRO, TELEVISÃO, CINEMA, BRASIL.

O SR. EDUARDO SUPLICY (Bloco/PT - SP. Para uma comunicação inadiável. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente João Batista Motta, apresento requerimento de pesar pelo falecimento do ator Raul Cortez, bem como de condolências às suas filhas Lígia e Maria e às netas Vitória e Clara.

Apresento também requerimento de pesar pelo falecimento do ator Gianfrancesco Guarnieri, bem como de condolências aos seus familiares, sua esposa Vanya Sant’Anna, aos filhos Flávio, Paulo, Cacau, Mariana e Fernanda.

Cai o pano. A dramaturgia brasileira está de luto, perdeu um de seus melhores nomes dos últimos tempos, Raul Cortez, ator cujo legado lembrará alguém que viveu para festejar uma vida de personagens.

Vítima de câncer na região abdominal, o ator morreu no último dia 18, aos 73 anos, no Hospital Sírio-Libanês, na Bela Vista, em São Paulo. Ele estava internado desde 30 de junho. Seu último trabalho foi na minissérie “JK”, na TV Globo.

Raul Cortez nasceu na cidade de São Paulo, em 28 de agosto de 1932. Tinha uma extensa carreira na TV, no cinema e no teatro. Ator querido por Benedito Ruy Barbosa, participou de diversas tramas do autor, como “Esperança”, em 2002; “Terra Nostra”, em 1999; e “O Rei do Gado”, em 1996.

No teatro, Cortez trabalhou com alguns dos principais diretores, como Zé Celso Martinez Corrêa, do Teatro Oficina; com Antunes Filho; com Ziembinski e Oduvaldo Viana Filho. Em 1963, ganhava o prêmio APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor ator coadjuvante em “Os Pequenos Burgueses”, dirigida por Zé Celso, a que eu tive a felicidade de assistir.

Em 1963, eu era Presidente do Centro Acadêmico da Fundação Getúlio Vargas e costumava organizar a reserva de peças de teatro no Teatro Oficina, no Teatro de Arena, no TBC e em tantos outros, e levava professores, alunos e funcionários para assistirem àquelas peças a 50% do preço. Lotávamos o teatro e, depois, fazíamos debates. Entre as peças, estava essa tão bonita, dirigida por Zé Celso, com a participação brilhante de Raul Cortez.

Mais recentemente, Raul Cortez chamou a atenção ao montar duas peças do dramaturgo contestador Mário Bortolotto: “Fica Frio - Uma Road Peça” e “À Meia-noite um Solo de Sax em Minha Cabeça”.

Não se achava bonito. Mas sim um sedutor. Um homem de charme que fez história no teatro, no cinema e na televisão. Raul Cortez fez da vida uma história de palco. Ao longo da vida, entrou no corpo de mais de uma centena de personagens.

Em jovem, chegou a estudar Direito. Mas um encontro com o teatro brasileiro de comédia mudou-lhe as voltas ao destino. O pai não queria um filho ator. O filho venceu as teimosias do pai e tudo fez para ser ator.

As primeiras experiências no palco foram para esquecer, com o nervosismo a falar mais alto. Ainda na década de 50, estréia no cinema. Mas é na televisão que o ator se revelou. A fama começa com as telenovelas brasileiras.

Ficam guardados nos arquivos da Globo e na memória de milhões de pessoas em todo o mundo os papéis em novelas como “Água Viva”, “Baila Comigo”, “Brega e Chique”, “Mandala”, “Rainha da Sucata”, “Rei do Gado”, “Terra Nostra” e “Esperança”. Uma das personagens mais marcantes foi a de Jeremias Berdinazzi, um imigrante italiano na novela “Rei do Gado”, da qual tive a honra de ser convidado a participar da cena final do enterro do então Senador Caxias, um dos personagens. O último papel foi o de Barão do Bonsucesso, em “Senhora do Destino”.

Irreverente, nunca deixou de surpreender, e não foi com muita surpresa que os brasileiros o viram enganar a doença, quando surge a desfilar, em junho do ano passado, numa semana de moda em São Paulo. Porque a moda também é palco.

A um ano de completar 50 anos de carreira, disse, na última entrevista, que ia festejar essa vida de personagens. Mas também queria ser festejado.

Nas últimas palavras que ficam, disse não gostar que o tratassem por senhor. Raul Cortez deixa em entrelinhas que amou menos do que gostaria. Mas não morre sozinho.

Duas filhas, uma última companheira que não nunca quis revelar o nome e para sempre o palco que o acompanhou em vida.

Permita-me, Sr. Presidente, que eu fale também uma palavra sobre Gianfrancesco Guarnieri.

            O palco está vazio. Lá nunca mais vai estar Gianfrancesco Guarnieri, ator e dramaturgo, que mudou os rumos da dramaturgia brasileira com a obra “Eles não Usam Black-Tie”. Vítima de insuficiência renal, Gianfrancesco Guarnieri morreu aos 71 anos, em São Paulo. Estava internado no Hospital Sírio-Libanês desde o dia 2 de junho. Foi no último sábado que ele nos deixou.

Tive lá a oportunidade de justamente encontrar os seus filhos, Senador João Batista Motta, porque eu tinha acabado de fazer essa pequena cirurgia na testa, que causou esse edema e felizmente estou muito bem, mas acabei cumprimentando os filhos de Gianfrancesco, que tinham acabado de saber de seu falecimento.

Guarnieri nasceu em Milão, Itália, no dia 6 de agosto de 1934, filho dos músicos Edoardo e Elsa de Guarnieri. Em 1937 seus pais migraram para o Brasil e foram morar no Rio, onde ele morou até 1953, quando se mudou para São Paulo.

Ainda garoto, debatia-se entre duas vocações: a militância ou a poesia. “Desde cedo me sentia dividido entre a ação política concreta e o caminho mais contemplativo da ação cultural e artística”, afirmou em recente entrevista ao Estado. De certa forma, ele uniu as duas vocações ao estrear, no palco do Arena, com “Eles não Usam Black-Tie”, inaugurando no teatro um novo caminho de investigação da realidade brasileira.

Sua primeira lição como escritor veio aos 13 anos, ainda no Rio, quando começou a escrever para o jornal da Juventude Comunista. “Eu achava que escrever para jornal era escrever difícil. Ao ler meu primeiro texto, o editor rasgou a matéria e quase me agrediu fisicamente”.

Mas justamente por ter aprendido como escrever com clareza e concisão, aprenderia outra lição importante na sua primeira “tentativa” de escrever uma peça teatral, no colégio de padres Santo Antônio Maria Zacharias, no Rio. A peça chamava-se “Sombras do Passado” e tinha como “alvo” um vice-reitor prepotente. “Era horrível”, reavaliaria ele depois de tornar-se autor consagrado. Mas o padre que tomava conta do teatro gostou, e a peça foi montada. O “problema” foi que Guarnieri interpretou o personagem principal e, embora a peça tratasse de um tema que nada tinha a ver com o colégio, ele representou tão bem que os alunos reconheceram no prepotente protagonista de uma casa o odiado “vice-reitor” e começaram a gritar seu nome durante o espetáculo. A peça foi muito aplaudida e Guarnieri foi expulso do colégio.

O duplo talento que explodiu nessa primeira experiência - para retratar uma realidade observada, ou vivida, e para interpretar os personagens dessa realidade - jamais o abandonaria. O episódio escolar seria lembrado mais tarde, em 1961, quando “A Semente” foi proibida pela censura na véspera de sua estréia no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). O golpe militar ainda não tinha estourado e ele já tinha problemas com o poder.

“O texto constitui claro e audacioso incitamento à subversão da ordem pública, objetivando solapar as suas bases e a estrutura do regime democrático vigente no País”, dizia o parecer do censor. Curiosamente, nesse texto, ele criticava a rigidez do Partido Comunista e a excessiva determinação de líderes da esquerda que atingia a indiferença com o “lado humano” das causas políticas. O forte movimento dos intelectuais e da imprensa acabou anulando a interdição, e a peça estreou com Cleyde Yáconis, Nathalia Timberg, Leonardo Villar e Guarnieri no elenco. Foi uma peça a que assisti feliz.

Assim que chegou a São Paulo, Guarnieri decidiu investir no talento que causou sua expulsão no colégio. Em 1955, ajudou a fundar o Teatro Paulista do Estudante e ganhou seu primeiro prêmio de ator como protagonista da peça “Está lá Fora um Inspetor”, de Priestley. Um ano depois, em 1956, entrou para o Arena, onde também ganhou um dos mais cobiçados prêmios da época, o APCA de revelação de ator no papel de George na peça “Ratos e Homens”, de Steinbeck, dirigida por Augusto Boal. Na mesma época foi chamado pelo diretor Roberto Santos para fazer sua primeira atuação em cinema, no filme “O Grande Momento”.

Depois do estrondoso sucesso de “Black-Tie”, nunca mais parou. “Gimba”, “A Semente”, “Ponto de Partida”, “O Filho do Cão”, “Marta Sare”, “Castro Alves Pede Passagem”, “Arena Conta Zumbi” e “Arena Conta Tiradentes” - essas duas últimas escritas em parceria com Boal - “Um Grito Parado no Ar”. Foram muitas as peças em que ele também integrava o elenco, sempre em boas atuações. E não foi só no teatro. Guarnieri integra aquela geração de atores que ajudou a televisão a dar seus primeiros passos, seja no Grande Teatro Tupi ou nas primeiras novelas.

Quem viu, jamais esquecerá sua criação do personagem Tonho da Lua, o maluquinho da novela “Mulheres de Areia”, mais tarde regravada na Rede Globo, com Marcos Frota vivendo o mesmo papel. Igualmente inesquecível o Jejê, apelido de Jerônimo Machado, o trambiqueiro da novela “Cambalacho”, na qual contracenava, mais uma vez, com a amiga Fernanda Montenegro. Os muito jovens devem se lembrar de sua participação especial na novela “Terra Nostra”, como o “pai italiano” de Giuliana vivida por Ana Paula Arósio.

Guarnieri deixa o palco da vida com o personagem Pepe da novela “Belíssima”, seu último trabalho.

À querida Vanya Sant’Anna, minha colega, como professora na Fundação Getúlio Vargas, em São Paulo, e aos seus filhos, deixo aqui o meu abraço e a expressão da alegria do povo brasileiro, por ter tido a oportunidade de, tantas vezes, apreciar Gianfrancesco Guarnieri e Raul Cortez.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/07/2006 - Página 25388