Discurso durante a 35ª Sessão Não Deliberativa, no Senado Federal

Relato de experiência com a visita feita por S.Exa. à cidade de Redenção, no interior do Ceará, que aboliu a escravidão em primeiro de janeiro de 1883.

Autor
Cristovam Buarque (PDT - Partido Democrático Trabalhista/DF)
Nome completo: Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque
Casa
Senado Federal
Tipo
Discurso
Resumo por assunto
POLITICA SOCIAL. EDUCAÇÃO.:
  • Relato de experiência com a visita feita por S.Exa. à cidade de Redenção, no interior do Ceará, que aboliu a escravidão em primeiro de janeiro de 1883.
Aparteantes
Mão Santa.
Publicação
Publicação no DSF de 27/03/2007 - Página 6633
Assunto
Outros > POLITICA SOCIAL. EDUCAÇÃO.
Indexação
  • VISITA, MUNICIPIO, REDENÇÃO (CE), ESTADO DO CEARA (CE), COMEMORAÇÃO, ANIVERSARIO, ANTECIPAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, REGISTRO, HISTORIA, INICIATIVA, FAZENDEIRO, COMPARAÇÃO, SITUAÇÃO, ATUALIDADE, INDIGNIDADE, EXISTENCIA, PROSTITUIÇÃO, MENOR ABANDONADO, EXCLUSÃO, PARTE, POPULAÇÃO, MISERIA.
  • NECESSIDADE, COMPLEMENTAÇÃO, ABOLIÇÃO, ESCRAVATURA, INVESTIMENTO, MELHORIA, QUALIDADE, ESCOLA PUBLICA, TEMPO INTEGRAL, JUSTIFICAÇÃO, POSSIBILIDADE, GASTOS PUBLICOS, PRIORIDADE, PROVIDENCIA, OBJETIVO, DESENVOLVIMENTO NACIONAL, SEMELHANÇA, PAIS ESTRANGEIRO.
  • INICIO, ESTADO DO CEARA (CE), MOBILIZAÇÃO, POVO, PASSEATA, EXIGENCIA, EDUCAÇÃO, ANUNCIO, MANIFESTAÇÃO COLETIVA, CAPITAL DE ESTADO, ESTADO DO PARANA (PR), ESTADO DE MINAS GERAIS (MG), ESTADO DE SANTA CATARINA (SC), CONCLAMAÇÃO, ADESÃO, POPULAÇÃO.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF. Pronuncia o seguinte discurso. Sem revisão do orador.) - Em primeiro lugar, meus agradecimentos ao Senador Efraim, que me cedeu, por permuta, esta oportunidade de falar, para dividir com os Srs. Senadores uma experiência que tive ontem, ao visitar a cidade de Redenção, interior do Ceará.

            Fui a Redenção, porque, no dia 25 de março, comemora-se a abolição da escravidão no Ceará. O Ceará aboliu a escravidão em 25 de março de 1884, cinco anos antes do resto do Brasil. Mas Redenção, que mudou de nome exatamente por esse fato, aboliu a escravidão em 1º de janeiro de 1883, um ano antes do Ceará, que foi um ano antes do Brasil.

            Mas o importante não são essas datas históricas, mas o processo, Senador Mão Santa, como foi feita a abolição em Redenção. E, ao mesmo tempo, é importante trazermos para os dias de hoje aquilo que foi feito 120 anos atrás.

            Primeira parte: como é que fizeram a abolição? Um senhor de engenho, Senador Mão Santa, chamado Gil Ferreira Gomes, decidiu alforriar - como se chamava então - os seus escravos. E o fez. Mas não se conteve, ele foi aos seus colegas, donos de escravos, e tentou convencê-los de fazer o mesmo. Alguns aceitaram, outros não. Os outros disseram que se queriam que eles libertassem os seus escravos, que fossem lá e os comprassem.

            Nos dias de hoje, todos perguntariam quanto custaria. O dono de escravos Gil Gomes não perguntou, ele foi em busca de dinheiro. Foi a Fortaleza e, por intermédio da Sociedade Abolicionista Brasileira, conseguiu recursos e comprou todos os escravos que existiam na área de Redenção. Com uma condição: que os que tivessem vendido não voltassem a comprar escravos. E fizeram esse grande acordo.

            Naquele momento, Senador Mão Santa, um dos donos de terra, chamado Coronel Bernardino - aprendi tudo isso, ontem, com uma professora chamada Maria Bandeira - disse que a maior mancha da sua vida era ter um dia sido dono de escravos. Vendeu os escravos ou alforriou-os antes, e Redenção entrou o ano de 1883 sem escravos.

            Bem, o que quero trazer para os tempos de hoje, Senador Mão Santa, Srªs e Srs. Senadores presentes, com esse fato? Quero trazer o seguinte: se fosse hoje, Sr. Presidente, dificilmente isso teria acontecido; primeiro, porque toda vez que queremos falar em completar a abolição, as pessoas perguntam se há dinheiro. E ninguém por aí, com clareza, explicita esta idéia: “eu tenho uma mancha na vida, a de ser brasileiro em um tempo em que existem meninas vivendo na prostituição, em que meninos são abandonados, em um tempo em que não há escravidão, mas há exclusão”. Cento e vinte anos atrás, um dono de escravos teve a sensibilidade de dizer que a mancha da vida dele era ter vivido em um tempo em que ele era dono de escravos.

            Quantos de nós lembrarão que a mancha da nossa vida, a que vai ficar registrada na história futuramente neste País é que vivíamos com todo o conforto, com todas as condições, com todos os recursos disponíveis no mundo moderno, mas rodeados de miséria, rodeados de meninas vivendo na prostituição para poder comprar um pão, rodeados de meninos abandonados, outros empurrados para o crime sem terem nascido para isso. E nem nos lembramos de que isso é uma mancha na nossa vida. Um dia, este País não vai ter mais isso; e as pessoas vão se lembrar, sim, de que vivemos, aceitamos e toleramos viver nesse tempo.

            Uma outra lição é que, hoje, em vez de comprar escravos, como fez aquele Gil, para libertá-los, hoje, completar a abolição é construir uma escola para os filhos da senzala como se constrói para os filhos da casa grande.

            É isso que complementaria a abolição: que as escolas dos filhos das favelas fossem equivalentes às escolas dos filhos dos condomínios. Mas, quando falamos nisso, qual é a pergunta que vem logo à cabeça de todos: quanto custa isso? Ninguém perguntou ao Presidente quanto custaria fazer o PAC, e ele respondeu: “R$500 bilhões”. E ninguém perguntou de onde vinha esse dinheiro. Todo mundo dá como certo, tranqüilo que R$ 500 bilhões para a economia é válido, certo e devem ser gastos. Quando ele diminuiu nosso Imposto de Renda, elevando o limite de isenção, ninguém perguntou: esse dinheiro não vai fazer falta para alguma coisa? Comemoramos. Porém, quando o Congresso está aumentando o salário de Deputados e Senadores - felizmente, não 92%, mas 26% -, não vi ninguém perguntar aqui, no Senado, de onde viria o dinheiro para aumentar nosso salário. Alguns dizem que isso é inoportuno; outros dizem até que isso não devia ser feito. Mas de onde vem o dinheiro não se pergunta.

            Mas, se dissermos que é preciso implantar horário integral em todas as escolas do Brasil, mesmo com a modéstia de dizer que vamos precisar de 15 anos para fazer isso, mesmo sabendo que não são necessários mais que R$7 bilhões, no primeiro momento, por ano, para a viabilização desse projeto, todo mundo perguntará de onde virá o dinheiro.

            Aquele Coronel Gil, dono de escravos, Gil Gomes, não perguntou quanto custava o escravo. Ele foi atrás e conseguiu o dinheiro.

            E o dinheiro estava disponível. Um País de escravos! Ele conseguiu o dinheiro para comprar os escravos daquela cidade. E, alguns anos depois, felizmente, ainda no Império, não se comprou escravo de ninguém; eles simplesmente foram libertados.

            Mas não completamos a abolição. Daqui a um ano, completaremos 120 anos de abolição, vivendo em um Brasil cujas condições sociais dos pobres não são melhores do que a dos escravos. Eles têm direito à liberdade, mas não têm direito a mais nada!

            O que fizemos quando libertamos os escravos foi dizer: “vocês não precisam mais trabalhar forçadamente, podem ficar desempregados; vocês não vão mais ter de comer os restos da casa grande, podem passar fome; vocês não vão ter mais de viver nas senzalas, podem ir para debaixo das pontes, podem ir para as favelas”. Aliás, a palavra “favela” vem dos escravos.

            Não completamos a abolição. E, cada vez que se fala em completá-la, por meio de escola igual para todas as crianças brasileiras, o que se ouve é a velha pergunta: “onde é que se vai arranjar 1% que se precisa da receita do setor público, ou seja, 0,3% da receita nacional”?

            Cento e vinte anos atrás, os senhores de engenho da cidade de Redenção nos deram exemplo de consciência, de vergonha, quando disse esse Coronel Bernardino que era a maior mancha da vida dele ter sido dono de escravo, ter vivido em um sistema escravocrata. Mas, com ousadia, eles resolveram o problema naquela cidade.

            Hoje, não fazemos isso. Toleramos. Eles não toleraram viver na escravidão na cidade deles, e nós toleramos viver com esta escravidão chamada “exclusão social” nas nossas terras. Por isso é que, lá, eles aboliram a escravidão, e nós não a completamos nos dias de hoje.

            Completar a abolição, Senador Mão Santa, consiste simplesmente em fazer com que a escola da senzala seja igual à escola da casa grande; que a escola da favela seja igual à escola do condomínio. Estamos tão atrasados que, quando digo isso, tenho certeza de que a maioria acha que sou um enlouquecido, um desvairado e insensato, por querer algo como isso. Os outros países já o fizeram, e o Brasil tem todos os recursos para fazê-lo.

            Não estou propondo um milagre. O que estou falando leva 10, 15 ou 20 anos para se concretizar. Não é milagre, é persistência; não é milagre, é decisão de se querer fazer. E o gasto, gente, não é tão alto!

            Já se tentou fazer. Há cidades, no Brasil, que estão fazendo isso, mas são poucas. Somente 200 cidades no Brasil têm boa escola. Mas, e as outras? Deixamos para trás as crianças que nelas vivem?

            O próprio plano de desenvolvimento educacional que o Presidente Lula lança - e que temos de elogiar, porque é melhor do que nada - estabelece prestigiar as escolas que vão bem, mas deixar para trás as crianças que vão mal. No fundo, o que nós - e ninguém pode dizer que não tem culpa - estamos fazendo é deixar as nossas crianças para trás.

            Todo mundo critica esse Presidente Bush, que faz guerras e que é arrogante, mas, nos Estados Unidos, o Presidente Bush tem um programa educacional chamado “Nenhuma criança é deixada para trás na América”. Por que não imitamos essa idéia do Bush, se é que é preciso imitar?

            Por que não tomamos a iniciativa de fazer? “Nenhuma criança deixada para trás no Brasil”, isso significaria completar a abolição.

            Se o Brasil fosse do tamanho de Redenção ou se Redenção fosse do tamanho do Brasil, aquela pequena cidade cearense, e se os brasileiros, especialmente nós, Senadores, tivéssemos a consciência daquele dono de escravo chamado Gil Gomes, o Brasil estaria muito melhor do que está nas nossas mãos, porque ele, há 120 anos, teve a sensibilidade, teve a responsabilidade e teve a competência de dizer: “Aqui é território livre da escravidão”. Por isso, ontem fui ao Ceará, para comemorar a data junto do povo cearense.

            Antes de conceder um aparte, eu gostaria de dizer que não fui ao Ceará só por isso, Sr. Presidente - quero convidar os Senadores presentes para fazerem isto também. Fui ao Ceará para fazermos a primeira caminhada do Movimento Educação Já. Tudo o que aconteceu de mudança neste País, Senador Mão Santa, saiu de alguma caminhada, de alguma passeata, de alguma manifestação. Nada vai sair de dentro dos escritórios dos governos; e, se sair algo de dentro dos escritórios dos governos, o governo seguinte pára, se o povo não estiver na rua exigindo que continue.

            Fizemos as duas primeiras caminhadas pela Educação Já. O Brasil conseguiu a Constituinte com o Movimento Constituinte Já; conseguiu as diretas com o Movimento Diretas Já; conseguiu, sim, a anistia com o Movimento Anistia Já; conseguiu corrigir o erro da primeira eleição de presidente com o Impeachment Já. Está na hora de fazermos o Educação Já.

            Nós fizemos a caminhada no Ceará neste fim de semana; vamos fazê-la, dia 2, em Curitiba; no final de abril, a faremos em Belo Horizonte e, no começo de maio, em Florianópolis. Portanto, gostaria que aqueles que estão me ouvindo não esperassem Senador algum defender a passeata e fizesse a sua em sua cidade. Que os jovens deste País voltem a pintar a cara ou a fazerem outros gestos que signifiquem “vamos completar a abolição”! Educação já é igual a completar a abolição neste País. Há 119 anos demos o primeiro passo, Senador Tião Viana, ao abolir a escravidão no Brasil; há 124, a abolimos no Ceará, e há 125, em Redenção, no Ceará. Não é possível continuarmos adiando ainda por muitos anos a se completar no Brasil.

            Sabemos como fazer e temos os recursos. O que está faltando? Exigirmos, irmos para as ruas! Não se muda um país com palavras, mas, sim, com pés, caminhando; são os pés que mudam. Antes, na minha juventude, chegamos a acreditar que era com o dedo no gatilho, fazendo a revolução armada. Depois, começamos a achar que era com o dedo apertando os botões das urnas nas eleições. Mas concluí que nem apertando, com os dedos, os botões das urnas, nem puxando o gatilho que este País vai mudar. Este País vai mudar caminhando, com frases, slogans, com a vontade de mudar, uma Nação unida, como se uniram pelas diretas, pelo impeachment , pela anistia, pela Constituinte, para completar a abolição com um grito só: Educação já!

            O que fazer? Os atos, nos os sabemos: definir escola em período integral, mesmo que sua implantação demore 15 anos. Não proponho milagres. Que a profissão neste País terá uma categoria bem remunerada, desde que bem preparada e dedicada. Não vai adiantar pagar altos salários, com greves de 60 dias. Tem de haver um grande acordo neste País. Pagamos o que os professores querem; define-se a melhor maneira de aumentar o salário dessa categoria ao longo dos próximos 10 anos na condição de que não haja greve por um período de 10 anos também. Isto é possível! Não há qualquer recurso necessário para uma escola que o Brasil não fabrique! Nada disso custa mais do que custou para o Sr. Gil, dono de escravo, que comprou todos os escravos da cidade de Redenção. Ele fez; ele teve a sensibilidade; ele foi competente. Por que não temos a mesma sensibilidade? Por que não somos competentes? Por que não fazemos o que a História do Brasil está aguardando há tanto tempo?

            Concedo o aparte ao Senador Mão Santa.

            O Sr. Mão Santa (PMDB - PI) - Professor Cristovam Buarque, hoje, 26 de março, o Senador Marco Maciel homenageou a Biblioteca Luiz Viana Filho e as bibliotecárias. V. Exª também, desta tribuna, faz o mesmo, pois tudo é uma coisa só. A roda está descoberta: a palavra é educação. Tanto é verdade que V. Exª se refere à liberdade dos escravos. Eu disse, neste Plenário, que foi o saber de uma mulher londrina, que escreveu A Cabana do Pai Tomás, que contribuiu, por intermédio desse livro, com a abolição da escravatura. Isso revolucionou todo o mundo. Inclusive, ainda garoto, o romance transformou-se em novela, à época rádio-novela, pois, não havia televisão. A Cabana de Pai Tomás, romance de autoria de uma escritora, inspirou-nos a todos. Então, a revolução veio dos livros. Portanto, agora, o Ceará tem essa página bela. Além do empresário que V. Exª cita, tem-se o povo, na figura do jangadeiro - não sei o nome dele -, que, lá, recebeu o apelido de Dragão do Mar. Daí os nomes do Complexo Cultural e de uma emissora serem Dragão do Mar. V. Exª sabe mais do que ninguém, um pernambucano como V. Exª, que Joaquim Nabuco, em 1779, começou dez anos antes a discursar neste Congresso para libertar os escravos. Era uma voz solitária, por isso não conseguiu se reeleger. Então, foi para a Inglaterra. Ali, foi respeitado, laureado, assim como em Paris, em Portugal, enfim, na Europa. Nabuco, realmente, foi o primeiro brasileiro que manifestou o desejo de liberdade e de sua necessidade. Veja V. Exª que os ingleses, que dominavam o mar - a Inglaterra era a rainha do mar - elaboraram leis proibindo o transporte de escravos. Mas, em Pernambuco - daí o nome Porto de Galinhas -, quando a lei entrou em vigor proibindo o tráfico de escravos no mundo, o trafico ainda existia. Quando os navios chegavam, carregados de escravos, é evidente que não se podia dizer que eram escravos contrabandeados, por isso espalhava-se a notícia de que “as galinhas estavam chegando”. “As galinhas” eram os escravos contrabandeados. Daí o nome Porto de Galinhas. Porém, lá no Ceará, houve um jangadeiro que se contrapôs heroicamente. Quando os navios atracavam, os escravos tinham de ser transportados por pequenos jangadeiros, que os traziam para a terra. Então, ele fez greve, greve forte, no sentido de impedir que os jangadeiros transportassem os escravos. Ele foi preso e levado para o Rio de Janeiro. Portanto, a luta foi grande! V. Exª, sirva-se desses exemplos: Castro Alves, aqui declamado pelo Senador de Pernambuco, Marco Maciel; José do Patrocínio, lembrado pelo culto Senador representante do Amapá, Gilvam Borges. Se eles conseguiram, V. Exª também conseguirá. Tenho plena convicção de que daqui a dez, vinte anos, todo o País vai se referir a Cristovam Buarque como aquele que, realmente, levantou a bandeira mais importante para recuperar a nossa civilização: a educação.

            O SR. CRISTOVAM BUARQUE (PDT - DF) - Obrigado, Senador Mão Santa. V. Exª sempre gentil.

            Senador Mão Santa, quero dizer que o Senador Gilvam Borges lembrou bem José do Patrocínio, porque foi ele quem deu dinheiro ao Gil para comprar os escravos de Redenção e alforriá-los.

            Sr. Presidente, essa viagem à Redenção para comemorar a abolição da escravatura no Ceará, além da alegria de estar em uma cidade que foi capaz de tal feito, trouxe-me, por outro lado, profunda tristeza ao ver como estamos atrasados na questão dos sentimentos neste País. Hoje, conseguimos conviver com um mundo em que existem coisas que não são piores do que a escravidão: crianças abandonadas; dois terços de nossos jovens deixados para trás por falta de escola; do outro um terço, apenas a metade está em sintonia com as necessidades da educação, ou seja, apenas 18% com educação razoável. No entanto, convivemos com tudo isso. Nós só nos assustamos com a pobreza quando ocorre a violência. Com o resto, não nos assustamos, qual seja, a violência da fome, a do desemprego, a da miséria, a da prostituição, a de ficar para trás, a da exclusão. Para nós, isso não é uma violência; para nós, é como se a única violência fosse aquela produzida por meio de bala. Entristeceu-me ao ver que, hoje, estamos menos sensíveis do que os senhores de escravos - não todos, obviamente - do século XIX. Mas, ainda há esperança. Se eles foram capazes da fazer isso naquele tempo, quando os interesses deles estavam em jogo: conseguiram reorientar os seus interesses para trabalharem com mão-de-obra não servil, certamente nós também conseguiremos? Podemos, sim!

            Repito o que disse anteriormente, inclusive relembrando este excelente livro citado pelo Senador Mão Santa: A Cabana do Pai Tomás: a palavra não muda. Esse livro foi fundamental. O próprio Presidente Lincoln reconheceu que sem aquele livro a consciência anti-escravidão não teria continuado. Mas, se não fosse a guerra civil enfrentada sob a liderança do Presidente Lincoln, o livro continuaria apenas um livro. Da mesma maneira, a minha fala; ela vai continuar só uma fala. Vou ficar rouco de falar e as escolas não mudarão. O que muda um país são as mãos ou os pés. A voz, a boca é a maneira de canalizar mãos e pés para caminharem e mudarem a realidade.

            Insisto: houve um tempo em que cheguei a pensar que eram os dedos puxando fuzis. Cheguei a pensar que eram os dedos apertando os botões das urnas. Hoje, penso que são as pernas caminhando por este Brasil e as mãos carregando nossos gritos: “Educação já!”. É a única maneira possível de completarmos a abolição.

            Espero que daqui a 20 anos cada um de nós - pois agora não haverá apenas um Betinho, cada um terá que ser o Betinho da educação - seja lembrado como hoje lembrei aqui de Gil Gomes, um homem que, pela vontade dele, conseguiu abolir a escravidão em uma cidade que passou a se chamar, depois disso, Redenção, e em razão do que fez pelos escravos que ali trabalhavam.

            Eram essas as minhas palavras, minhas lembranças, com base na visita que fiz ontem à cidade de Redenção, no Ceará.

            Muito obrigado.

 

            


Este texto não substitui o publicado no DSF de 27/03/2007 - Página 6633