Discurso durante a 11ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

O quadro de violência e a desigualdade social no Brasil. O abandono de crianças pelo governo brasileiro na área de educação.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL. SEGURANÇA PUBLICA. EDUCAÇÃO.:
  • O quadro de violência e a desigualdade social no Brasil. O abandono de crianças pelo governo brasileiro na área de educação.
Aparteantes
Eduardo Suplicy.
Publicação
Publicação no DSF de 23/02/2007 - Página 2711
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL. SEGURANÇA PUBLICA. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • ELOGIO, EDUARDO SUPLICY, SENADOR, SOLIDARIEDADE, BRASILEIROS, ILEGALIDADE, IMIGRAÇÃO, IMPORTANCIA, ATENÇÃO, EXISTENCIA, DESIGUALDADE SOCIAL, BRASIL, RESTRIÇÃO, CIDADE, REGIÃO, PROGRESSO, MIGRAÇÃO, POPULAÇÃO, ORIGEM, REGIÃO SUBDESENVOLVIDA, SEMELHANÇA, DEPORTAÇÃO, PAGAMENTO, RETORNO, DISCRIMINAÇÃO, CLASSE SOCIAL, ACESSO, AREA, ZONA URBANA.
  • COMENTARIO, DEBATE, COMISSÃO, DIREITOS HUMANOS, DIVISÃO, CRIME, CRIME HEDIONDO, OPINIÃO, ORADOR, GRAVIDADE, CRIME DO COLARINHO BRANCO, CORRUPÇÃO, CRIME CONTRA O MEIO AMBIENTE.
  • INCLUSÃO, DESIGUALDADE SOCIAL, DEFINIÇÃO, CRIME HEDIONDO, SEMELHANÇA, EXPLORAÇÃO SEXUAL, MENOR, ANALFABETISMO.
  • COMENTARIO, ESTATISTICA, GRAVIDADE, NUMERO, CRIANÇA, AUSENCIA, MATRICULA, DESISTENCIA, ABANDONO, ENSINO, FALTA, COMPROMISSO, BRASIL, REDUÇÃO.
  • DEFESA, PUNIÇÃO, CRIME, COMBATE, IMPUNIDADE, DIVIDA, JUSTIÇA SOCIAL, CONCLAMAÇÃO, REVOLUÇÃO, AMBITO, EDUCAÇÃO.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Srª Presidente, muito obrigado.

Antes de começar o meu discurso, gostaria de comentar o pronunciamento do Senador Eduardo Suplicy, fazendo um elogio: V. Exª não deixa passar nenhum problema com brasileiro; sempre traz para cá. Isso é algo muito bonito de ver em um Senador. V. Exª não deixou passar despercebido o fato de que um grupo de 40 brasileiros foi preso e deportado.

Gostaria também, Senador Eduardo Suplicy, de propor uma reflexão sobre os muros que existem dentro do Brasil. Hoje, existem cidades mandando de volta para a origem brasileiros que tentam fugir das áreas mais pobres do Brasil. Existe, sim, a vontade de muitos moradores de cidades ricas de impedir que nordestinos cheguem lá. Alguns fatos de deportação são disfarçados sob a forma de pagamento para retorno. A verdade é que hoje há uma quantidade de muros no Brasil que talvez não fiquem atrás da maldade desse muro que os Estados Unidos estão construindo separando os latino-americanos deles.

Senador Eduardo Suplicy, felicito V. Exª por ter trazido à baila nesta Casa um assunto atinente a compatriotas.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Obrigado, Senador Cristovam Buarque. É importante que nós, no Brasil, tenhamos meios de não precisar construir nenhuma barreira dessa natureza. Recentemente, lá no Rio de Janeiro, considerou-se até a hipótese de construir muros dentro da cidade, separando ricos e pobres, favelados e não-favelados; mas, felizmente, essa idéia não prevaleceu, pois só viria a separar brasileiros e brasileiras, e não podemos permitir que isso aconteça.

Devemos, sim, ampliar a igualdade de oportunidade para todos em todo o território nacional e, na medida do possível e cada vez mais, nas Américas.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Senador Eduardo Suplicy, sei que a sua preocupação é essa e, por isso, comecei felicitando V. Exª por ter trazido o problema a esta Casa.

Embora venha falar de outro assunto, não posso deixar de dizer que esses muros já existem. Os shopping centers são um exemplo. Quando criança, eu andava no centro de Recife. Hoje, não; hoje a classe média de Recife vai ao shopping center. O povo e a classe média mais baixa vão ao centro da cidade. Isso existe em quase todas as cidades brasileiras. Os campi das universidades, em grande parte, são cercados com barreiras e muros e é cobrado crachá para entrar lá. O crachá é o nosso passaporte. Para entrar nos Estados Unidos precisa-se de um passaporte brasileiro. No Brasil, para entrar em qualquer lugar, você precisa de um crachá que diga que você é dali. Se vier um que não seja dali é tratado como estrangeiro. 

Quero felicitá-lo por tratar desse assunto, Senador Eduardo Suplicy.

Srª Presidente, o que venho falar aqui talvez não seja relevante, neste momento, mas é fruto de uma reflexão hoje de manhã na reunião da Comissão de Direitos Humanos da qual o Senador Eduardo Suplicy também participou.

Estávamos discutindo a violência e a maneira de enfrentá-la, além da redução da maioridade penal como forma de enfrentar a violência. Durante o debate surgiu um assunto que achei que merecia ser objeto de um pronunciamento para levá-lo a um público maior. Foi a lembrança de que o quadro social brasileiro e de violência está tão degradado que agora costumamos dividir os crimes em dois tipos: os hediondos e os não-hediondos, como se houvesse crime a ser tolerado e crime a ser reprimido, como se houvesse crime bom e crime ruim. É claro que ninguém duvida que certas maldades - não é crime hediondo, mas certas maldades - são fruto de uma perversão muito maior. Mas será que não é hediondo o crime da corrupção, Senador Suplicy? Quando um juiz, vestido de sua toga, desvia dinheiro que era para a construção de um prédio, como no caso do TRT de São Paulo, aquilo era ou não era hediondo, tanto quanto matar ou esquartejar uma pessoa, ou arrastar uma criança pelas ruas? Será que no Brasil, a partir de agora, matar com um tiro certeiro no coração é um crime mais tolerado do que um crime de matar a pauladas uma pessoa, como uma jovem, em São Paulo, matou recentemente os seus pais? Até que ponto estamos aceitando tanto horror que começamos a diminuir a dimensão do próprio horror? Será que o crime da destruição da Amazônia, o corte daquelas árvores, não é um crime hediondo também? Por que não é hediondo derrubar uma árvore centenária em poucos minutos, graças a uma motosserra, para explorar a madeira, sem deixar nada do produto para aqueles que ali moram?

Destruir o meio ambiente é um crime tolerado, maior do que aquele que vemos nos jornais de vez em quando? Será que nós não nos acostumamos tanto com a criminalidade, que somente nos horrorizamos com o que há de mais grave no horror, chamando isso de crime hediondo, para desfazer a hediondez de todos os crimes? Será que não existe um horror ausente que já não consideramos horror?

A própria desigualdade social neste País é ou não crime de horror, um crime hediondo? Não sabemos quem é o culpado por ela, é verdade; mas existem muitos crimes de que não sabemos quem é o culpado. Podemos encontrar cadáveres pelas ruas e não sabermos quem é o criminoso. Isso não quer dizer que o crime não ocorreu. Da mesma maneira, a desigualdade social brasileira, mesmo que não possamos apontar quem é o responsável por ela, é ou não um crime que o Brasil está cometendo contra o Brasil? Que nós, os dirigentes deste País, estamos cometendo, ou por ação, ou por omissão, ou por incompetência, por não saber resolver esse problema?

A desigualdade é um crime hediondo sim. E pior, é um crime hediondo que provoca outros crimes hediondos. E nós esquecemos isso. Conviver em um País que possui milhares e milhares de meninas vivendo da prostituição, vivendo da exploração sexual, é ou não é crime hediondo, como se diz? É. Mas não o consideramos crime, nem consideramos a hediondez dentro dele. Sermos capazes de sobreviver, viver, usufruir a vida neste País enquanto milhares de meninas se prostituem para levar algum dinheiro para casa é, sim, um crime. Não sei quem é o culpado.

Senador Eurípedes Camargo, que nos dá a honra de quase sempre estar aqui conosco, não é crime deixar que neste País haja 15 milhões de analfabetos? Nós convivemos com isso, aceitamos isso e não nos indignamos com o fato de haver 15 milhões de brasileiros adultos analfabetos. Isso é ou não um crime? Sabemos que neste País, Senador Eduardo Suplicy, 15 milhões de pessoas não são capazes de reconhecer a nossa Bandeira porque eles não sabem ler o que está escrito lá: “Ordem e Progresso”.

Se misturarem as letras, para eles a Bandeira continua sendo do Brasil. Faz 118 anos que essa Bandeira foi desenhada pelos primeiros republicanos. São 118 anos de República, mas não conseguimos abolir o analfabetismo de adultos. Isso é ou não um crime hediondo como deveria ser todo crime? Porém, nós nos esquecemos disso. Convivemos com esses analfabetos que circulam entre nós. Eles não trazem escrito na testa que são analfabetos, mas, se prestarmos atenção, perceberemos que eles trazem nos olhos o estado de analfabetismo em que vivem, porque, Senador Eduardo Suplicy, a maneira como um adulto analfabeto olha para nós é diferente da maneira como olha para nós uma pessoa alfabetizada.

No século XIX, também era diferente a maneira como um escravo olhava para os não-escravos. Havia uma humildade, uma submissão, uma inferioridade no olhar dos escravos semelhante aos sentimentos que vemos hoje nos olhos dos analfabetos. Quantos de nós prestamos atenção a esses olhares analfabetos? Tanto quanto aqueles que olhavam para um escravo no século XIX. Eles não percebiam o sentimento diferente que existia em cada um. Isso também é um crime. Abandonar milhões de pessoas sem direito a uma educação é ou não um crime? Não é, Senador Eurípedes? Comemoramos, neste País, o fato de que há 95% de crianças matriculadas em vez de pedirmos desculpas por haver 5% de crianças que nunca se matricularam. Já repararam nessa estatística? Sabem quanto significam esses 5%? Significam 1,5 milhão de crianças que não são matriculadas. Em vez de dizermos que somos criminosos por sermos responsáveis por isso, fazemos festa e comemoramos que 95% estão matriculadas. E o crime que é essas 95% estarem matriculadas e não freqüentarem? E algumas crianças freqüentam, mas não assistem; algumas assistem, mas não estudam; algumas estudam, mas não aprendem. Esquecemos isso.

Na verdade, essas 95%, no final, são apenas 18% que terminam o ensino médio com mediana qualidade - não estou falando em superqualidade. Ou seja, 82% das crianças, Senador Eurípedes, ficaram para trás, foram jogadas para trás.

O Governo americano do Presidente Bush, cuja política externa todo mundo critica, e com razão, tem um slogan que o Brasil nunca adotou: Nenhuma criança deixada para trás na América. É um belo slogan do programa educacional do Governo do Presidente Bush.

Nós nunca assumimos o slogan “nenhuma criança deixada para trás” no Brasil. Nunca assumimos que deixar uma criança para trás é um crime. Não vou dizer que seja mais dramático do que arrastar uma criança, como vimos duas semanas atrás, no Rio de Janeiro. Não. Arrastar uma criança é mais visível, é mais forte, é mais dramático. Mas deixar para trás, Senador Eurípedes, milhões de crianças, é em si um crime também. E um crime carregado de hediondez; um crime hediondo também.

O Sr. Eduardo Suplicy (Bloco/PT - SP) - Querido Senador Cristovam Buarque, no primeiro dia do segundo mandato do Presidente Lula, quando ele esteve aqui no plenário do Congresso Nacional, a imprensa registrou o abraço que o Presidente Lula deu em V. Exª, quando ambos, olho no olho, expressaram a amizade e o respeito que têm um pelo outro. E ainda que V. Exª, algumas vezes, teça críticas a alguns pontos daquilo que, por vezes, não vem sendo alcançado pelo Governo, a minha intuição é que o abraço do Presidente Lula significou o reconhecimento a essa batalha que V. Exª, incansavelmente, todos os dias, realiza, para que não haja mais um brasileiro sequer que não saiba ler e escrever e que todas as pessoas tenham condição de aprender o necessário para progredir, podendo estudar, permanecendo na escola mais horas. E que tenham fim esses crimes hediondos que, infelizmente, volta e meia, pessoas cometem no Brasil, para roubar, como pudemos assistir pela mídia no episódio da criança arrastada no Rio de Janeiro há poucos dias. Para que as pessoas entendam as oportunidades de educação mais adequadas possíveis e que possam ter sua condição de sobrevivência adequadamente conseguida porque aprenderam, através do estudo, da escola, dos livros, a criar melhores oportunidades para si próprias. Fiquei pensando: achei que aquele abraço teve um significado especial de homenagem a sua luta.

O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Muito obrigado, Senador Eduardo Suplicy. Isso me faz dizer aqui que minha fala, hoje, não tem nenhuma crítica ao Presidente Lula, em nenhuma hipótese. A culpa dele será se, daqui a dez anos, outro Senador vier aqui e falar as mesmas coisas que eu, porque terá passado quatro anos e ele não terá feito gestos necessários para barrar isso. Hoje, não. Hoje, a minha critica é a todos nós nestes últimos 118 anos de República. Todos nós, brasileiros que elegemos os Senadores e Deputados desde então, os eleitores e todos nós, os eleitos, que não estamos dando a resposta que o Brasil precisa, e sou parte disso, com a responsabilidade de Senador.

Agradeço também a lembrança do cumprimento pelo abraço que o Presidente Lula e eu trocamos no dia da posse dele. Mas quero deixar claro, Srª Presidente, que a minha fala é para lembrar que nada justifica, nada permite - eu diria que nada nem explica - o crime daqueles que mataram o menino, arrastando-o pelas ruas do Rio. Não! Aquilo foi uma barbaridade total. Tem de ser punida.

Agora, o que quero chamar a atenção é que existem muitas outras barbaridades que precisam ser punidas, paradas, acabadas, interrompidas, para que um novo Brasil surja. Alguns malvados vão continuar. Mas poderíamos parar o fato de que, no Brasil, a maldade deixou de ser uma exceção. Esta é que é a tragédia, Senadora. A tragédia é que, no Brasil, a maldade e a criminalidade deixaram de ser exceção, passaram a ser regra. E porque são regra, surgiu a necessidade de classificar a maldade, entre a hedionda e a não-hedionda.

Precisamos lutar para que, no Brasil, crime seja crime, maldade seja maldade, sem precisar aplicar adjetivos. E maldade e crime deixam de ser apenas aqueles físicos, que sabemos que acontecem porque vemos; que sejam também aqueles que se escondem e não vemos, porque nos acostumamos com eles. Os crimes que, de tanto acontecer, passam a ser tão banais e naturais, que convivemos com eles como se fossem naturais. Não são naturais. A desigualdade, no grau a que chegou no Brasil, não é natural. O abandono de criança não é natural, mas convivemos com isso. Criança fora da escola não é natural. Crianças em falsas escolas, e que comemoramos como se escolas fossem, não é natural, tem que ser modificado. Por isso, vamos assumir a necessidade de punir cada crime e a necessidade de descobrir os crimes invisíveis, nessa forma de hediondo ausente - por não vermos é que é ausente -, esse horror ausente, porque nos acostumamos com ele.

E, de tanto nos acostumar, deixamos de ver. Existe o horror visível e existe o horror escondido. E esse horror escondido, disfarçado no hábito que assumimos, a que nos acostumamos, esse horror tem de ser combatido. E a maneira de combatê-lo, em primeiro lugar, é mostrá-lo e dizer que ele também é horror. E combatê-lo. E aí eu digo: não é com pequenas medidas como a redução da pena; não é com medidas como a construção de mais cadeias, apenas. Tudo isso pode ser necessário, mas é muito mais profundo o tamanho do problema, é muito mais grave o tamanho da tragédia.

Só uma revolução é que pode resolver isso. E uma revolução que comece no próprio conceito de revolução. Porque, para mim, revolução não é mais desapropriação do capital; ao contrário, é a distribuição do capital conhecimento. Não é mais a estatização, que vai servir a poucos apenas e não a todos. É, sim, a disseminação do capital trabalho. Não é mais com guerrilhas nem guerrilheiros, e, sim, com escolas e professores. Esta é a revolução que vejo possível: uma revolução doce, sem o sabor amargo que vimos das revoluções do passado, com um sabor doce de um futuro, em que crime seja crime, e crime seja também aquilo que não vemos, porque o hábito nos escondeu e nos impediu de vê-los.

Muito obrigado.


Este texto não substitui o publicado no DSF de 23/02/2007 - Página 2711