Discurso durante a 105ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Homenagem de pesar pelo falecimento de Dante de Oliveira, notável político e homem público brasileiro, artífice do movimento Diretas Já, criado durante a luta em favor do restabelecimento do Estado de Direito Democrático no Brasil.

Autor
José Sarney (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/AP)
Nome completo: José Sarney
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
HOMENAGEM.:
  • Homenagem de pesar pelo falecimento de Dante de Oliveira, notável político e homem público brasileiro, artífice do movimento Diretas Já, criado durante a luta em favor do restabelecimento do Estado de Direito Democrático no Brasil.
Publicação
Publicação no DSF de 08/07/2006 - Página 23138
Assunto
Outros > HOMENAGEM.
Indexação
  • HOMENAGEM POSTUMA, DANTE DE OLIVEIRA, EX PREFEITO, EX GOVERNADOR, ESTADO DE MATO GROSSO (MT), EX-DEPUTADO, EX MINISTRO DE ESTADO, REFORMA AGRARIA, ELOGIO, VIDA PUBLICA, CONTRIBUIÇÃO, REDEMOCRATIZAÇÃO, LUTA, ELEIÇÃO DIRETA.

O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB - AP. Pronuncia o seguinte discurso. Com revisão do orador.) - Estimada Presidente, Senadora Heloísa Helena, meus caros colegas que aqui estão, começo as minhas palavras ainda marcado pela emoção com que o Senador Arthur Virgílio concluiu o seu discurso. As suas lágrimas, sem dúvida, mostram a comoção da classe política brasileira com o falecimento de Dante de Oliveira.

Vem dos gregos a simbologia, que os romanos muito adotaram, de que as vidas que não se concluíam, vidas que eram tão bonitas, tinham como símbolo uma coluna partida. A coluna era, sobretudo, a demonstração artística do que eles tinham construído e espalhado no mundo inteiro, nas grandes construções que fizeram os romanos, como aquela sustentação erguida para o céu de todo o peso da glória. A coluna era, sobretudo, um símbolo da glória. Muitos estilos dela existiram e, para mim, a mais bonita é a coluna dórica, com aquele capitel de palmas, tão marcante e belo, que atravessou os séculos e os milênios e que até hoje nos deslumbram, mesmo que sejam nas suas mais remotas ruínas

Ocorreu-me, com a morte de Dante de Oliveira, a imagem dessa coluna partida. Ele não chegou a concluir sua trajetória; sua vida foi repentinamente ceifada. Por isso mesmo, porque sua vida era uma coluna ainda não terminada, todos sentimos essa emoção profunda.

Tínhamos a noção de que a carreira política do Dante de Oliveira, a sua força, entre derrotas, fracassos e vitórias, era destinada a ser concluída como uma grande presença na história política brasileira, que foi e que seria até o fim de sua vida. Isso era o que todos esperávamos; jamais pensávamos que ela seria interrompida e que seria tão breve.

Dante era uma figura que tinha uma marca excepcional, além dos seus talentos, além de suas grandes virtudes, além do grande político. Ele era uma figura humana inconfundível.

O Dr. Ulysses o tratava com um carinho quase paternal. Às vezes, falava com ele como se estivesse falando com um filho, gostava de censurá-lo nas pequenas coisas, nos pequenos gestos, que era uma maneira de ele demonstrar o carinho que tinha pelo Dante de Oliveira.

E o Dante teve uma virtude: prolongou a sua juventude a vida inteira. Conseguiu que os anos passassem e ele se transformasse sempre naquele jovem idealista que foi desde o princípio. Quando encontrávamos o Dante, era como se estivéssemos encontrando aquele mesmo moço, com aquelas mesmas virtudes, aquela mesma força interior, aquela mesma simpatia e com a cabeça sempre cheia de planos.

O Dante sempre tinha um plano e, quando encontrava conosco, ele o apresentava. Ele nunca falava do passado, falava sempre do presente ou do futuro: “Estou fazendo isso, vou fazer aquilo”, quando era nacionalmente, nacionalmente; quando era na prefeitura, na prefeitura; quando era no Estado de Mato Grosso, no Estado de Mato Grosso.

Recordo-me de quando fomos inaugurar - ele me convidou, foi uma grande gentileza sua; eu já não era Presidente, ele era Governador - o primeiro trecho da estrada de ferro ligando Cuiabá às estradas de ferro paulistas. Eu tinha concebido aquelas duas grandes linhas, diretrizes ferroviárias, que eram a Norte-Sul e a Leste-Oeste, para que, a partir daí, tivéssemos um novo País, construído com estradas de ferro, como elas hoje estão se tornando, pois renasceram como as grandes transportadoras do progresso. E fui com o Dante inaugurar aquela primeira parte que foi concluída - que tinha sido concebida e iniciada no tempo em que eu era Presidente. Lá Dante não falava da estrada que estava inaugurando, ele falava da estrada que ia ser construída. Parecia que estávamos lançando uma estrada inexistente que ia até São Paulo. Ele sonhava com o futuro.

Ele sempre tinha essa característica. Eu sempre dizia a ele: “Dante, esse é um segredo que ninguém sabe que você tem: você prolongou a sua juventude, e ela não acaba nunca”. Às vezes, queremos ser jovens, mas, evidentemente, para cada tempo, o seu tempo.

E criamos um excelente relacionamento pessoal.

Ulysses Guimarães, como eu disse, gostava muito dele. Eu também gostava muito do Dante. Ele sempre foi muito atencioso e gentil comigo. Às vezes, eu discutia com ele - quando conversávamos como Ministro e Presidente, como políticos -, como se nós estivéssemos tratando, assim, de duas pessoas da mesma geração, quando, na realidade, às vezes eu é que me tornava jovem e não era ele que se tornava mais velho do que ele era.

Durante a campanha presidencial, o nosso relacionamento se estreitou. Ele, já, então, tinha o seu nome consagrado, porque aconteceu com ele aquilo que poucas vezes acontece com os políticos: ele apresentou uma Proposição e essa Proposição, como disse o Senador Arthur Virgílio, era uma Proposição para ficar perdida em meio às proposições que existem e, de repente, o momento histórico do País se encontra com aquela iniciativa. Aí, a Emenda que era para restaurar eleições diretas ficou com o seu nome, ficou marcada como Emenda Dante de Oliveira. A partir desse instante, ele juntou o seu nome não somente a uma Emenda mas ao próprio movimento pela restauração da democracia no País. A partir daí, ele foi uma liderança sempre presente, porque ele não era ele - ele era um símbolo, o símbolo do ideal que encarnara. Assim, ele comparecia aos comícios, por todo o Brasil, que nós fizemos e que o Tancredo concebeu para legitimar a sua presença no Congresso Nacional, a sua vinda ao nosso colégio eleitoral.

Quando Presidente da República, logo em seguida, foram realizadas eleições para prefeitos. Muitas pessoas me censuraram por causa disso. Muitos amigos nossos diziam: mas como pode, logo ao assumir a Presidência, com tantos problemas, V. Exª consentir com a realização das eleições para prefeito? A minha resposta foi a seguinte: nós temos, depois de um regime autoritário, de abrir todos os espaços. Se não abrirmos espaços para que todas as correntes políticas do País se manifestem, correremos o risco de se criarem bolsões de pressão que poderão dificultar a atividade governamental.

Dante foi eleito prefeito e fez uma excelente administração. Ele vinha ao meu gabinete constantemente. Quanto trabalho me dava! Isso porque ele sempre me pedia coisas que eram impossíveis. A Presidência, de certo modo, é um exercício de dizer não quando queremos dizer sim. Na realidade, a função do Presidente é defender o País e defender a administração pública. Isso nos obriga, de certo modo, a fazer o possível e não o impossível. Na administração, isso ocorre. Dante vinha cheio de planos. Eu me lembro de um plano de saneamento de Cuiabá que ele me trouxe. Era um plano mirabolante. Então eu disse a ele: “Dante, o seu plano é excelente, mas tem um defeito”; ele me perguntou qual era e eu respondi a ele: “é inexeqüível, porque não temos recursos para isso e nem você ainda tem projeto, o projeto ainda está na sua cabeça”.

Depois, vagou o Ministério da Reforma Agrária. Ninguém falou comigo - o que ocorreu algumas vezes que fui Presidente -, ninguém fez sugestões e na minha cabeça veio Dante de Oliveira: vou trazer o Dante e fazê-lo Ministro. Mandei chamá-lo e o convidei para ser o Ministro da Reforma Agrária e a primeira pergunta que ele me fez foi: “você já falou com o Dr. Ulisses?” Eu disse: “Dante, não falei com o Dr. Ulisses, o Dr. Ulisses vai ter essa surpresa”. Inclusive aconteceu um fato interessante, ele saiu dali e encontrou Ulisses num restaurante, com alguns amigos, almoçando, ele chegou e disse ao Ulisses que o Presidente o tinha convidado para Ministro da Reforma Agrária. Ulisses então, meio jocosamente, também porque não sabia daquilo, disse: “o Sarney ficou doido!” O Dante disse: “Dr. Ulisses, se o senhor não concordar eu não vou assumir”. Não sei quem foi o interlocutor, parece-me que foi Valdir Pires, que estava junto e disse: “Dante, vai assumir o seu cargo e deixa o Ulisses terminar o seu almoço”.

Então, o Dante foi meu Ministro da Reforma Agrária. Um excelente Ministro, porque representava um símbolo nacional e todos tinham confiança de que a situação no Ministério teria uma ação profundamente isenta e favorável a avanços na área fundiária.

Esse Ministério da Reforma Agrária é outra coisa interessante. Quando assumi a Presidência, nos papéis, nos acervos que o Tancredo Neves me deixara não existia Ministério da Reforma Agrária, mas Ministério de Assuntos Fundiários. Por quê? Porque, no Brasil, àquele tempo - e é natural, pois cada tempo tem seus costumes, seu jeito de ser -, havia palavras que eram malditas. Reforma agrária era um termo maldito. Quem falava em reforma agrária era considerado agitador, um anarquista que queria tomar a propriedade de todo mundo. Então, era uma expressão maldita. Não se podia falar em reforma agrária. Quem dissesse que era favorável à reforma agrária era, imediatamente, taxado de comunista, de anarquista ou até de um sujeito que tinha maus hábitos ou maus costumes.

Quando, então, nos sentamos para discutir o projeto do Ministério da Reforma Agrária, eu disse que daríamos ao Ministério de Assuntos Fundiários o nome de Ministério da Reforma Agrária. Todo mundo ficou parado. Perguntaram-me: “Mas Ministério da Reforma Agrária?” Respondi: “Sim, porque matamos, de uma vez por todas, essa discriminação. Vamos colocar Ministério da Reforma Agrária. Se é reforma agrária que nós desejamos, porque vamos escondê-la através de um eufemismo como ‘assuntos fundiários’?”

Assim, o Ministério foi criado como Ministério da Reforma Agrária, e o Dante foi nomeado Ministro da Reforma Agrária. Felizmente, tivemos dois grandes Ministros da Reforma Agrária: Dante de Oliveira, que desaparece agora, e Marcos Freire, outra figura excepcional que desapareceu ainda Ministro, com quem o destino foi injusto, porque ele ainda teria uma brilhante carreira de serviços a prestar ao nosso País, além dos já prestados.

Senadora Heloísa Helena, o Senador Sibá Machado falou, há pouco, do movimento pela legalização dos partidos comunistas. Comunismo era outra palavra que também não se podia falar. Comunista era aquela pessoa que matava as crianças, gente para quem os fins justificavam os meios, que não tinha sentimentos. Ser comunista era, de certo modo, algo criminoso.

Havia, então, o processo da legalização dos partidos na clandestinidade. Recordo-me que Tancredo respondeu, quando indagado sobre o tema, que esse era um assunto da Justiça. Realmente, tínhamos problemas sérios, porque havia reações de áreas conservadoras, de alguns setores militares. Eu não disse nada a ninguém.

No dia em que Tancredo morreu, seu corpo veio para o Palácio, porque a multidão queria, por força, que o corpo viesse para cá, e aguardamos sua chegada por duas ou três horas. Ele vinha num carro do Exército e havia pessoas com certas posições que achavam que o corpo não devia vir num carro das Forças Armadas e criou-se um impasse.

No meio desse impasse, fiz um pouco aquilo que o Milton Campos fez, quando houve uma greve, em Minas Gerais, quando lhe perguntaram:

“- Vamos mandar a Polícia?”

E ele disse:

“- Não, vamos mandar o trem pagador, porque, se eles estão fazendo greve por não receber os seus salários, em vez de mandar a Polícia, a gente manda o trem pagador.”

Eu, então, o que fiz? No meio daquela perplexidade chamei o Haroldo Lima, Líder do Partido Comunista Brasileiro - PCdoB, todos os Deputados de Esquerda, os comunistas conhecidos, naquele tempo no PMDB, mas todos nós sabíamos quais eram as suas ideologias, e disse:

“- Quero que vocês me ajudem. Vamos ver se a gente consegue ter um gesto, porque nós estamos enterrando o nosso grande Líder.”

Eles tiveram um diálogo grande com as militâncias que ali estavam, foi permitido e trouxemos o corpo. Ninguém estava sabendo e, até hoje, quase ninguém sabe desses fatos, mas era uma maneira de agir.

Pois bem. Quando chegou a vez da legalização dos Partidos Comunistas, eu também fiquei calado e chamei a Bancada dos Partidos Comunistas ao Palácio e batemos uma fotografia. No momento em que o Presidente bate uma fotografia com todos os comunistas, uma palavra que era maldita, evidentemente - eu tinha certeza - acabávamos com a chamada discriminação. Não se tratava de legalização, o que, historicamente, eu tivesse tido a felicidade de fazer, mas acho que há uma certa contribuição minha no fim da discriminação.

Em seguida, liguei para o João Amazonas e o convidei para jantar no Palácio do Planalto. De repente, a Nação estarrecida assistia o João Amazonas jantando com o Presidente da República no Palácio e nós discutindo o problema da convivência, da divergência, o que acho que é a essência, o grande problema da democracia. Fiz a mesma coisa com Giocondo Dias, de quem eu gostava muito. Conheci-o através do Jorge Amado e posso dizer que tivemos uma grande amizade. Quando ele adoeceu na União Soviética, também tive oportunidade de escrever-lhe e mandar visitá-lo, sempre o assistindo com as minhas preocupações.

Estou falando isso porque essas coisas foram relembradas aqui, mas para falar sobre o Ministério da Reforma Agrária. Entreguei esse Ministério a Dante de Oliveira, que foi um excelente Ministro. Devemos a ele uma época de tranqüilidade e de diálogo naquela área. Ele saiu para ser candidato a Deputado Federal e, depois, a Governador do Estado, que exerceu por duas vezes, e cumpriu a sua vida. Portanto, a comoção do Senador Arthur Virgílio é uma comoção que também é nossa, minha particularmente.

Confesso que, ontem à noite, não soube do falecimento do Dante de Oliveira e vim saber pela manhã bem cedo. Meu filho José me telefonou e comunicou a morte do Dante de Oliveira. Realmente, senti um momento de grande comoção interna, certa tristeza em sentir que a paisagem humana que cercou nossa vida inteira, as afeições, carinhos, pessoas, o tempo vai fazendo com que ela desapareça.

Mas o que fica do Dante, na minha lembrança e, eternamente, na minha saudade, é, sem dúvida, a figura de um grande homem público, sobretudo, de um homem público que conseguiu vencer o tempo e ser um jovem até o fim da vida. Creio que ele está hoje chegando junto ao Criador e apresentando muitos planos para salvar o mundo.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 08/07/2006 - Página 23138