Pronunciamento de Valdir Raupp em 16/08/2006
Discurso durante a 134ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal
Homenagem a Guimarães Rosa, por ocasião do cinqüentenário de publicação da obra "Grande sertão: veredas".
- Autor
- Valdir Raupp (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RO)
- Nome completo: Valdir Raupp de Matos
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- Homenagem a Guimarães Rosa, por ocasião do cinqüentenário de publicação da obra "Grande sertão: veredas".
- Publicação
- Publicação no DSF de 17/08/2006 - Página 27021
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- HOMENAGEM, CINQUENTENARIO, LANÇAMENTO, LIVRO, AUTORIA, JOÃO GUIMARÃES ROSA, ESCRITOR, ESTADO DE MINAS GERAIS (MG), HISTORIA, GEOGRAFIA, LINGUAGEM, HABITANTE, REGIÃO NORDESTE, VITIMA, SECA, IMPORTANCIA, CONTRIBUIÇÃO, LITERATURA BRASILEIRA.
O SR. VALDIR RAUPP (PMDB - RO. Sem apanhamento taquigráfico.) - Sr Presidente, Srªs e Srs. Senadores, uma das mais importantes obras da literatura brasileira, verdadeiro marco na cultura nacional, chega este ano ao cinqüentenário de sua publicação com uma surpreendente atualidade. Refiro-me a Grande sertão: veredas, obra-prima de Guimarães Rosa, que é considerado o maior escritor brasileiro do Século XX e cuja produção literária tem suscitado vivo interesse na comunidade acadêmica e artística internacional.
Quando publicou Grande sertão, em maio de 1956, esse mineiro de Cordisburgo, médico e diplomata, já era conhecido no panorama literário nacional. Já freqüentara revistas e tablóides literários como contista, já publicara uma coletânea de poemas (Magma, premiada pela Academia Brasileira de Letras e um livro de contos (Sagarana) e acabara de publicar, quatro meses antes, Corpo de baile. Ainda assim, é de se imaginar o impacto causado por um romance que começava assim:
“Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade”.
E algumas linhas adiante:
“O Urucuia vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá - fazendões de fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda dessas lá há. O Gerais corre em volta. Esses Gerais são sem tamanho. Enfim, cada um sabe o que aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniões... O sertão está em toda a parte”.
Esse impacto, Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, foi tamanho que Grande sertão: veredas tornou-se, se não um divisor, uma referência obrigatória no estudo do nosso universo ficcional. Em artigo publicado no suplemento Idéias & Livros, do jornal Folha de S.Paulo, edição especial de 18 de fevereiro passado, Bruno Liberati comenta: “Suspeita-se que esse livro causou um vasto medo diante da novidade que de fato era. Tanto nos ácidos críticos como naqueles que não o leram. Não podia ser diferente: o romance é uma explosão da invenção, na forma, na técnica e na linguagem”.
Em outro artigo, no mesmo suplemento - todo ele, aliás, dedicado ao cinqüentenário da publicação -, o escritor Aleilton Fonseca diz que o impacto de Grande sertão chegou a obscurecer as demais obras do escritor mineiro: “Guimarães Rosa estréia com Sagarana em 1946 e só reaparece dez anos depois, em janeiro de 1956, com Corpo de baile, em dois volumes, contendo o seu ciclo novelesco. Meses depois, surge o Grande sertão: veredas, que abala o meio literário, provoca entusiasmo e polêmica, consagrando o autor como grande ficcionista. O estrondoso sucesso do romance - observa Fonseca - relega as novelas ao segundo plano, ao ponto de, ainda hoje, vários críticos considerarem que elas estão por merecer mais atenção dos leitores e dos estudiosos”.
O suplemento traz ainda artigo de Álvaro Costa e Silva, peremptório: “O impacto do livro foi imediato, praticamente dividindo a literatura brasileira em antes e depois dele”. A seguir, Álvaro cita correspondência a respeito da obra, entre Fernando Sabino e Clarice Lispector. Diz Fernando: “O melhor de tudo é o livro do Guimarães Rosa, não o Corpo de baile, que não li, mas o Grande sertão: veredas, que estou na metade mas é coisa de gênio, não deixo por menos”. Responde Clarice: “Nunca vi coisa assim. É a coisa mais linda dos últimos tempos. Não sei até onde vai o poder inventivo dele, ultrapassa o limite imaginável. Estou até tola. A linguagem dele, tão perfeita de entonação, é diretamente entendida pela linguagem íntima da gente - e nesse sentido ele mais que inventou, ele descobriu, ou melhor, inventou a verdade. Que mais se pode querer?”.
Eduardo Coutinho, no prefácio de Guimarães Rosa - Ficção Completa, editora Nova Aguilar, não economiza palavras para enaltecer a qualidade literária:
“Um dos maiores ourives da palavra que a literatura brasileira jamais conheceu e ao mesmo tempo um dos mais perspicazes investigadores dos matizes da alma humana em seus rincões mais profundos, Guimarães Rosa é hoje, entre os escritores brasileiros do século XX, talvez o mais divulgado nos meios acadêmicos nacionais e estrangeiros e o detentor de uma fortuna crítica não só numericamente significativa, como constituída pelo que de melhor se vem produzindo em termos de crítica no país”.
Ressaltando embora a complexidade da obra de Guimarães Rosa e a revolução que promoveu na linguagem ficcional, Coutinho lembra que o êxito do grande escritor não se circunscreveu ao meio intelectual. “Prova-o bem a grande quantidade de edições que se sucedem de seus livros e o número expressivo de traduções que povoam cada vez mais o mercado internacional. Prova-o também - continua - a série de leituras que a obra de Guimarães Rosa vem recebendo por parte do teatro (Sarapalha, por exemplo), e da mídia cinematográfica e televisiva (longa-metragens como A hora e a vez de Augusto Matraga, Duelo, Noites do sertão, Cabaré mineiro e A Terceira margem do rio, entre outros, e a série televisiva Diadorim)”.
É quase impossível, Sr. Presidente, Srªs e srs. Senadores, ler Guimarães Rosa sem lembrar a célebre recomendação de Leon Tolstoi: “Canta a tua aldeia e cantarás o mundo”. Não é de admirar, portanto, que o universo rosiano, com um forte componente regionalista que contempla a geografia, a linguagem e os tipos humanos do sertão, os “causos” e a vida nos Gerais, desperte tanto interesse em nosso País e mundo afora. Cito, novamente, Eduardo Coutinho: “A obra de Guimarães Rosa é uma obra plural, marcada pela ambigüidade e pelo signo da busca, que se ergue como uma constelação de elementos muitas vezes opostos e contraditórios. Regional e universal, mimética e consciente do seu próprio caráter de ficcionalidade, ‘realista’ e ‘anti-realista’, ela é, por excelência, um produto do século XX, uma arte de síntese e relatividade, e ao mesmo tempo a perfeita expressão do contexto de onde emerge, uma terra que só pode ser compreendida quando vista como um grande amálgama de culturas”.
Sr. Presidente, o ano de 1956, na opinião dos estudiosos, foi particularmente feliz para a literatura brasileira. Naquele ano foram publicados, além de Grande sertão:veredas e Corpo de baile, Contos do imigrante, de Samuel Rawet; Doramundo, de Geraldo Ferraz; Orfeu da Conceição, de Vinícius de Moraes; A lua vem da Ásia, de Campos de Carvalho; e Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto; entre outras obras de grande relevância, conforme lembra o escritor Alberto Mussa, no suplemento Idéias & Livros. Foi, também, o ano de criação do “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, e o ano que marcou o surgimento da poesia concreta em nosso País. Ou seja, ainda que Grande Sertão não tivesse sido publicado, ainda assim seria um ano preciosíssimo para a literatura brasileira. O romance de Guimarães Rosa, entretanto, foi guindado à condição de, digamos assim, carro-chefe da renovação literária.
A importância dessa obra pode ser avaliada pelas numerosas reedições, traduções e dramatizações que suscitou ao longo desse tempo; mas também pode ser medida pelos lançamentos que ora marcam o seu cinqüentenário: uma edição popular, que inaugura a coleção Biblioteca dos Estudantes, da Nova Fronteira; uma edição comemorativa, com texto integral, acabamento de luxo e tiragem limitada acompanhada de CDs multimídia, também pela Nova Fronteira; uma coletânea dos contos publicados pela revista O Cruzeiro, para a qual contribuiu o escritor mineiro, ainda pela Nova Fronteira; uma antologia de contos de escritores contemporâneos inspirados na obra de Guimarães Rosa, pela Garamond; o romance Nhô Guimarães, do escritor Aleilton Fonseca, pela Bertrand Brasil; e ainda coletânea de ensaios e cadernos especiais de literatura sobre o universo rosiano.
Embora não seja o tema deste pronunciamento, Sr. Presidente, não poderia, ao comentar a grandiosa obra de Guimarães Rosa, omitir suas virtudes como cidadão e como diplomata que, de acordo com relatos da época, pôs seu talento a serviço do Brasil e da dignidade do ser humano.
Como médico, tendo trabalhado juntamente com o saudoso Juscelino Kubitschek na Revolução Constitucionalista, de 1932, conheceu de perto a alma humana e teve contato com a gente simples do interior, sendo, ele próprio, da pequena Cordisburgo, nos sertões de Minas Gerais. Diplomata, por muitos anos exerceu suas funções no exterior, destacando-se, nesse período, sua coragem e sua sensibilidade na emissão de vistos para judeus perseguidos pelo regime nazista. A glória literária, nessas circunstâncias, viria a premiar um brasileiro que já se destacava por muitos outros méritos.
Eleito por unanimidade para a vaga de João Neves da Fontoura na Academia Brasileira de Letras, em 1963, somente tomaria posse em 1967. Seria imortal por apenas três dias. Vítima de um enfarte, faleceu em 19 de novembro daquele ano, deixando órfãos, além dos familiares, os admiradores de uma arte literária autêntica, genuína, híbrida, rica e absolutamente revolucionária.
No cinqüentenário de Grande sertão:veredas, presto uma singela homenagem a esse grande escritor e humanista, e , inspirado na sua obra, ainda e sempre instigante e atual, renovo minha admiração pela riqueza ímpar da produção literária brasileira.
Muito obrigado!