Pronunciamento de Pedro Simon em 07/12/2006
Discurso durante a 201ª Sessão Deliberativa Ordinária, no Senado Federal
Voto de louvor ao escritor Mário Quintana por ocasião da comemoração do centenário do seu nascimento.
- Autor
- Pedro Simon (PMDB - Movimento Democrático Brasileiro/RS)
- Nome completo: Pedro Jorge Simon
- Casa
- Senado Federal
- Tipo
- Discurso
- Resumo por assunto
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HOMENAGEM.:
- Voto de louvor ao escritor Mário Quintana por ocasião da comemoração do centenário do seu nascimento.
- Publicação
- Publicação no DSF de 08/12/2006 - Página 37656
- Assunto
- Outros > HOMENAGEM.
- Indexação
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- COMEMORAÇÃO, CENTENARIO, MARIO QUINTANA, POETA, ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL (RS), LEITURA, TRECHO, OBRA LITERARIA, ENTREVISTA, ELOGIO, CONTRIBUIÇÃO, LITERATURA BRASILEIRA, COMENTARIO, PENSAMENTO, ESCRITOR, AMBITO, POLITICA, RELIGIÃO, ARTES, VIDA HUMANA.
O SR. PEDRO SIMON (PMDB - RS. Para encaminhar. Sem revisão do orador.) - Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, meus colegas gaúchos, autores também desta nossa homenagem - Senadores Sérgio Zambiasi e Paulo Paim.
Aqui, estamos reunidos para saudar um dos maiores poetas brasileiros da segunda metade do Século XX, o nosso conterrâneo Mário Quintana. No entanto, não cabe aqui fazer um pronunciamento tradicional. O nosso homenageado não o aceitaria.
Aliás, é interessante imaginar o que pensaria dessa homenagem, o poeta que, no poema “Percalços da Posteridade”, escreveu: “O mais irritante de nos transformarem um dia em estátuas é que a gente não pode mais coçar-se”.
É famoso o episódio da recusa de Mário Quintana, em 1968, em receber uma homenagem da prefeitura de sua cidade. Só depois de uma negociação, o poeta permitiu que fosse colocada na praça principal do Alegrete uma placa em que está inscrito: “Um engano em bronze é o engano eterno”.
Sendo assim, começamos aqui, no Senado Federal, falando de política.
No quinto poema de seu primeiro livro A Rua dos Cataventos, editado em 1940, diz o poeta:
Eu nada entendo da questão social,
Eu faço parte dela, simplesmente...
E sei apenas do meu próprio mal,
Que não é bem o mal de toda gente.
É importante começamos com esse poema porque foi moda neste País, especialmente nos politizados anos 60 e 70, cobrar posição política de artistas e escritores. Mario Quintana sempre foi fiel à poesia, à grande poesia. Mas não deixou jamais se pronunciar sobre tudo o que diz respeito ao homem. Até mesmo, sempre com sutil ironia, à política.
Desiludido com as utopias políticas que pretendiam criar um mundo sem divisão de classes sociais, ele escreveu no poema “Desigualdade”: “A morte não iguala ninguém: algumas caveiras têm todos os dentes”.
E no poema intitulado “Origem suspeita”, comenta o regime político sob o qual vivemos: “A democracia é uma invenção das classes ociosas de Atenas”. Vejam a ironia do poeta!
Vejamos também o que disse sobre o trabalhador no poema “Proletário”:
“Sujeito explorado financeiramente pelos patrões e literalmente pelos poetas engajados”.
Sobre um antigo chavão da esquerda, no poema “O ópio”, ele escreveu: “Dizem os comunistas que a religião é o ópio do povo; outros dizem que o ópio do povo é o comunismo; se me pedissem a minha opinião, eu diria que o ópio do povo é o trabalho”.
Numa época em que não era politicamente correto atacar a esquerda, escreveu no poema “Anacronismo”:
“O Brasil é o único país do mundo em que ser comunista ainda é sinal de idéias avançadas”.
Também em relação à religiosidade, ele tinha definições sempre surpreendentes, como no poema “Pergunta Errada”:
“Se eu acredito em Deus? Mas que valor poderia ter a minha resposta, afirmativa ou não? O que importa é saber se Deus acredita em mim.”
No poema “Confissão” faz uma ironia declarando:
“Sou um herege de todas as religiões.”
Há também um poema, intitulado “Paraísos”, que pode ser entendido como uma divertida abordagem -- simultânea -- de política e religião:
“As religiões cresceram entre os humildes porque aqueles que estavam por cima já se julgavam no paraíso.”
Mário Quintana também não levava a sério a crítica literária. No poema “E Agora?” brincou:
“Há críticos que em vez de me julgarem pelo que eu sou, julgam-me pelo que eu não sou. É como quem olhasse um pessegueiro e dissesse: Mas isso não é um trator!”
Candidato à Academia Brasileira de Letras, foi derrotado. Dizem que pensando nos que não o apoiaram escreveu o famoso, repito, Zambiasi, “Poeminha do Contra”:
Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
Mário Quintana manteve silêncio sobre sua vida pessoal. Mesmo concedendo entrevistas a todo o jornalista que o procurasse, defendia sua privacidade com declarações desnorteantes.
Escreveu ele em “Apresentação”:
“Nasci em Alegrete em 30 de julho de 1906. Creio que foi a principal coisa que me aconteceu. E agora pedem-me que fale sobre mim mesmo. Bem! Eu sempre achei que toda confissão não transfigurada pela arte é indecente. Minha vida está nos meus poemas, meus poemas são eu mesmo, nunca escrevi uma vírgula que não fosse uma confissão. Ah! mas o que querem são detalhes, cruezas, fofocas... Aí vai! Estou com 78 anos, mas sem idade. Idades só há duas: ou se está vivo, ou morto.”
Numa entrevista à jornalista e escritora Patrícia Bins faz uma brincadeira com o fato de ele próprio evitar responder questões que dizem respeito à sua vida.
Pergunta Patrícia Bins: “O que mais irrita os outros? E em si mesmo?”
Respondeu o poeta: “As perguntas íntimas. As respostas evasivas”.
Numa entrevista, que está reproduzida no livro Da Preguiça como Método de Trabalho, Mário Quintana fala do tempo de sua meninice:
“Não sei se tive infância. Fui um menino doente por trás de uma janela. Creio que foi a ele que dediquei depois um soneto de A Rua dos Cata Ventos.”
Vale a pena reproduzirmos aqui o poema referido, que é o sexto do primeiro livro publicado pelo poeta:
Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.
Numa entrevista, concedida à professora Edla Van Steen, o poeta justifica sua resistência em tratar da vida pessoal:
“Poeta lírico, falo do meu eu, nos poemas, como um ser humano. Creio que a minha vida íntima nem a mim interessa. Quando a gente fala sobre si mesmo, é para se gabar ou para se queixar. No primeiro caso, ainda passa. Mas, no segundo, ninguém gosta de desperdiçar piedade.”
Dono de uma obra peculiar, em que se misturam a fina ironia e a observação que lança uma luz nova sobre o nosso cotidiano, Mário Quintana foi contemporâneo de extraordinários poetas, como Manoel Bandeira, Carlos Drummond e João Cabral de Melo Neto.
Aliás, ficou justamente famoso o belíssimo poema intitulado “A Mário Quintana”, com o qual o poeta pernambucano Manoel Bandeira saudou o poeta gaúcho em sessão da Academia Brasileira de Letras, em 25 de agosto de 1966. É um poema que resume bem a grandeza do trabalho de Quintana, que produzia uma aparente simplicidade poemas de grande sofisticação estilística:
Mário Quintana, os teus cantares
Não são, Quintana, catares:
São, Quintana, quintanares.
Quinta-essência de cantares...
Insólitos, singulares...
Cantares? Não Quintanares!
Quer livres, quer regulares,
Abrem sempre os teus cantares
Como flor de quintanares.
São cantigas sem esgares,
Onde as lágrimas são mares
De amor, os teus quintanares.
São feitos esses cantares
De um tudo-nada: ao falares
Luzem estrelas e luares.
São para dizer em bares,
Como em mansões seculares,
Quintana,os teus quintanares.
Sim,em bares,onde os pares
Se beijam sem que repares
Que são casais exemplares.
Em Sapato Florido, livro publicado em 1948, estão alguns de seus poemas mais famosos, como o célebre “Mentira”, que diz: “Mentira é uma verdade que se esqueceu de acontecer.”
Ou o poema “Carreto”, que diz:
“Amar é mudar a alma de casa.”
Ou ainda o poema “Provérbio”:
“O seguro morreu de guarda-chuva.”
Ou também ”Epígrafe”:
“As únicas coisas eternas são as nuvens”.
Um dos seus livros mais admirados é Caderno H, de 1973, que reuniu alguns dos poemas que ele publicava nas edições de sábado do Correio do Povo. Aqui quero mencionar o poema “Cartaz para Turistas”:
“Viajar é mudar o cenário da solidão.”
E também o poema “Dupla Delícia”:
“O livro traz a vantagem de a gente poder estar só e ao mesmo tempo acompanhado.”
E ainda o irônico “Bebida”:
“Quem bebe por desgosto é um cretino: só se deve beber por gosto.”
Destaco ainda o poema “Vidinha”:
“O mais triste de um passarinho engaiolado é que ele se sente bem”.
Mário Quintana nasceu em 30 de julho de 1906, na cidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Disse ele na apresentação do seu livro Da Preguiça como Método de Trabalho, publicado em 1987. Prestem atenção:
“Nasci no rigor do inverno, temperatura: 1 grau; e ainda por cima prematuramente, o que me deixava meio complexado, pois achava que não estava pronto”.
Mário Quintana escreveu muitas poesias sobre a arte de fazer versos. Um dos seus depoimentos mais extensos sobre o assunto está numa entrevista que concedeu a Dante de Laitano. Nela disse o poeta:
Eu tenho feito é versos, o que não comporta nem método nem horário. Dá-se, suponho, um longo do trabalho interior, um caos de impressões indefiníveis, choques, sentimentos etc., até que um dia, sem fiat nem nada, brota um mundinho inesperado: o poema. Aí, então, o poeta intervém, escolhe, omite, trabalha, pois a poesia é também uma arte plástica... É uma ocupação, aliás, agradável. Acho que todo mundo devia fazer versos: a análise dos próprios sentimentos e sensações e o refinamento da sua expressão verbal, eis uma ocupação que contribuiria em muito para a melhoria dos nossos semelhantes, ou, pelo menos, os impediria de fazer coisas piores.
Mário Quintana se dedicou também a examinar o ato da criação poética, como se vê na obra intitulada “O Terrível Instante”:
“Antes de escrever, eu olho, assustado, para a página branca de susto”.
Ou ainda em “Mistérios da Língua Portuguesa”:
“O mais difícil, quando se escreve em prosa, é evitar as rimas e, quando se escreve em verso, achar uma rima”.
E também em “A Revelação”:
“Um bom poema é aquele que nos dá a impressão de que está lendo a gente... e não a gente a ele”.
E, ainda sobre a questão presente de cobrança de uma atitude política do poeta diante da vida, diz em “A Função”:
“A função do poeta não é explicar-se. A função do poeta é expressar-se”.
Uma das grandes preocupações de Mário Quintana era a passagem dos anos, tema que ele examina, por exemplo, em “Relógio”. Prestem atenção, por favor:
“O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família”. (Risos.)
Repito: “O mais feroz dos animais domésticos é o relógio de parede: conheço um que já devorou três gerações da minha família”.
Um outro belo exemplo é “Reflexos, Reflexões”:
“Quando a idade dos reflexos, rápidos, inconscientes, cedem lugar à idade das reflexões - terá sido a sabedoria que chegou? Não! Foi apenas a velhice”.
Temos ainda “O Tempo”:
“O tempo é um ponto de vista dos relógios”.
E podemos também relembrar o poema “Cautela”:
“Há dois sinais de envelhecimento. O primeiro é desprezar os jovens. O outro é quando a gente começa a adulá-los.”
Mario Quintana faleceu em 1994. Da morte tratou ele em muitos poemas, como “Mudança”:
“O mais difícil na morte é acomodar-se a gente aos novos hábitos”.
O poeta viveu a maior parte de sua vida em Porto Alegre, cidade que amava - como disse o querido Zambiasi -, o que deixou claro no poema “O Mapa”:
Olho o mapa da cidade
Como quem examinasse
A anatomia de um corpo...
(É que nem fosse o meu corpo!)
Sinto uma dor infinita
Das ruas de Porto Alegre
Onde jamais passarei...
E também o sempre saudado “Para Escreveres Num Cartão Postal”:
Ó céus de Porto Alegre,
Como farei para levar-vos para o Céu.
Suas observações insólitas quase sempre dão um novo sentido a idéias há muito estabelecidas ou nos fazem refletir sobre algo do cotidiano que nos passou despercebido.
Diz o poema “Verbete”: “Autodidata: ignorante por conta própria”.
Repito: “Autodidata: ignorante por conta própria”.
Em “Vida Social” o poeta ironiza a nossa presença no mundo social: “O gato é o único que sabe manter-se com indiferença num salão. As outras indiferenças são afetadas”.
Também ataca as poses que as pessoas adotam na vida, como no poema “É Isso Mesmo”:
“Quem nunca se contradiz deve estar mentindo”.
Ou lança mão de conceitos surpreendentes:
“A hortência é uma couve-flor pintada de azul”.
Repito: “A hortência é uma couve-flor pintada de azul”.
E exprime sua total liberdade em “Os Intermediários”:
“Nunca me acertei bem com os padres, os críticos e com os canudinhos de refresco”.
No poema “21 de Agosto”, brinca com a excessiva preocupação com a saúde nos dias que correm - por gentileza, prestem atenção:
“O ideal da medicina é fazer os doentes morrerem com saúde”.
Repito: “O ideal da medicina é fazer os doentes morrerem com saúde”. É uma grande medicina!
Examina um esporte por um ângulo inusitado em “Tênis”:
“Ótima ginástica de pescoço para o público das arquibancadas”. (Risos.)
Em “Da Amizade” mostra uma nova maneira de encararmos um sentimento dos mais fortes:
“A amizade é uma espécie de amor que nunca morre”.
Sr. Presidente, Srªs e Srs. Senadores, espero ter, neste pronunciamento, dado uma pálida idéia do trabalho do poeta Mário Quintana. De olhos abertos para a vida comum do homem, ele esmiúça as pequenas coisas do dia-a-dia, mas não deixa de examinar os grandes temas. A sua aparente simplicidade quase esconde um pensamento sofisticado e um caprichoso trabalho de ourivesaria.
Tânia Franco Carvalhal, na apresentação das obras completas de Mário Quintana, examina com perfeição esse aspecto:
A leitura do conjunto da obra de Mário Quintana nos permite identificar alguns traços que lhe são essenciais e a tornam inconfundível na literatura brasileira. Essa identificação leva-nos necessariamente a uma revisão de determinadas características, com freqüência relacionadas à sua poesia, apontando justamente o seu avesso. Se já foi atribuída “simplicidade” a seus versos, por exemplo, alguns deixaram de ver que a essa aparência espontânea correspondiam um trabalho consciente e um domínio amplo da matéria poética.
Encerro com uma poesia de Quintana, uma das mais belas e mais densas, intitulada “Projeto de Prefácio”:
Sábias gentilezas! Refinamentos...
- não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
Como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe.
Um poema não é também quando paras no fim,
Porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
Não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!
Era isso o que queria dizer, lembrando Quintana na sua linguagem.
Muito obrigado.